O sol dos nossos sonhos

29 de junho. Nesse dia, em 1986, a seleção argentina de futebol se tornava bicampeã mundial (https://www.youtube.com/watch?v=EXSxyBQvGMs). 3 x 2 diante da Alemanha (na época, o Muro de Berlim ainda existia e essa Alemanha era só a parte chamada de Alemanha Ocidental), na Copa do México. Explosão de alegria do povo argentino com o título e com o futebol apresentado, especialmente por seu principal jogador, um dos maiores craques da história do futebol: Diego Maradona. A final foi, sem dúvida, um ápice, tanto a partida em si, uma partida difícil, como expressa o próprio placar e pode ser imaginado pela tradição alemã em Copas, quanto o apito final e o momento, pouco depois, em que a maior premiação do futebol, provavelmente a maior de todo o esporte, a taça dourada, foi erguida pelo Maradona, capitão da albiceleste.

Pra não sermos obrigados a dizer God save the Queen

Mas o ápice que precedeu o do degrau mais alto do futebol e que, de certa forma, o ultrapassou, podendo ser considerado o momento de maior emoção, de maior admiração, de maior encantamento dessa Copa aconteceu alguns dias antes, em 22 de junho. Foi o jogo Argentina 2 x 1 Inglaterra, nas quartas-de-final, especialmente os dois gols argentinos, ambos marcados pelo gênio Maradona. La Mano de Dios (https://www.youtube.com/watch?v=cX7-7ovbUT4) y El Gol del Siglo (https://www.youtube.com/watch?v=O8G9ytZg-bM). Diegol del Siglo. Diosgol. El Diezgol. Por esses gols, pelas jogadas das quais fizeram parte, por serem, essas jogadas-gols, dois tipos de dribles, uma delas um drible-metáfora recheado de dribles que em si também podem ser metáforas, pela arte (também com duplo sentido) que foram e serão, mas também porque tudo isso se junta ao simbolismo de uma vitória (feita de várias vitórias) contra a Inglaterra, principal colonizador contra a Argentina, que sempre quis fazer do Río de la Plata um River Plate a financiar seu império, o império de la plata, da money. O imperialismo que sempre teve pontualidade britânica na Argentina. The Union Jack contra a união latino-americana. A British School que se mantém na sua filial-nova matriz usamericana. Argentina 2 x 1 Inglaterra foi a vitória no campo de futebol contra a Inglaterra que havia derrotado a Argentina na então recente Guerra das Malvinas (1982). O drible vencendo os ponteiros-fuzis do Big Ben. A arte e a garra se fazendo antítese da guerra como técnica de dominação. O artilheiro do English Team, Gary Lineker, um dos melhores atacantes da história do futebol inglês, queria muito a vitória, mas sabia bem que a Inglaterra só teria a rainha. Lutando até o fim, reconhecia que o mérito anti-meritocrático era do Maradona, era da Argentina. No fundo, sabia que a Argentina manter River Plate e ter Brown (autor do primeiro gol na final) como beque e vencer a Inglaterra era uma forma de descolonizar a colonização, de subvertê-la, mesmo que sem se livrar dela completamente. Como era subverter a colonização reinventar o futebol com sotaque argentino. Enquanto a tecnocracia pregava que a hora exata é inglesa, a arte mostrava que a hora mágica pode ser argentina. O tempo ao mesmo tempo corrido e em câmera lenta, ao mesmo tempo passando como no relógio inglês e sendo replay do replay do tempo argentino, ao mesmo tempo real e imaginado, pensado e sentido, lembrado e esquecido, marcado e psicológico, ao mesmo tempo objetivo e no seu próprio tempo. 90 minutos pros ingleses, uma história inteira pros argentinos.

