No dia 13 de março, morreu Carlos Pedro Blaquier, aos 95 anos, em Buenos Aires. Notícia importante na Argentina, o fato não recebeu atenção da mídia no Brasil, tanto da mídia mais diretamente mercantil quanto até da mídia que se apresenta como contra-hegemônica, com exceções como a da Agência de Informação Frei Tito para a América Latina (Adital). Na Argentina, mesmo o Clarín, jornal que manteve estreitos laços com a ditadura empresarial-militar imposta em 1976, noticiou. Blaquier, uma das pessoas mais ricas da Argentina, era um dos donos do grupo empresarial Ledesma, que, criado há 115 anos, detém, entre outras instalações, um dos maiores engenhos do mundo, na pequena cidade de Libertador General San Martín, na província de Jujuy, no norte do país, onde grande parte da população é pobre. O império Ledesma se estende do açúcar ao papel, passando por frutas, carnes, cereais, álcool, etanol e energia.
Rei do açúcar e do álcool, Carlos Blaquier fez parte de todo um rol de empresários que estimulou, apoiou e se beneficiou com o golpe e da ditadura que durou de 1976 a 1983. Já havia se beneficiado de ditaduras anteriores, como a do general Juan Carlos Onganía (1966 a 1970), que, como na ditadura instaurada no Brasil em 1964, já passou a adotar a ordem usamericana expressa na doutrina de segurança nacional segundo a qual as Forças Armadas devem se concentrar no chamado inimigo interno (na prática, os que combatem o capitalismo, especialmente em sua linha de liberalismo econômico, e o imperialismo). Mas, na nova e mais completa ditadura, Blaquier se envolve ainda mais e colhe ainda mais dividendos. Entre várias outras relações de parceria, Blaquier coloca à disposição da repressão a Ledesma. De 20 a 27 de julho de 1976, três meses após o golpe de 24 de março, diversos cortes de energia elétrica foram provocados em Libertador General San Martín pra facilitar a repressão (https://www.laizquierdadiario.com/A-44-anos-de-la-noche…). A empresa, que dominava a cidade e povoados da região, forneceu à repressão listas de trabalhadores e habitantes em geral que lutavam contra a exploração patronal e emprestou caminhões (como a Folha de S. Paulo fez com a ditadura no Brasil) e instalações pra que mais de 400 pessoas fossem torturadas. 33 dessas pessoas continuam desparecidas.
ProgrEsso na ditadura e na democraC&A
O general Jorge Rafael Videla, o primeiro presidente da ditadura de 1976-1983, morreu aos 87 anos, em 2013, na cadeia, onde estava condenado à prisão perpétua; os capitães Alfredo Astiz e Jorge Acosta estão na prisão; dezenas de militares foram condenados pela participação em crimes da ditadura, como assassinatos, desaparecimentos, sequestros, torturas e roubo de bebês de presas políticas… A face militar dessa ditadura, embora ainda de forma muito incompleta, foi condenada. Mas a face civil, especialmente empresarial, continua sorrindo. Mesmo sendo processado desde 2012, Blaquier morreu sem ter sido sequer condenado por seus crimes de lesa-humanidade. E contou com a benevolência de um Judiciário que continua patronal. Blaquier não é o único. Ainda que alguns empresários e executivos de empresas, inclusive a transnacional usamericana Ford, tenham sido condenados, graças, sobretudo, à incansável luta de organizações como as Madres e as Abuelas de Plaza de Mayo e os Hijos e Hijas por la Identidad y la Justicia contra el Olvido y el Silencio (H.I.J.O.S.), ainda são poucos os que sofreram consequências por sua participação na ditadura. Um dos principais fios condutores entre as ditaduras dos anos 1950 a 1980 na América Latina que foram parte da expressão da guerra do capital, sobretudo usamericano e europeu ocidental, além daquele dos próprios países sob essas ditaduras, de forma subalternizada, contra a luta popular, e a chamada redemocratização dos anos 1990 é a ditadura econômica, com ênfase, em maior ou menor grau, de acordo com o país e o período, na sua vertente de liberalismo econômico, que significa, em geral, políticas estruturais de concentração da riqueza ou, dito de outra forma, de aumento da desigualdade social. O liberalismo econômico que está sempre pronto a se contradizer, utilizando o Estado pra financiar e socorrer os ricos, quando seus negócios dão errado, ao mesmo tempo em que, em nome do tecnicismo que proclama, quase invariavelmente se nega a que o Estado seja utilizado pra ajudar os pobres. Na ditadura ou na democraC&A, o padrão é o patrão. Standard (Oil). ProgrEsso. O capital é patrão do capitão. O fio condutor é o cifrão. O carro-forte manda no tanque, mas é apresentado como um veículo natural na cidade. O carro-forte é o tanque tecnocrata. Militares foram pro banco dos réus. Mas The Bank não vira réu. A ditadura argentina se autodenominou Proceso de Reorganización Nacional. Não parece nome de ditadura. Parece reestruturação de organograma numa empresa capitalista. Embalagem tecnocrática pro terror de Estado e de Mercado. O Mercado é o Estado do Estado. Videla, Médici, Bordaberry, Stroessner, Pinochet… Funcionários do Mercado. Proceso de Reorganización Nacional: a Junta Militar como uma joint-venture do capital transnacional. Como tropa-de-choque da tecnocracia. Gestão, administração… O país é um negócio. Gestão, administração… Proceso de Reorganización Nacional. Palavras que escondem decisões políticas que beneficiam a classe proprietária. Manipulação da linguagem. Palavras que são utilizadas pra enfraquecer as palavras. Vestidas de econometria, de mito da neutralidade da técnica. Palavras sem palavra. O discurso tecnocrático salva o patrão da prisão.
