La Plata x money

A 9 de Julio, a mais larga avenida de Buenos Aires, uma das mais largas do mundo, ficou completamente ocupada pelo povo logo após a conquista da Copa do Mundo de futebol de 2022 pela seleção argentina (https://www.youtube.com/watch?v=Bczbdrp7ao8), no domingo 18 de dezembro, no Catar. E nos dias e noites seguintes também. Cerca de 5 milhões de argentinos festejam ao longo dessa avenida central (https://www.youtube.com/watch?v=SnNkG8a_qY8), que ecoa a independência do país, e ao longo de seus arredores. Pra além dos festejos em muitos outros locais da Argentina, de cada 100 argentinos, 10 estão nessa que é a maior manifestação da história do país, nessa imensa avenida acostumada a imensas manifestações. Como quando os torcedores descem da arquibancada pra ocupar o campo no estádio, pra celebrar, junto com os jogadores, a conquista de um campeonato, o povo faz da 9 de Julio o campo da sua alegria. A 9 de Julio se torna a cancha em que o povo passa de 12º a principal jogador. A vontade do povo foi fundamental pra que a Argentina levantasse pela terceira vez (1978, 1986 e 2022) o mais importante troféu do futebol. Na final contra a França, uma das mais emocionantes finais da história das Copas, o povo foi o coração da Scaloneta (apelido da atual seleção argentina por causa do seu treinador Lionel Scaloni). Atualizando a canção Para verte gambetear (https://www.youtube.com/watch?v=qLwSd6nzqfM), casi 50 millones de personas transpirando en tu remera para jugar un Mundial. O gênio Messi, muito bem acompanhado pelo jovencito Julián Álvarez, que acredita até o fim, alcança, pra seleção argentina, uma importância realmente semelhante à do Maradona. Messi, Messi, Messi, Messi, Messi, Messi, Messi, Messi!… Messias! Ele já era chamado assim havia muito tempo e já havia, inclusive, feito tantos milagres, como dois quase-replays de gols do Maradona, La mano de Dios (https://www.youtube.com/watch?v=h9G9Voh5JGo) e El Gol del Siglo (https://www.youtube.com/watch?v=Cdj_qPqegzI), mas não tinha dado uma Copa do Mundo ao povo argentino. Agora, com muita habilidade, garra e emoção até o fim, como numa mescla de cumbia e de tango, El Lio, sendo a sua própria versão de El Diego, realizou seu sonho, que também era o sonho do seu povo. Agora o Messi também é el sol de nuestros sueños pro povo argentino.

O povo argentino é a Copa do Mundo

O Maradona já era esse sol. E sempre será. Mas, apesar de eterno, o Maradona (1960-infinito) morreu em 2020. Ou seja, ainda que iluminando pra sempre o povo argentino, está em parte no passado. O Messi ilumina mais diretamente o presente. E a conquista da Copa do Mundo pela terceira vez ilumina mais diretamente o futuro. É como se o Messi levantasse, junto com o Maradona (e o Kempes), três troféus idênticos, de cada uma das Copas conquistadas pela Argentina, cada um com a sua magia, e que esses três troféus, como santíssima trindade, fossem uma mapa de ouro da Argentina. É como se o mapa da Argentina fosse o próprio troféu. Como se cada um deles levantasse o mapa da Argentina. Como se o troféu tivesse o formato desse mapa. Como se cada um deles levantasse a própria Argentina. Como se o povo argentino fosse a própria Copa do Mundo levantada pelo Messi (e pelo Maradona e pelo Kempes). O povo como o sol dos seus próprios sonhos.

O Maradona e o Messi são o sol no centro da bandeira da Argentina. La pelota é el sol de nuestros sueños no centro da bandeira da Argentina. La pelota es el pueblo. O futebol é o sonho dos pibes a iluminar o povo todo.

El gol de nuestros sueños.

