Ciência, tradução e apagamento feminino: do LSD aos algoritmos

A imagem do blotter de LSD mais famoso é o que ficou conhecido como “Bike”, em homenagem ao ano da sua descoberta psicodélica e o Dia da Bicicleta. Sempre vi Hoffman nessa pessoa flutuando em cima da bicicleta do desenho. Hoje me pergunto se é mesmo uma figura masculina e se não deveria ter outras bicicletas e ciclistas.

por Iago e Igor Lôbo

Este texto traz algumas reflexões sobre a importância de uma tradução textual bem feita, e as graves consequências históricas, políticas e científicas que se pode produzir quando alguns cuidados não são seguidos. Antes de entrarmos na questão da tradução no campo da ciência, traremos uma inusitada e fantástica história para ilustrar a problemática. Para quem não tem intimidade com os psicodélicos, sugerimos o uso de sua substância de alteração de consciência de preferência, que lhe permita mergulhar com fôlego nesse capítulo da história da psiconáutica. Desejamos uma ótima viagem, e que o retorno traga reflexões e sentimentos com potência de aplicação diária e revolucionária. Beijos psicodélicos, boa leitura e até o retorno!

A descoberta do LSD

Albert Hofmann [1906-2008] trabalhava desde 1929 na empresa farmacêutica Sandoz, na Suíça. O químico possuía grande autonomia e reconhecimento na empresa, mérito de seu trabalho cuidadoso e dedicado. Desde 1938 que ele vinha estudando a ergotamina, substância derivada da cravagem do centeio (ou ergot), fungo que costuma brotar em plantações de trigo. Seu objetivo era desenvolver um medicamento que ajudasse em partos difíceis, visto que já era conhecido o potencial dessa substância como estimulante circulatório e respiratório.

No dia 2 de maio daquele ano, ele produz a vigésima quinta variação de uma série da dietilamida do ácido lisérgico (o LSD-25), extraído do ergot. Depois de testado em ratos, e apresentando poucos efeitos esperados, a variação foi descartada, seguindo os protocolos de testagem da Sandoz. É, entretanto, 5 anos depois da sintetização da molécula, em 1943, que temos o principal marco da história do campo psicodélico : a descoberta dos efeitos psicoativos do LSD.

No seu relato, Hofmann conta como desde o descarte da molécula, ele foi acompanhado por um “pressentimento peculiar” (HOFMANN, 1983, p14): ele não conseguia esquecê-la, supondo que ela deveria ter propriedades não identificadas naquela primeira testagem. Decide então por fazer uma nova síntese, burlando as normas da empresa, no dia 16 de Abril de 1943. No relatório destinado ao seu coordenador, Arthur Stoll, sobre esse dia, ele conta que teve que interromper o trabalho no meio da tarde e ir para casa, tomado por uma “inquietude, combinado com uma leve tontura” (id, ibid, p15). Chegando em casa, ele se deitou e mergulhou em uma “condição parecida com uma intoxicação, não desprazerosa, caracterizada por uma imaginação extremamente estimulada”, um estado quase onírico, com fotossensibilidade, e um “contínuo de imagens fantásticas, com formas extraordinárias e cores intensas e caleidoscópicas” quando de olho fechado. Esse estado teve fim duas horas depois dos primeiros sintomas percebidos.

Desconfiado, visto seus meticulosos cuidados para manusear com a sabida toxicidade das ergotaminas, ele supôs que tão estranha experiência só poderia se derivar de uma intoxicação no laboratório. Não podendo desconsiderar a extraordinária potência de uma substância que promovesse tais sensações, ele decidiu por fazer uma auto experimentação controlada três dias depois.    No dia 19 de Abril de 1943, então, Albert Hofmann, às 16h20, toma 0,25 microgramas de LSD dissolvidos em água. Ele relata às 17h já começar a sentir os primeiros efeitos: “tontura, ansiedade, distorções visuais, sintomas de paralisia, desejo de dar risada” (id, ibid, p15). A partir daí, já incapaz de fazer mais registros de suas sensações, fica claro para o cientista que o LSD havia mesmo sido o responsável pelos sintomas de três dias antes, percebendo-os também agora, porém bem mais intensos. Só essa conclusão já era impressionante, visto que na época não conhecia outras substâncias capazes de efeitos tão potentes, com uma dose tão baixa – a mescalina, por exemplo, já isolada e sintetizada à época, tem efeitos psicoativos a partir de doses médias entre 0,3 e 0,5 gramas, dosagens maiores em 1,2 a 2 milhões de vezes da ingerida por Hofmann.