Margareth Thatcher derrotava os sindicatos, mantinha as Malvinas como Falklands, espalhava o neoliberalismo pelo mundo e, como Dama de Ferro, apertava a mão de sangue da Dirección de Inteligencia Nacional (Dina) pinochetista, mas não conseguia impedir que brilhasse el sol de nuestros sueños (https://www.youtube.com/watch?v=ymrnENDEmWw). A colonizada Junta Militar da ditadura argentina achava que seria recebida com tapete dourado pelos donos do mundo, mas estes só apoiaram as ditaduras latino-americanas no que e enquanto serviram aos interesses da Zorópa e dos Istêitis. Qualquer passo fora desse demarcadíssimo terreno teria o repúdio dos donos do mundo. Foi assim quando a ditadura argentina tentou, numa manobra buscando estancar sua crise, retomar as ilhas Malvinas em poder do Reino Unido. Pensou que, porque servia aos gentlemen and ladies, tudo seria resolvido com tapinhas nas costas e mais remessa de lucros pro estrangeiro. Mas não. Thatcher, com apoio dos EUA e mesmo da França do “socialista” Mitterrand (https://www1.folha.uol.com.br/…/9/21/ilustrada/24.html), enviou navios e aviões de guerra pra dizer aos ditadores argentinos que só servem pra massacrar seu próprio povo a fim de extrair a maior mais-valia possível em prol das grandes transnacionais da Europa e dos Estados Unidos. E que não deveriam, de forma alguma, se atrever a dar qualquer passo não autorizado pela Europa e pelos Estados Unidos, ainda mais em termos geopolíticos. Os ditadores argentinos não passavam de office-boys do imperialismo da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Mas, apesar disso, apesar de muitos argentinos terem consciência de que a Junta Militar estava tentando utilizar a causa das Malvinas em seu próprio benefício, essa causa e, de modo mais amplo, a causa de poder ser argentino sem ter que dizer sempre God save the Queen levaram a que amplos setores do povo vissem naquele jogo de Copa do Mundo uma oportunidade pra gritar que um dia não teriam mais que sempre dizer God save the Queen. Que um dia poderiam ser argentinos sem pagar dividendos aos ingleses. E uma parcela menor do povo compreendia que, pra isso, ou seja, pra não ficar colonizado, o povo diretamente, e não as classes possuidoras locais é que deveria definir os rumos do país. Porque as classes possuidoras, além de explorarem o povo, querem, no fundo, ser estrangeiras, mesmo quando querem, ao mesmo tempo, manter seu sotaque.

Medalha milagrosa

A vitória na Copa de 1986 fez brilhar el sol de nuestros sueños no peito de muitos argentinos. Num porta-retrato ou num porta-filme, é um sol simbólico que cada argentino pode carregar em seu bolso. Se o bolso estiver vazio, se transformando em fome, esse sol será como uma medalha milagrosa a lembrar que o povo tem direito a não passar fome, tem direito a ser feliz, tem direito a ser povo. Que o povo tem direito a ser arte, como El Pibe a gambetear. Que o povo tem direito a vencer. A ser campeão. A dizer a si mesmo: viva o povão! E isso, apesar de todo o esforço, apesar de ser fortíssima e dissimulada, a tecnocracia liberal não consegue apagar completamente, por mais que busque combater, tanto diretamente quanto via cooptação.

