DNA: a herança de Rosalind Franklin e reflexões para a colaboração científica

DNA: a herança de Rosalind Franklin e reflexões para a colaboração científica [1]

Toda história esconde outras histórias. A velha máxima de que “a história é escrita pelos vencedores” quer nos dizer que toda história tem seus vieses – que tende a pesar a favor de quem a escreve. Da parte perdedora, quando mencionada, são destacados os deméritos e vícios. Pierre Bourdieu, sociólogo francês, nos fala que o processo de institucionalização dos fatos sociais consiste em um consenso produzido acerca da construção daquele fato; esse processo se daria através do que chamou de “amnésia da gênese”, que promoveria o esquecimento dos vários caminhos que co-existiram (muitas vezes, com conflito e disputa) ao longo da institucionalização, em prol de uma história que se tornará a “oficial”. As histórias oficiais ocultam os caminhos “possíveis esquecidos” ou “mortos”. 

Em outro texto, escrevi sobre a história da descoberta dos efeitos psicoativos do LSD, e a figura que por muito tempo ficou ocultada nessa história: Susi Ramstein, assistente de laboratório de Albert Hofmann (o químico a quem é creditado a descoberta do LSD), escolhida por ele para o acompanhar no seu primeiro auto-experimento com a nova substância, e portanto a primeira trip sitter de LSD da história. Pouco tempo depois dessa primeira experiência, ela viria a se tornar a primeira mulher a experimentar o LSD.

No mestrado, tenho me dedicado a conhecer um pouco mais dessas histórias ocultas que contribuíram para a formação do que hoje chamamos de Renascimento Psicodélico. Nesse resgate, ficamos sabendo como os psicodélicos tiveram uma significativa participação em descobertas que revolucionaram a ciência e a cultura. Steve Jobs, idealizador da Apple, afirma que ter usado LSD esteve entre as duas ou três coisas de maior importância da sua vida. John Markoff, no seu livro “What the dormouse said” [2], defende o argumento de que as tecnologias de computação e realidade virtual se desenvolveram na contracultura californiana dos anos 1960 principalmente pela inserção que os psicodélicos tinham naquele contexto. Não podemos afirmar que os psicodélicos promoveram todas as revoluções sexual, estética e política dos anos 60 e 70; entretanto, é difícil retirar sua participação nesses episódios históricos.

Outro notável evento científico em que o LSD teve uma participação foi no desenvolvimento do modelo de dupla hélice do DNA. Francis Crick nunca escondeu que estava sob efeitos de LSD quando teve o insight que lhe renderia um Prêmio Nobel em 1962 (compartilhado com Maurice Wilkins e James Watson). Eu já tinha essa informação há alguns anos e recordei dela lendo recentemente “A serpente cósmica: o DNA e a origem do saber”, do antropólogo canadense Jeremy Narby. Estranhei um certo positivismo com que Narby parece levar sua noção de verdade, buscando “paralelos neuroquímicos” às simbologias das serpentes nas várias mitologias, mas tentei ser paciente pelo livro ser da década de 1990. (Spoiler: no fim, ele as encontra no DNA!) Depois de anos de pesquisa, retornou à comunidade indígena de Quirishare, na Amazônia peruana, com a notícia de que havia descoberto que o que aquelas pessoas haviam lhe contado sobre a origem vegetal da sabedoria nativa era verdade também “em termos científicos”. Recebeu em resposta um “Por que levou tanto tempo?”.

Agora, estou lendo o novo livro de Sidarta Ribeiro, “Sonho manifesto“. Na página 74 ele larga uma bomba: “Como é possível (…) Que se ignore que a descoberta da dupla hélice do DNA por James Watson e Francis Crick foi realizada com base em dados roubados de uma colega química, Rosalind Franklin, que morreu de câncer poucos anos depois de ver os ladrões publicarem a descoberta sem mencioná-la?”. Eu achava que já havia encontrado a história oculta do DNA no LSD, mas esta era só mais uma parte da história [3]. Amo Sidarta, mas não tenho por que confiar nele… “Não acredite, pesquise!”, diria Álvaro Borba, do Meteoro Brasil. Um google rápido mostra que ela era especialista em uma tecnologia de fotografia microscópica (tecnicamente chamada de cristalografia e difração de raios x) e que fez o primeiro registro do DNA. James Watson e Francis Crick tiveram acesso à imagem e às anotações de Franklin – que basicamente já indicava quase por completo o formato até hoje vigente: dupla-hélice com fosfatos para fora e bases nitrogenadas para dentro das fitas – sem consentimento da cientista, obtidas pelo companheiro e “rival” de laboratório Wilkins.