Ele pede ajuda a sua assistente, que sabia previamente de sua experimentação, que o acompanhasse até sua casa. Eles vão de bicicleta, por conta das restrições quanto ao uso de veículos movidos à gasolina, por conta da Segunda Guerra Mundial. No caminho para casa, a condição começa a assumir “formato ameaçador”: “tudo no meu campo de visão ondulava e estava distorcido como que visto num espelho curvo” (p.16). Após chegarem seguros em sua casa, ele apenas consegue pedir que a assistente chame o médico da família, e consiga alguma quantidade de leite com os vizinhos para ele tomar, pela sua qualidade desintoxicante.

A partir daí, Hofmann descreve uma apavorante experiência, onde objetos da sua casa passam a não mais serem reconhecidos, a vizinha que prontamente lhe traz leite parece uma bruxa malévola, ele se sente possuído por um demônio,acredita estar morrendo e é tomado pela culpa de não poder mais ver seus filhos e esposa, bem como estar terminando sua carreira com um evento que certamente seria visto como uma irresponsabilidade profissional. Uma ironia, ser forçado para fora deste mundo pela substância que ele próprio criara.

Quando o médico chega, ele é informado pela assistente de Hofmann sobre todo o ocorrido, mas, após os exames, ele não observa nada de anormal ou preocupante, a não ser as pupilas dilatadas. Já deitado na cama, e assistido pelo médico, todo horror se suavizou e ele passa a sentir um enorme sentimento de gratidão e confiança de que o perigo da insanidade estava chegando ao fim. A experiência se transforma então numa prazerosa viagem visual por fractais, cores e formas extraordinárias, que sofriam interferência e eram afetadas por qualquer percepção acústica no quarto. Mais tarde, na mesma noite, sua esposa – informada de seu estado – ao chegar de viagem de outra cidade encontra-o já capaz de acalmá-la e relatar todo ocorrido.

O dia seguinte foi marcado por sensações inesperadas e extremamente prazerosas. Uma sensação de bem estar e renovação, o café da manhã extraordinariamente saboroso,  o jardim e as flores brilhavam sob o sol como se o mundo tivesse sido recém criado, e seus sentidos, durante todo o dia, estavam aguçados como nunca.

O assistente? Ou A assistente?

Talvez aqueles mais atentos que já conhecem a história tenham percebido uma pequena diferença no relato traduzido aqui, se comparado aos que costumamos encontrar na internet (normalmente traduzidos do inglês para o português por psiconautas e entusiastas do tema, e distribuídos livremente em diversos fóruns online sobre o tema): o gênero da assistente de Hofmann. Demorei um tempo também para reconhecer a importância dessa figura na história, bem como me dar conta do quão estranho é o nome dela sequer ser mencionado no relato original.

O livro onde Hofmann relata sua experiência se chama “LSD – minha criança problema”, foi publicado originalmente em alemão, e mais tarde traduzido para o inglês pelo psicólogo Jonathan Ott. O tradutor não deu atenção o suficiente para o gênero que o autor usou para se referir à assistente: não era o assistente, mas sim a assistente. Claro que não mencionar o nome da assistente pode ter facilitado a confusão, mas se retomarmos o texto em alemão onde ele se refere à ela, o gênero está claro: “Ich konnte nur noch mit größter Anstrengung verständlich sprechen und bat meine Laborantin, die über den Selbstversuch orientiert war, mich nach Hause zu begleiten.” (HOFMANN, 2004, pg. 29). 

Para quem já teve uma experiência com uma dosagem média ou alta com LSD (como foi o caso de Hofmann), e principalmente para aqueles que já passaram por uma bad trip, sabem a importância das companhias que estão com você. Costumamos falar, no campo da atenção a usuários de substâncias psicoativas, num tripé de variáveis a serem consideradas num momento de uso de substâncias: set (características pessoais do usuário, mentais e orgânicas), setting (ambiente onde vai se dar o uso, conforto, segurança, companhia) e substância (dosagem, pureza, frequência, forma de consumo). Essas variáveis interagem de forma única em cada uso e usuário, e não é possível criar um cenário perfeito, blindado à prova de bads. Entretanto, a experiência que já acumulamos no campo da Redução de Riscos e Danos já nos dá embasamento o suficiente para dizer que um bom acompanhamento pode fazer toda a diferença. Afirmamos sem medo: o papel do redutor de danos e da redutora de danos ou do acompanhante terapêutico e da acompanhante terapêutica durante uma experiência difícil com psicodélicos salva vidas!