A conquista da Copa de 1986 pela Argentina é um potente símbolo (http://cienciaeautonomia.org/…/como-maradona-contra-os…/). A primeira Copa vencida pela seleção albiceleste tinha sido em 1978 (http://cienciaeautonomia.org/…/la-mano-del-pueblo-x-a…/), no seu próprio país. Também foi uma explosão de alegria pra grande parcela do povo argentino, mas foi durante a ditadura iniciada dois anos antes, no tecnocraticamente chamado Proceso de Reorganización Nacional, e, enquanto os gritos pelos gols vibravam os estádios e as ruas, outros gritos, dos torturados e das famílias dos assassinados e dos desaparecidos, no submundo do poder transnacional, eram abafados pelos do futebol, mesmo que uma parcela dos que a repressão atacava também vibrassem com o futebol. Além disso, existe a suspeita de favorecimento à Argentina ao longo do torneio, especialmente de que a vitória por 6 a 0 contra o Peru, que permitiu à seleção de Kempes, Luque, Bertoni, Passarella, Fillol, Tarantini, Villa e companhia chegar à final, foi comprada (https://www.youtube.com/watch?v=qPyueh3qPhQ). A seleção argentina tinha uma boa equipe e estava dedicada a finalmente coroar sua boa escola de futebol com a principal taça do esporte. Poderia ter sido campeã mesmo. Mas as suspeitas de favorecimento, a partir de fortíssimas pressões da ditadura do Videla, ficam como uma sombra em torno dessa conquista. O bicampeonato, no entanto, em 1986, foi com el sol de nuestros sueños, sem qualquer dúvida quanto ao êxito. E teve a arte do Maradona (http://cienciaeautonomia.org/…/obra-prima-do-povao-na…/). Per la Maradona! Por isso, é uma conquista com um poder simbólico muito maior. Pode ser vista como um mito argentino (e latino-americano), em diversos sentidos.

O Maradona erguendo a taça da Copa do Mundo parecia um Perón vindo diretamente do povão a reger uma ópera mais diretamente popular, como a governar o povo falando ainda mais diretamente a sua língua, com as suas melhores gírias. Um ícone iconoclasta e icônico. O Maradona levanta a taça e o povo levanta o Maradona como sua taça. O Maradona é a taça do povo. Parece que o povo está governando. Parece que o povo está no (seu) poder. Mas não está. Enquanto o povo festeja sua justíssima festa, os patrões continuam patrões. A polícia continua polícia. Contra os trabalhadores. A Argentina, cantada de forma emocionada pela torcida, continua dividida em classes sociais e a exploração capitalista continua gerando descamisados. O Maradona derrotou os ingleses, mas não podia derrotar o capital. Não sozinho. Muitos disseram que ele ganhou o Mundial sozinho. Essa hipérbole, que pode ser compreendida e até aplaudida porque ele apresentou um futebol muito acima da média, o melhor da Copa e um dos melhores da história das Copas, sendo muito decisivo, “esconde” que, na realidade, é impossível vencer sozinho. Se no futebol é impossível, na sociedade é mais ainda. A Margareth Thatcher dizia que não existe sociedade, apenas indivíduos. Mas é justamente quase o contrário: não existem indivíduos sem sociedade. E uma sociedade que se baseia na lógica da Thatcher destrói o tecido social, acentuando o moedor de almas do capital. O Maradona sabia disso, até porque, na infância, foi um descamisado. E buscou, em vários momentos, criticar esse moedor. Mesmo assim, sua imagem foi utilizada pelo moedor. Não apenas em propagandas pro consumismo. Mas também (e essa é a propaganda mais de fundo) como propaganda da grande conciliação de classes que é uma “invisível” borracha da luta de classes. O país inteiro unido. A pátria de chuteiras. Viva a Argentina! Como se patrões e trabalhadores fossem uma só classe no dia-a-dia. Como se as suas alegrias e as suas tristezas fossem as mesmas. Como se seus destinos estivessem abraçados.

O mito anti-mito

Mas o mito Maradona não aceita ficar preso no código (de barras) que o tranforma numa mercadoria, num espetáculo pra consumo. O punho levantado é o mesmo de manifestações contra as desigualdades sociais do capitalismo. A taça erguida como a lembrar o povo que El Dorado é seu e que os poderosos o roubam todos os dias. Como a devolver ao povo seu Eldorado. Como a mostrar, indiretamente, que o ouro é também o próprio povo. El Pibe de Oro mostra que todos os pibes olvidados são ouro coletivo. Que lembra que o ouro deve servir ao povo. Que só com independência nacional e popular em relação a colonialistas e patrões o ouro estará a serviço do povo. Os dribles, os gols, toda a arte, com toda a garra que os acompanha, com o lema implícito de que não tem bola perdida, a ecoar, no estádio lotado no coração do povo, que não se desiste da luta pela independência nacional e de classe, de que nosso ouro seja nosso, e que essa luta temos que lutar do nosso jeito, sem copiar ninguém. Com criatividade. Com inspiração própria, ainda que inspirados também em outras escolas. O mito Maradona escancara que os tecnocratas argentinos não vão fazer o povão campeão. Só quem pode fazer isso é o próprio povão. E que o povão só pode fazer isso sendo povão, sem querer imitar a tecnocracia. O Maradona é um mito que se quer mito e ao mesmo tempo dribla o mito. Pode ser manipulado pelos poderosos anti-povo e ao mesmo tempo estar nas mãos do povo como seu próprio mito. São Maradona do povo.

