London London

Londres, 38. Nesse endereço, nos arredores próximos do Centro de Santiago, capital do Chile, perto do palácio presidencial, La Moneda, e não longe do Museo de la Memoria y de los Derechos Humanos, fica uma edificação ainda do início do século XX, típica dos Centros das capitais sul-americanas que mais se empenharam em fazer em parte dos seus Centros pequenas Paris ou pequenas Londres. A casa na calle Londres, número 38, embora grande, não é um palácio, nem mesmo um palacete. Não é um Theatro Municipal do Rio de Janeiro (ou mesmo de São Paulo) nem um Teatro Colón, de Buenos Aires. Não é um Palácio Laranjeiras, inicialmente lindo domínio dos Guinle. Não é o palacete que serve de sede do Consulado de Portugal no Rio de Janeiro e nem mesmo a casa que abriga o clube Gurilândia, quase do lado, na Rua São Clemente, no bairro de Botafogo. É uma casa que, embora grande, pode não ser especialmente notada por quem passa por ela na rua Londres da capital chilena. Como tantas casas-prédios de Paris e de Londres que não são palacetes. A casa-prédio na calle Londres, 38 fica no bairro Paris-Londres.

Mas Londres, 38 não é uma casa “como as outras”. Na ditadura pinochetista, imposta no Chile há 50 anos, com o golpe de Estado (e de Mercado) realizado em 11 de setembro de 1973, essa casa foi transformada num centro clandestino de detenção e de tortura. Cerca de 2 mil pessoas estiveram como prisioneiras lá. Pelo que se pôde verificar, 98 delas foram diretamente assassinadas (muitas estão desaparecidas até hoje) ou morreram em decorrência das torturas sofridas. María Cecilia Labrín Saso tinha 25 anos e estava grávida quando, em 12 de agosto de 1974, foi sequestrada por agentes da Dirección de Inteligencia Nacional (DINA), principal agência da espionagem e da repressão da ditadura pinochetista. Foi desaparecida e assim está até hoje. A argentina Beatriz Elena Díaz Agüero tinha 26 anos e também estava grávida quando foi levada pra Londres, 38. Marcela Soledad Sepúlveda Troncoso foi presa aos 18 anos e continua desparecida. Juan Ernesto Ibarra Toledo tinha 21 anos em 1974, quando foi levado pra Londres (38). Luis Julio Guajardo Zamorano estava com 22 anos quando foi detido, em 1974. Ramón Osvaldo Núñez Espinoza tinha 20 anos nesse mesmo ano. Todos continuam desaparecidos. São “apenas” alguns exemplos de pessoas que visitaram Londres (38) e foram assassinadas-desaparecidas. Londres (38) era uma sucursal do inferno. Um inferno que Londres tinha ajudado a criar e que ajudava a manter.

O cifrão é a suástica do capitalismo

Em 1938, Londres, com a ajuda de Paris, facilitou o caminho pro Hitler, com os Acordos de Munique. Os nazistas tinham a simpatia de importantes setores das classes dominantes da Ingletrra e da França, entre outros motivos porque eram vistos como especialmente capazes de conter a URSS e até de derrotá-la. O nazismo, como os fascismos em geral, foi, em grande medida, um sub-super-produto do liberalismo econômico. O capital estava disposto a utilizar o nazismo pra garantir e aumentar suas taxas de lucro e seu domínio sobre o mundo. De modo muito menos arriscado pra si próprio, Londres (e Paris) agiu pra que houvesse Londres, 38 no Chile na década de 1970. A Alemanha nazista era uma concorrente imperialista de imenso poder de fogo, operando numa linha de (campo de) concentração do capital muito condensada a serviço do seu próprio imperialismo na gigantesca disputa interimperialista. Feitiço que poderia facilmente virar contra o feiticeiro dos imperialismos inglês e francês. Como efetivamente virou. E contra o liberalismo econômico Made in England e Fabriqué en France. Como efetivamente virou (ainda que permitindo que, “contraditoriamente”, esse liberalismo “liberal” continuasse se beneficiando com a “nova ordem”). Se não fosse sobretudo a URSS, com sua planificação econômica, talvez o Reich alemão nazista tivesse vencido a Segunda Guerra Mundial e durado “mil” anos, como Hitler queria. Os Estados Unidos, que já eram um imperialismo muito ascendente, que, em parte, inspirou a Alemanha nazista, aproveitaram pra se tornarem o principal imperialismo do mundo. Por isso, apesar de tudo, precisavam estar entre os que derrotariam a Alemanha nazista. Não tanto pelo nazismo, mas principalmente porque não podiam tolerar um imperialismo concorrente tão poderoso. Se o liberalismo permitiu o nazismo, por que não permitiria o pinochetismo? Era muito mais fácil controlar o pinochetismo. O Chile pinochetista, diferentemente da Alemanha nazista, massacrava parte do próprio povo mas era submisso aos imperialismos dominantes. Não desafiaria Londres ou Paris e muito menos Washington, que já tinha transformado Londres e Paris em seus poodles de luxo. Um deles abanando o rabo até na mesma língua. E servindo como seu cão-de-guarda em relação ao poodle parisiense. “In (usamerican) trust we trust”, garantia o Pinochet. Participou da Operação Condor junto com a ditadura argentina imposta em 1976, mas apoiou a Inglaterra na Guerra das Malvinas (contra a Argentina). Washington, uma espécie de Londres caubói mascando chewing-gum, Londres, Paris e a própria Alemanha democracia liberal cheia de nazistas “reconvertidos” em postos de relevo a serviço dos EUA, viram na ditadura pinochetista um investimento seguro com altíssima rentabilidade. Entre a estação Príncipe de Gales do metrô e Londres, 38, o Pinochet podia se sentir o Lorde Blood Money. O vil(ão) metal convidado de honra do chá das 5 no British Club, em que Washington dava as principais cartas.