Na fachada do Teatro Colón, na 9 de Julio, uma imensa camisa da seleção argentina é a bandeira do país. O futebol é a bandeira. Lá do fundo da mesma 9 de Julio, do alto da fachada do prédio dos ministérios do Desenvolvimento Social e da Saúde, a Evita ouve, encantada, a multidão cantando que não “apenas” a Argentina tem o melhor jogador do mundo da atualidade (um dos melhores da história), mas também que, como equipe, foi capaz de dar tudo de si pra vencer a Copa do Mundo. Que a Argentina, portanto, é capaz de ser campeã. Que o povo argentino é capaz de ser campeão. Um povo que produz Maradona e Messi, que produz um futebol tão bom (ou até melhor) que seu melhor dulce de leche, que produz em campo (e nas ruas) cenas inesquecíveis que encantam multidões pelo mundo afora, que produz uma imensa alegria por um sonho realizado, é capaz de produzir também a realização do sonho de uma sociedade em que ninguém passe fome, nem de pão nem de beleza, uma sociedade em que o povo possa caminhar nas ruas con la sonrisa de pibe sabendo onde ir e, ao mesmo tempo, recitando Antonio Machado: “caminante, no hay camino, se hace camino al andar” (https://www.youtube.com/watch?v=fwsVtP3mbfM). Uma sociedade em que o povo, fazendo parte de Libertadores de América, se una aos espanhóis da Revolução (https://www.youtube.com/watch?v=2zczriUBRA0). A Evita ouve a multidão ser discurso e prática. Ouve dali onde, em 1951, quando o prédio abrigava o Ministério de Obras Públicas, dois milhões de pessoas foram pedir-lhe que aceitasse ser candidata a vice-presidente do país na chapa com seu marido Perón (https://www.youtube.com/watch?v=fFko-yJP6Bk). Não pôde aceitar, mas ficou pra sempre no coração do povo. A camisa da seleção argentina é a roupa de gala dos descamisados.

O povo caminha cantando que o gol é ser feliz. O futebol é o pão metafórico que multiplica a felicidade do povo. Hay que disfrutar cada momento. E é preciso se dedicar e acreditar até o fim que é possível.

Just do it? ¡No!

Mas o futebol se tornou business. E o business busca colonizar toda a sociedade com a sua lógica. Tenta botar tudo, literalmente tudo, atrás das grades dos códigos de barras. Tenta fazer da alegria, da paixão popular, mais um (especialíssimo) produto a ser consumido por bilhões de pessoas, que, ironicamente, são as mesmas que criam essa alegria, essa paixão, ou seja, o povo. Os jogadores e os treinadores que estão em seleções como a argentina são pagos com fortunas que aumentam ainda mais as ainda muito maiores fortunas dos donos do futebol. Fortunas, dos jogadores, dos treinadores e dos empresários que comandam o futebol (incluindo os fundos mercantis, as marcas de material esportivo e tantas outras) que seriam suficientes pra que ninguém passasse fome. Mais de 6 mil trabalhadores morreram na preparação da Copa do Mundo no Catar, em acidentes de trabalho, de males e doenças decorrentes de condições especialmente insalubres na construção da infra-estrutura da Copa e até de suicídio nesse contexto. A maior parte imigrantes de países em que grande parte da população está na pobreza. E são hipócritas os que criticam só o Catar. Os capitalistas em cada país tentam utilizar a paixão popular com o futebol pra convencer os trabalhadores de que estamos todos juntos. Utilizam o futebol pra invisibilizar a exploração sobre os trabalhadores. É indispensável que saibamos distinguir. Os interesses dos ricaços em torno do futebol são diferentes e até opostos aos dos trabalhadores, ainda que produtos futebolísticos que multiplicam a fortuna dos capitalistas possam ser interessantes aos olhos do povo. Os ricaços atuam pra que sejamos espectadores prontos pra cumprir o lema Just do it. Querem que não entremos nunca em campo. São muito bem sucedidos nesse projeto.

Mas o futebol, que, em seu formato moderno, nasceu pelas mãos patronais na Inglaterra capitalista da Revolução Industrial, tendo, entre outros objetivos, o de disciplinar os trabalhadores, foi muito abraçado pela classe trabalhadora, que o recriou pra que fosse fonte de liberdade. Nas fábricas, era comum os trabalhadores, em jornadas extenuantes de mais de 14 horas, terem que exercer suas atividades em pé ou sentados, com os pés quase parados, executando movimentos muito repetitivos com as mãos, como ficou esplendidamente expresso no filme Tempos Modernos (https://www.youtube.com/watch?v=HPSK4zZtzLI), do Charles Chaplin, e o futebol permitia aos trabalhadores mexer as pernas, os pés, sentindo-se mais livres. Nos times de operários, nos times formados por pessoas do povão, era possível viver, ainda que momentaneamente e de modo incompleto, uma sociedade dos trabalhadores, uma sociedade do povo, sem a divisão entre quem manda e quem obedece, entre quem produz a riqueza e quem, sem produzir, fica com a maior parte dessa riqueza. E em que a produção é também, e sobretudo, uma brincadeira. O futebol teve grande importância pra que os trabalhadores tivessem folga aos sábados, pelo menos na parte da tarde. E também na construção de identidade dos trabalhadores. Por mais que a classe dominante consiga, até certo ponto, cooptar os sentimentos do povo em torno do futebol, o povo dribla essa cooptação. Os patrões dizem que time is money. Nós dizemos que nosso time é nuestra plata. E que nuestra plata tem uma lógica diferente da money britânica.