Maradona visita Barthes

Ainda que profundamente argentino, o Maradona é também um mito latino-americano. Se conversasse com o Roland Barthes sobre a Petrobras, o Maradona poderia argumentar que, assim como ele próprio, a Petrobras é um mito que precisa ser desconstruído e reconstruído. Que precisa de um exímio iconoclasta e de um artista que recrie o ícone. A iconoclastia é necessária porque a Petrobrás, embora criada, em grande medida, a partir da luta do povo brasileiro, sempre serviu mais aos que exploram o povo, tanto locais quanto estrangeiros, do que ao povo propriamente, ainda que tenha sido muito importante pro povo. Se, em 1953, a vitória, em vez de ser da campanha O petróleo é nosso, tivesse sido dos defensores da campanha O petróleo é Esso, o Brasil teria sido muito mais colonizado. A iconoclastia é necessária porque a idéia, muitas vezes difundida, de que a Petrobrás é do povo, ainda que potente e com grande potencial pra ser uma ferramenta de luta, esconde que, na prática, o povo não controla a mais estratégica empresa do país. Que nunca a controlou. Mesmo nos momentos em que esteve mais próxima do povo, o povo nunca foi sequer perguntado sobre que rumos queria pra empresa que, no discurso, era sua. Nunca houve uma Comuna petroleira. Nunca houve uma Revolução Espanhola em torno da Petrobrás. O máximo que houve na prática, em termos de poder de mando na empresa, esteve, em parte, nas mãos de uma tecnocracia nacionalista, com aspectos socializantes, que agia no lugar do povo. O povo estava presente no cartaz, mas a caneta pra escrever a história estava nas mãos dessa tecnocracia. E essa tecnocracia nunca conseguiu realmente afastar do comando da empresa o que podemos chamar de tecnocracia mais direta, que se veste com o mito da neutralidade da técnica de modo muito mais direto que a tecnocracia nacionalista, a ponto dessa veste ser “invisível” de tão visível que é. Isso facilitou muito que hoje essa tecnocracia mais direta, privatista, domine a empresa e a esteja privatizando de modo avassalador e avassaladoramente naturalizante. E a Petrobrás, hoje Petrobras, com o acento retirado que esconde que já é PetroBrax, precisa se tornar ícone novamente, desta vez esculpido a partir da desconstrução. Pra que o povo não se iluda, mas sonhe. Pra que lute por uma Petrobrás que seja realmente sua, por uma Petrobrás em que ele, povo, decida concretamente os rumos do setor de energia do país. Uma condição indispensável pra isso é que a privatização, em curso, seja derrotada. Estamos no final do segundo tempo. Ou entramos realmente em campo, jogando a nossa melhor luta, ou nós é que seremos derrotados. Gerações serão derrotadas. O povo vai comer o pão que a Shell amassou. Catado no lixo. A nossa Copa do Mundo está sendo definida. Não nos esqueçamos do Maradona. Não nos esqueçamos de nós mesmos. Viva o sol dos nossos sonhos.

Antony Devalle é trabalhador da Petrobrás e integrante do grupo autônomo de trabalhadores petroleiros Inimigos do Rei. É um dos fundadores e editores do Portal Autônomo de Ciências.

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