O coração da repressão é o capital

Londres, 38, no bairro Paris-Londres, não era uma casa “como as outras”. Mas parecia com muitas casas do bairro. É como se ficasse camuflada pelo fog inglês. Como se fosse um sofisticado trompe l´oeil. Uma casa como muitas outras do bairro como fachada de uma casa que não era “como as outras”. Uma embalagem “normal” prum centro de prisão e de tortura. Não um local diretamente identificado com a mais-repressão, como eram, no Brasil, a sede do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), na esquina da Rua da Relação com a Rua dos Inválidos, e o Quartel da Polícia do Exército na Rua Barão de Mesquita, na Tijuca, ambos no Rio de Janeiro. Não. Londres, 38 eram os óculos escuros do Pinochet em forma de arquitetura. O disfarce foi parte do plano e do modus operandi da ditadura no Chile, por mais que ela apresentasse também sua face mais abertamente. A ditadura buscava disfarçar que a mais-repressão servia à aumentar a extração da mais-valia. O Pinochet como office-boy dos Chicago Boys, a mando do Foreign Office e seus pares do Occidental Private Club. A mão de ferro da DINA era ela própria e também um disfarce pra mão “invisível” da Dama de Ferro Margareth Thatcher. A mão de ferro da repressão, com estética de armadura, anda de mãos dadas com a mão também de ferro, mas com luva rendada, do mercado e do grande capital. Quem vê luva não vê armadura. Quem vê armadura não vê luva. Quem vê cara e coroa (da moeda) não vê coração. O coração da repressão é o capital. O capital é o coração da ditadura.

Hoje em dia, Londres, 38 é um museu. Um centro de memória justamente sobre o período em que foi centro clandestino de detenção, tortura e assassinato. No Chile, como na Argentina, os setores que foram vítimas da ditadura empresarial-militar (com suas diversas faces “nacionais”) conseguiram, no pós-ditadura, prender e condenar parte dos agentes da repressão, inclusive grandes mandatários (embora ainda se precise avançar muito na responsabilização dos agentes empresariais da ditadura), e estabelecer uma política de memória, verdade e justiça que se materializa inclusive em diversos monumentos, museus e outros lugares de memória (como placas e outras indicações em ruas…). Assim, as novas gerações podem conhecer de perto o que foi a ditadura. O que se busca é que as novas gerações condenem o pinochetismo e lutem pra que nunca mais o Chile seja torturado por uma ditadura como essa. Isso é fundamental.