Para os que nunca passaram por uma experiência psicodélica, um breve exercício de imaginação ativa. Imagine trabalhar num laboratório, e decidir experimentar uma substância nova, recém sintetizada, testada somente em ratos. Pouco tempo depois, suas percepções começam a mudar, um pouco de tontura aparece, e principalmente o medo, de não saber que outros efeitos tal substância pode promover. Poderia essa substância me matar? Sem mesmo conseguir me despedir de minha família? 

Agora imaginem dois perfis de companhia para tal situação e considerem qual das duas vocês escolheriam: a) uma pessoa com quem você trabalha, de sua confiança, e que tenta te acalmar, te dá suporte e media outros cuidados junto a um profissional de saúde, vizinhos e familiares; b) um desconhecido que você pede ajuda na rua, desinteressado no seu estado, diz que vai passar e te abandona logo depois, recomendando que você vá numa emergência ou coisa do tipo; ou c) seu chefe, com quem comenta algumas sensações estranhas, e simplesmente me fala para tomar um café e voltar para o trabalho – mesmo que já não se consiga propriamente fazer o trabalho com a atenção necessária.

Eu não tenho dúvida de que escolheria uma pessoa que se encaixe mais no primeiro perfil apresentado;  e Hofmann também o fez: ele escolheu Susi Rammstein, sua assistente de laboratório. Não sabemos por que Hofmann escolheu justamente ela para informar sobre sua ideia de auto experimentação. Mas podemos especular que num ambiente quase exclusivamente masculino (Susi era a única mulher a trabalhar como aprendiz no laboratório da Sandoz à época), a escolha por uma mulher sugerisse a Hofmann um ambiente de maior empatia, atenção e cuidado. Ainda assim, o suporte ofertado por Susi talvez não tenha parecido tão relevante a ponto de o autor citar o nome dela no seu livro ou nos agradecimentos.

Susi Rammstein foi, portanto, a primeira pessoa a acompanhar alguém durante uma viagem de LSD: a primeira sitter de LSD (no Brasil, essa função pode se enquadrar como “redução de danos” ou “acompanhamento terapêutico”). Susi, posteriormente também veio a ser a primeira mulher a usar LSD, em 12 de Junho de 1943, então com 21 anos (XXX, pg. 47). Sua figura e participação na história do LSD não têm recebido tanta ênfase quanto deveria até os dias de hoje.

Esse texto vem afirmar que se celebramos todos os anos o famoso Dia da Bicicleta, talvez devêssemos considerar que ele também é o Dia das Rodinhas de Apoio, ou Dia do Freio de Mão. O famoso dia em que se descobriu os efeitos psicoativos do LSD também precisa ser lembrado como um dia que destaca o papel fundamental da redução de danos e do acompanhamento terapêutico durante uma experiência psicodélica. Uma boa companhia faz diferença em qualquer situação da vida – e talvez, mais ainda nos momentos mais difíceis. 

Mulheres e psicodelia

Susi Rammstein não foi a única mulher com importante contribuição na história moderna dos psicodélicos. Muitas são reconhecidamente figuras de destaque e têm seus nomes gravados na história psicodélica (mesmo que muitas vezes carregando o sobrenome dos maridos): Ann Shulgin, Christina Grof, Betty Eisner, Margot Cutner, Amanda Feilding, Annie Mithoefer… Mas a pergunta que fica é: quantas outras mulheres também não tiveram suas contribuições apagadas pelas figuras masculinas, tal qual aconteceu com Susi?

Beatriz Labate, antropóloga paulista e uma das maiores referências no campo da ayahuasca e da antropologia das drogas, tem puxado um importante trabalho, junto ao Instituto Chacruna, de recuperação do espaço de participação das minorias políticas no campo dos psicodélicos. No site pode-se encontrar um amplo material tratando dos psicodélicos nas perspectivas feministas, LGBT+, indígenas, etc. 

Além de Bia, o Brasil tem também muitas outras referências psicodélicas femininas. Recentemente, no evento “Nordeste Psicodélico” do Núcleo Nordeste da Associação Psicodélica do Brasil, a mesa online “Cogumelos e SUS: da terapêutica ancestral à saúde integral” contou somente com a participação de mulheres membros da APB: Thalita de Paula, Lua Naama, Priscila Praude (que tem seu próprio canal de divulgação de conhecimentos científicos psicodélicos, “Priscilocibina“) e com mediação de Daniela Monteiro.