Usina Cambahyba e Açúcar Caravelas da Colombo
O caso Blaquier nos remete à Usina Cambahyba, em Campos dos Goytacazes, no Norte Fluminense. Segundo a Comissão Nacional da Verdade, durante a ditadura imposta no Brasil em 1964 o latifundiário Heli Ribeiro Gomes, cedeu o engenho pra que corpos de opositores, como o Luís Maranhão e a Ana Rosa Kucinski, fossem incinerados nos seus fornos (https://www.brasildefatorj.com.br/…/justica-destina-a…). A luta em torno dessa usina é grande. Em 2012, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) ocupou parte dessas terras e chamou a ocupação de Luís Maranhão (https://www.youtube.com/watch?v=LtBJrlFhtiU). Em janeiro do ano seguinte, Cícero Guedes, uma das lideranças da ocupação, foi assassinado. A ocupação durou até 2019. Em 2021, o MST fez outra ocupação nas terras da Usina Cambahyba (https://mst.org.br/…/por-que-ocupamos-as-terras-da…/). O caso Blaquier também nos remete ao caso de uma fazenda no interior paulista que produz cana-de-açúcar pro grupo Colombo Agroindústria S/A, da marca de açúcar Caravelas. Recentemente, foi constatado que a fazenda estava utilizando trabalho escravo atual (https://www.brasildefato.com.br/…/fazenda-que-fornece…). A América Latina continua em grande medida com as veias abertas. O liberalismo econômico do capitalismo continua mantendo em parte a América Latina como um grande engenho. O projeto de aprofundamento da (re)colonização dos nossos países, que tem como uma de suas facetas o aprofundamento do privatização da Petrobras, continua muito forte.
Mídia colonizada é colonizadora
Parte dessa colonização se expressa na nossa mídia. Blaquier morreu em 13 de março deste ano e a mídia no Brasil não deu atenção. No dia 22 de junho de 2021, houve dois fatos que, embora de grande relevo, foram um deles pouco noticiado (e só na editoria de esportes) e o outro ignorado (até onde consegui verificar) na mídia brasileira, mesmo na do campo que, em maior ou menor grau, valoriza a libertação da nossa querida América Latina. Os então 35 anos de Argentina 2 x 1 Inglaterra, nas quartas-de-final da Copa de 1986, com dois gols do Maradona, que ficaram entre os mais famosos da história: La mano de Diós e o Gol do Século. Essa vitória da seleção albiceleste, como uma vingança popular contra o imperialismo inglês, foi uma síntese do bicampeonato argentino e de como a nossa vitória passa pela descolonização. Esse aniversário deveria ter estampado capas de jornais, horário de destaque na TV e no rádio, vídeos e autidóris nas ruas e nas redes digitais, apresentado a partir de um olhar de análise política e cultural. O outro fato foi a morte do escritor e militante político argentino Horacio González, aos 77 anos. Entre diversos outros livros, vários dos quais publicados pela editora Brasiliense, Horacio, que morou no Brasil, escreveu Evita – A militante no camarim (http://www.editorabrasiliense.com.br/catalogo.php?id=164), quase uma radionovela sociológica sobre essa personagem fundamental da história do nosso continente. A luta contra a privatização da Petrobras tem relação estreita com conhecermos nossa(s) história(s) e nossa(s) cultura(s) latino-americanas. Então, te convidamos, leitora, leitor, a (re)ler esses dois textos que publicamos e que ecoam o que está expresso nesta nota: http://cienciaeautonomia.org/…/obra-prima-do-povao-na…/ e http://cienciaeautonomia.org/…/como-maradona-contra-os…/ .
Parafraseando um trecho da canção (https://www.facebook.com/watch?v=953420855794128) que os H.I.J.O.S. fizeram pros atos deste 24 de Março na Argentina por Memória, Verdade e Justiça, que, por sua vez, é uma versão da canção Muchachos, que foi o hino da torcida albiceleste na Copa do Mundo do ano passado, no Catar, cantemos: “Luchamos/ por los sueños de los 30 mil/ Pueblo o corporaciones/ Pueblo o mafia de Clarín/ […] Por los desaparecidos que jamás olvidaré”!
Antony Devalle é trabalhador da Petrobrás e integrante do grupo autônomo de trabalhadores petroleiros Inimigos do Rei. É um dos fundadores e editores do Portal Autônomo de Ciências.