Digamos que a Fotografia 51 (na imagem) e anotações de Franklin “facilitaram” a imaginação turbinada de lsd de Crick e Watson… De quem foi a principal contribuição? Quem deveria ter ganhado o Prêmio Nobel? Rosalind Franklin morreu de câncer poucos meses depois do prêmio ser concedido ao trio de homens, sem ver seu nome como resposta para qualquer dessas perguntas.

Várias declarações sexistas e racistas de Watson ficaram famosas recentemente. Para o seu colega Crick, parece ter sido mais fácil falar abertamente sobre o uso de uma substância psicodélica do que da participação de uma colega cientista na “sua” descoberta. Surfou na revolução psicodélica da contracultura, mas preferiu deixar sua experiência com a substância como marca pessoal de um exotismo e vanguardismo para a época. Aliás, foi assim também com Steve Jobs: ele chegou a afirmar que Bill Gates seria uma pessoa melhor se tivesse usado ácido pelo menos alguma vez na vida, mas não foi tão solidário à causa da molécula quando teve a oportunidade. Jobs recebeu em 2007, uma carta escrita por Albert Hofmann, então aos 101 anos de idade, pedindo-lhe apoio para a proposta de pesquisa com terapia com LSD, com esperança que ajudasse na “transformação da minha criança problema em uma criança maravilha”. A carta sequer foi respondida.

Hofmann não conseguiu o apoio que queria de Jobs, e o LSD seguiu como uma substância criminalizada e estigmatizada: mesmo dentro do contexto do atual Renascimento Psicodélico, ela vem sendo preterida em relação a outras substâncias (como a psilocibina, por exemplo) por conta do tabu entorno de sua histórico social. A guerra às drogas supõe ser uma guerra contra substâncias, plantas, moléculas… mas sabemos que o paradigma proibicionista (tal qual outras formas de opressão) se alimenta e retroalimenta o machismo, o racismo, fazendo a conta dessa guerra cair sobre pessoas. Pretos e pobres sofrem com a criminalização, violência e encarceramento; indígenas e povos originários sofrem com o epistemicídio, genocídio e apropriação cultural; pacientes perdem tempo e qualidade de vida; mulheres são subvalorizadas e objetificadas…

Essa história faz-me questionar ainda mais (de novo!) sobre as contribuições não referenciadas na história da ciência. Falamos muito dos ombros dos gigantes (e claro que eles existem e têm seus méritos) como apoio para os recém chegados, mas esquecemos de procurar o que e quem ficou na sombra desses. Parafraseando Sidarta, precisamos “curar nossa pior ancestralidade” e “honrar nossa melhor ancestralidade”. Precisamos ouvir e honras as minorias oprimidas. Precisamos garantir que os leões escrevam suas histórias, e não somente os caçadores. [4]

A colaboração é o segredo da evolução, não a competição – já diria Maturana, Kropotkin e outros. Nossa situação econômica, social e ambiental parece cada vez mais provar isso. Ninguém sai sozinho de uma pandemia. A colaboração e o respeito deveriam ser a norma, na vida e na ciência.

Iago Lôbo é redutor de danos e psicólogo clínico e social. Membro da Associação Psicodélica do Brasil e mestrando em Ciências Sociais da Saúde no Instituto de Saúde Coletiva da UFBa.

Notas de rodapé:

[1] Seguindo algumas referências do texto, o título original falaria em “origem” e “gênese” – até pela simbologia feminina desses processos – mas, tendo citado o trabalho de Narby, esses conceitos relacionados ao DNA nos levariam a falar da hipótese da panspermia, também defendida pelo próprio Crick. A origem extraplanetária da vida precisará ser aprofundada em outra oportunidade.

[2] Em tradução livre, “O que disse o rato”, frase retirada da música “White rabbit”, da banda Jeferson Airplane, em referência à fala do rato da história de Alice no País das Maravilhas: “Feed your head”, ou “Alimente sua cabeça”.

[3] O LSD se reencontraria tempos depois com o DNA, nas falaciosas propagandas que usavam linguagem científica para afirmar que a substância teria a capacidade de alterar os cromossomos e causar mutações – o que foi, posteriormente, desmentido

[4] Referência ao provérbio africano “Até que os leões inventem as suas próprias histórias, os caçadores serão sempre os heróis das narrativas de caça.”

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