Recentemente também, foi publicado no fórum do PreParty a tradução de um texto sobre a “influência histórica das mulheres no set e setting, e o Instituto Jurema promoveu uma live com o tema Drogas e Feminismo.

As ciências precisam das mulheres

Mas a invisibilização das mulheres não acontece só no contexto dos psicodélicos. Existe um experimento clássico e bem simples que se faz no campo da divulgação e popularização das ciências. Vamos fazer juntos e juntas. Quando você, leitor, leitora, pensa em cientista, que imagem vem na cabeça? Claro que nesse momento, pedimos para as pessoas falarem, escreverem, desenharem o que pensam, mas aqui, infelizmente, não temos esse recurso. Muitas vezes, o resultado dessa pergunta são figuras masculinas, brancas, de jaleco. Mesmo em animações, a representação de cientistas é majoritariamente de homens brancos e adultos.

Isso não é à toa. A invisibilização das mulheres na ciência e tecnologia não vem de hoje. Ao contrário: a presença das mulheres nesses espaços tem aumentado, mas, ao longo da história, sua importância foi apagada de diversas formas. Afinal, quantas mulheres você, leitor, leitora, estudou nas matérias científicas, na escola? Quando você pensa em grandes cientistas, quantas dessas pessoas são mulheres?

A única pessoa até hoje a receber dois prêmios Nobel foi uma mulher: Marie Curie, que recebeu o Nobel de física e de química. Ainda assim, as mulheres receberam apenas 3% de todos os prêmios Nobel, que existe desde 1901. Percebam que é um prêmio que começou no século XX. Isso mostra o quanto estamos ainda longe de ter reconhecido o papel das mulheres na ciência e tecnologia, que são correntemente apagadas da história.

Ainda hoje, o apagamento continua, através do machismo intrincado na academia como um todo, além de outras dificuldades, como diferença de salário e múltiplas jornadas de trabalho. Agora, em contexto pandêmico, a situação se agrava ainda mais; essas mulheres que insistem (e persistem) em ser cientistas – assim como nas demais profissões – têm que dar conta de seu trabalho, dos filhos e filhas, da casa e ainda lidar com a crescente violência doméstica.

Nesse contexto, qual o significado por trás da transfiguração da assistente de Albert Hoffmann?

Quando a tradução fala mais que o texto original

As línguas possuem muitas características diferentes umas das outras. Traduzir um texto não é simplesmente olhar uma palavra na língua original do texto (ou áudio, etc) e buscar seu equivalente semântico na língua em que se pretende traduzir. É um trabalho delicado em que temos que procurar entender o que o autor quis dizer e tentar reproduzir da forma mais fidedigna possível a mensagem. Claro que há diversos fatores e dificuldades para esse trabalho, desde possíveis ironias do autor às complexidades da própria língua.

Dito isto, o tradutor tem que fazer algumas escolhas, que dependem do contexto. Por exemplo, adaptando uma referência estadunidense para uma referência brasileira em dublagens de animações. Nesse caso, deveríamos primar pelo significado original, ou adaptar (como se costuma fazer) para que a piada tenha sentido aos brasileiros? E quando encontramos jogos de palavras que não são equivalentes nas línguas? Ao encontrar “chair à travail” em um texto francófono, o tradutor pode escolher traduzir literalmente como “carne de trabalho”, ou figurativamente como “mão de obra”. Escolhendo a primeira opção, ainda pode aprofundar a razão dessa escolha, através de uma nota do tradutor, explicando que o autor usou um jogo de palavras com “chair à saussice”, a carne com a qual se faz a salsicha, e “chair à travail”, que poderia ser compreendido como a carne com a qual se faz o trabalho, a mão de obra[1].

Por outro lado, quando se traduz um texto filosófico, o que falar de uma tradução onde o Übermensch nietzscheano se torna um “super homem”? Ora, nem “über” significa “super”, nem “Mensch” significa homem, nem o Übermensch nietzscheano é uma figura mitológica. Talvez a melhor tradução fosse “além do ser humano”, mas definitivamente não fica tão bonito, prático de falar e marcante quanto “super homem”.