Messi com as Abuelas

Jogadores famosos que se identifiquem com interesses do povo podem, ainda que com contradições, ajudar no sentido do futebol fazer parte mais diretamente da transformação da sociedade atual numa sociedade em que o povo seja seu próprio herói. O Messi e alguns outros jogadores que eram da seleção argentina já participaram de uma ação de propaganda junto com as Abuelas de Plaza de Mayo pra que mais pessoas que, quando eram bebês, foram sequestradas por integrantes da ditadura (1976 a 1983) pra serem entregues a outras famílias pudessem encontrar suas famílias de origem ou pelo menos saber sua história (https://www.youtube.com/watch?v=WlEX8D402a8 – Resolvé tu identidad). O futebol ajudando o povo a resolver a sua identidade, a saber que é povo e que pode, se se organizar e lutar, não precisar mais se sujeitar aos patrões pra conquistar o pão de cada dia. Pra isso, é importante o futebol ser do povo em termos simbólicos, mas também o máximo possível na prática. Isso passa pelo povo jogar futebol do seu jeito, sempre valorizando a criatividade, e construir seus próprios clubes, com seus próprios recursos materiais. La Plata x money.

Jogadores famosos são muito importantes pra nos inspirarmos. Mas, querendo ser Maradona, querendo ser Messi, querendo ser gênios do futebol, criamos nosso próprio futebol. E o nosso futebol do dia-a-dia, o nosso futebol sem fama, o nosso futebol dos campinhos e das quadras de rua, o nosso futebol de rua mesmo, que não passa em nenhuma televisão, é a principal base do nosso futebol de jogadores famosos que encantam o mundo. É aqui que os sonhos se tornam realidade a cada dia, que a brincadeira entorta a sociedade tecnocrática, que amamos o futebol porque, conhecendo ou não a sua história, sabemos que ele nos dá folga das exigências da tecnocracia, que ele nos liberta do trabalho alienante, que ele é nossa obra libertadora.

La Plata x money.

Por uma YPF e uma Petrobrás do povo e integradas

Precisamos lembrar disso também em relação ao nosso ouro negro. A Yacimientos Petrolíferos Fiscales (YPF) até foi em parte desprivatizada em 2012 pelo governo da Cristina Kirchner (http://g1.globo.com/…/cristina-kirchner-assina…), mas precisa ser muito mais desprivatizada. A Petrobras está em plena privatização. Em ambos os casos, é indispensável derrotarmos o imperialismo, a exploração por nacionais e a tecnocracia, que tanto o imperialismo quanto seus sócios minoritários locais utilizam pra tentar nos convencer de que nossas riquezas têm que ser privatizadas, tanto em termos de venda de ativos quanto em termos de privatização da lógica de funcionamento, dos valores, da cultura. De trocarmos La Plata por money. A tecnocracia é de direita, mas está à direita e à esquerda. O ouro negro em nossas mãos é Bola de Ouro e taça da Copa do Mundo erguidas pelo povão. Se o futebol-arte é uma antítese da tecnocracia, temos que lutar por uma YPF e por uma Petrobrás do povo (e pra que se integrem na lógica da Pátria Grande latino-americana) como se estivéssemos jogando futebol-arte numa final de Copa do Mundo, lembrando com saudade dos muchachos-moleques que éramos quando nos encantamos com o futebol, arte do povo.

Ole ole ole ole ole ole ole ola, para vernos gambetear (juntos)…

Antony Devalle é trabalhador da Petrobrás e integrante do grupo autônomo de trabalhadores petroleiros Inimigos do Rei. É um dos fundadores e editores do Portal Autônomo de Ciências.

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