O (suss)urro do fascismo

Mas não basta. O Henry Kissinger, secretário de Estado dos Estados Unidos na época do golpe no Chile e que ajudou a financiar e a organizar o golpe, não foi punido. Os dirigentes e agentes da CIA tampouco. Nem os dirigentes, em diversos níveis, das transnacionais que se beneficiaram com o golpe e a ditadura pinochetista. O capital ainda está impune. Enquanto assim se mantiver, o fascismo sempre estará nos quartéis, à espera de um chamado dos grandes patrões e, como Frankenstein do liberalismo, chamando ele próprio os patrões pra que tirem sua coleira. O fascismo está sempre na estação Príncipe de Gales do metrô de Santiago, como um fantasma, lembrado ou esquecido, disfarçado ou com suas próprias vestimentas, urrando e, ao mesmo tempo, sussurrando que está vivo, pronto pra retomar seus dias de glória. Xingando e louvando o liberalismo capitalista por mantê-lo sempre vivo. “London London…”, (suss)urra o fascismo. “London London…”… Esse é o “Compre Batom…” do fascismo no alto-falante mudo da estação Príncipe de Gales do metrô de Santiago. É o eco mudo do Príncipe de Gales. “London London…”, murmura o fascismo pra sua alma gêmea liberalismo. “1 + 1 = 2”, responde o liberalismo, num tom ao mesmo tempo cúmplice e professoral. Quem será o Pinochet da vez? Será que o Mercado precisa de um novo Pinochet ou consegue ser sua própria DINA disfarçada de mão de donzela? Os CEOs como Carabineros de Chile tecnocratas. A tecnocracia é um dos mais eficazes disfarces do fascismo. A tecnocracia é um tipo de fascismo, pelo menos em potencial.

O Pinochet foi preso em Londres, em 1998, a pedido do juiz espanhol Baltazar Garzón. Prisão domiciliar. Numa mansão. Chegou a voltar ao Chile quase 500 dias depois e morreu, aos 91 anos, em 10 de dezembro de 2006. Ironicamente, como seu “último” sarcasmo, no Dia dos Direitos Humanos. Londres aceitou mantê-lo em prisão domiciliar, mesmo assim com mordomias que um pobre que rouba pra comer nunca tem. Mas os aviões que, sob ordens do Pinochet, bombardearam La Moneda em 11 de setembro de 1973, eram ingleses. E Londres ter aceitado mantê-lo em prisão domiciliar durante um tempo, além de resultado de muita pressão, foi também, indiretamente, um recado de que, por mais úteis e até próximos que sejam os que se alinham a ela, ela é quem decide. Muitos exilados chilenos em Londres festejaram a detenção do Pinochet e se mantiveram mobilizados ao longo da sua prisão domiciliar. Londres ajudou o Pinochet, pra que ele a ajudasse ainda mais, e, ao mesmo tempo, recebeu exilados chilenos, perseguidos pela ditadura pinochetista. Pra além das contradições e da própria luta de classes na Inglaterra, isso se deve, entre outros motivos, à criação de uma imagem de respeito aos direitos humanos, pra associar o liberalismo ao respeito às liberdades humanas, e à mensagem, nas entrelinhas, de que Londres é quem manda.

Num pub suburbano com William Blake

O Caetano Veloso, quando estava exilado em Londres, por causa da ditadura empresarial-militar que havia sido imposta em 1964 no Brasil e que havia apoiado o golpe e apoiava a ditadura no Chile, compôs a linda canção London London, que tem na interpretação do Paulo Ricardo uma das suas mais lindas versões (https://www.youtube.com/watch?v=9S46VvPwGt0). Nela, o poeta é grato por estar vivo: “I´m wandering round and round, nowhere to go/ I´m lonely in London, London is lovely so”. Mas também expressa a solidão: “I know, I know no one here to say hello”. “Ninguém” em Londres está nem aí pros povos que Londres considera como colônias. Exceto o povão de Londres, que, algum dia, talvez possa caminhar junto conosco na luta contra Londres e nas ruas do (nosso) mundo. O poeta inglês William Blake, autor de um poema intitulado London (https://www.youtube.com/watch?v=E3YUR7zeCIc), poderia cantar conosco, num pub suburbano: “While my eyes go looking for flying saucers in the sky”.

No Brasil, precisamos de museus como Londres, 38 e o Museo de la Memoria y de los Derechos Humanos. Precisamos multiplicar lugares de memória sobre a ditadura empresarial-militar imposta em 1964 e sobre suas correspondentes nos países vizinhos. A principal empresa do Brasil, a Petrobras, auxiliou a ditadura. Precisamos que, dentro e fora das instalações da Petrobras, haja lugares de memória sobre isso. E que estabeleçam o liberalismo capitalista como fio condutor entre a época da Operação Condor e a atualidade, em que os “aviões” ingleses continuam bombardeando a Petrobrás sonhada como ferramenta de independência econômica do Brasil.

Antony Devalle é trabalhador da Petrobrás e integrante do grupo autônomo de trabalhadores petroleiros Inimigos do Rei. É um dos fundadores e editores do Portal Autônomo de Ciências.

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