Mas essas escolhas têm consequências. Imagine as reflexões que poderiam ser proporcionadas a todos e todas que, antes de conhecerem a obra clássica de Nietzsche, se deparassem com o “além do ser humano”. O que seria (ou quem seria) esse além? Agora, o que acontece quando a pessoa ouve falar no “super homem”? Quem não visualiza imediatamente a figura eternizada pelos quadrinhos da DC Comics? Ainda que seja um tanto óbvio que não é essa figura a quem Nietzsche se refere, é esse o imaginário que primeiro chega a quem tem contato com esse termo. E, notem, Nietzsche não colocou um gênero nesse termo. Mensch é pessoa, ser humano, não homem, como o super homem. 

Agora voltamos ao caso da assistente de Albert Hoffmann. Como visto, o texto original deixa claro que se trata de uma mulher. Assim, há dois erros de tradução: do alemão para o inglês, quando o gênero explícito na língua original é omitido na segunda língua; e, depois, do inglês para o português, quando, na ausência de gênero se assume que trata-se de um homem. Mas será que podemos chamar isso de erro, de fato? Como dito anteriormente, traduzir significa fazer uma série de escolhas (mesmo que inconscientes, ou não reconhecidas como tal). As pessoas que fizeram essas traduções tiveram escolhas e optaram por, de um lado, suprimir o marcador de gênero, e, do outro, assumir que a assistente era um assistente.

Não quero dizer que essas pessoas sejam necessariamente machistas ou algo que valha. Mas afirmo, sim, que estamos todos e todas atravessados pelos preconceitos estruturais das sociedades onde vivemos. Por mais que busquemos não ser machistas, acabamos reproduzindo machismo em momentos de nossas vidas. A atenção deve ser constante. Com isso quero dizer que para a primeira pessoa que traduziu, a informação de que a assistente era, de fato, uma mulher, não era importante. E já vimos como esse apagamento das mulheres é ainda muito presente em diversos campos, desde os psicodélicos às ciências duras.

Mas talvez mais grave ainda tenha sido a tradução para o português. É mais fácil ignorar o gênero de uma palavra (que, nesse caso, implica em ignorar o gênero da pessoa também), quando se passa para uma língua que não possui fortes marcadores de gênero. Por outro lado, quando passamos de tal língua para outra fortemente marcada por gênero, o que fazer? Alguma escolha tem que ser feita. Poderia ser escolhida uma linguagem mais neutra, falando da “pessoa que era assistente”, sem deixar claro o gênero. Poderia também ter sido feita uma pesquisa para se descobrir o gênero daquela pessoa, ou como isso aparecia no original, em alemão. Mas não: a decisão foi de escolher o gênero da assistente, que, nesse momento, não só estava apagada (como na tradução em inglês), como tinha trocado completamente de gênero, se tornando “o” assistente.

Me pergunto o que se passou na cabeça de quem fez essa tradução. Será tão “óbvio” que se tratava de um assistente homem, que sequer foi necessário refletir sobre a escolha do gênero? Ou será que essa pessoa, ainda que na dúvida, optou por não falar da incerteza de sua tradução? Repito: as escolhas têm consequências. Estamos vendo um apagamento tão gigantesco da figura feminina, que ela se torna masculina sem merecer sequer uma “nota do tradutor”.

Os algoritmos têm mentes masculinas, brancas, cis-heteronormativas

Somos sempre enfáticos no PAC em afirmar que não existe neutralidade na ciência e tecnologia. O mesmo vale para algoritmos, que nada mais são do que linhas de códigos escritas por – pasmem! – pessoas. Pessoas essas que, claro, não são neutras. Para se construir muitos desses programas e aplicativos que tanto usamos hoje em dia, é necessário partir de uma base de dados, isto é, de algumas referências para o desenvolvimento dessa tecnologia. Isso quer dizer que se sua base de dados para um aplicativo de fotos é composta essencialmente por pessoas brancas, os usuários negros vão ser, por exemplo, embranquecidos, como acontece com quem se aventura no FaceApp – além das diversas outras questões sobre tecnologias de reconhecimento facial e coleta de dados, que não vamos adentrar nesse texto.

Isso pode ser feito de forma deliberada ou não. Inteligências artificiais, no geral, vão aprendendo com o banco de dados. Então se os usuários de uma ferramenta de busca costumam achar que as mulheres deveriam “ficar na cozinha”, por exemplo, quando um novo usuário começa a digitar “mulehres deveriam”, a ferramenta indica como possível resposta o que ela tem mais contato: “ficar na cozinha”.

Mas, assim como na tradução, sempre há uma escolha, que deriva de uma autocrítica e reflexão ética. Os desenvolvedores da tecnologia podem usar uma base de dados que abranja mais etnias do que as brancas. Podem se atentar para o machismo, racismo, LGBTfobia embutidos na ferramenta de busca e procurar estratégias para mitigar esses problemas. No entanto, muitas vezes não há um esforço para a resolução desses problemas, sobretudo se não há um apelo midiático para que isso seja feito.

Na imagem acima, por exemplo, vemos o Google Tradutor traduzindo para o inglês diversas frases em turco. Acontece que, apesar de inglês ter poucos marcadores de gênero, ainda há uma diferença entre ele (he) e ela (she), enquanto no turco não há (ambos são “o”). Sendo assim, a ferramenta escolhe – ou melhor, a pessoa que desenvolveu a ferramenta, através dos algoritmos e base de dados, escolhe – quando deve-se optar por “he” ou “she”. O curioso é que, ao traduzir “polis” para “police” (policial), aparece “he-she”. Isso significa que essa possibilidade já existe e, portanto, poderia ser aplicada para todas as traduções.

Seguindo e Retornando

Assim, amigo, amiga psiconauta, chegamos ao fim de nossa viagem compartilhada. Em nossas trilhas, percebemos como somos sempre permeados por questões político-culturais. Seja no campo psicodélico ou nas ciências mais “duras”, nossos discursos, atuações e traduções (simbólicas ou não) são direcionadas a partir de nossas perspectivas (conscientes ou não). Resta-nos estarmos sempre atentos e atentas para que nossos descuidos não signifiquem invisibilizações; para que nossas escolhas não levem a opressões, a silenciamentos. Que nossas vozes se levantem para que ninguém tenha sua fala negada. Que nossas mentes se abram ao mundo que nos entorna, reconhecendo suas belezas e suas mazelas. Que nos reconheçamos como agentes da transformação, e que possamos conhecer as sociedades em que nos encontramos, porque conhecer a si mesmo sem conhecer as influências culturais que nos penetram não é autoconhecimento de fato. Que abramos as portas da percepção… e as janelas da transformação!

[1]É exatamente essa a escolha do tradutor do texto clássico “A Ação Direta“, até então inexistente em português, de Émile Pouget.

Iago e Igor Lôbo são irmãos desde 1993, nascidos e criados em Salvador-BA, e recriados nas praias de Canavieiras e rios da Chapada Diamantina. Parceiros de aventuras em trilhas montanhosas e psiconáuticas.

Iago é psicólogo social e clínico juguiano, redutor de danos, membro da Associação Psicodélica do Brasil, e supervisor de equipe no Programa Corra Pro Abraço. Igor é engenheiro químico, físico e educador, com mestrado em educação, pós-graduação em divulgação e popularização da ciência, atualmente cursando o doutorado em educação e criado do Peixinho Dourado, página sobre línguas. Ambos são editores do PAC.

Referências

BESERRA, Fernando. A história do LSD e seu criador. In: Portas da Percepção. Hempadão: 2017 Disponível em: https://hempadao.com/a-histria-do-lsd-e-seu-criador-portas-da-percepo-411/

HAGENBACH, Dietes; WERTHMÜLLER, Lucius. The Assistent. In: Mystic Chemist – the life of Albert Hofmann and his discovery of LSD. Pgs, 46-47. Synergetic Press: Santa Fe, New Mexico, 2011;

HOFMANN, Albert. LSD, my problem child. MAPS: 2005.. Disponível em https://maps.org/images/pdf/books/lsdmyproblemchild.pdf;

RODRIGUES, Sandro. Albert Hofmann e o dia da bicicleta. Ritmo e subjetividade. 2014. Disponível em: http://ritmoesubjetividade.blogspot.com/2014/04/o-dia-da-bicicleta-e-psicodelia_19.html;

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2 respostas para Ciência, tradução e apagamento feminino: do LSD aos algoritmos

  1. Rubem Cesar Passos Rodrigues diz:

    Mesmo sem ser psiconáutico ainda, já vislumbrei novos e lindos horizontes através de vcs dois.
    Parabéns pelo texto!

  2. Sandro Rodrigues diz:

    Excelente texto! Uma coisa que também me chama a atenção é o fato de o único livro do Grof que atribui o uso da música à intuição, formação e experiência familiar de sua esposa Christina é o livro sobre Respiração Holotrópica, que ela assina com ele. Mesmo no Caminho do Psiconauta, todo o trabalho musical volta a parecer de sua própria autoria, quando não é. Incompreensível esse tipo de decisão. Parabéns pelo ótimo texto!

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