Imagens imprevistas do cavalo-vacina

Por Valentina e LinFranco

Finalmente o 2020 passou. Ano difícil, quem imaginaria. E depois de um tempo afastados da pista para refletir sobre o processo de “descoberta” e produção de vacinas (ver o segundo texto desta saga: O cavalo-vacina e os cuidados para manter a esperança), começamos esta nova volta ao sol, retornando para aquela cena metafórica onde cavalos-vacinas, com suas equipes, investimentos e bandeiras, correm a todo vapor para conseguir se transformar na cura da Covid-19 (ver o primeiro texto da saga: O cavalo-vacina e a negação do tempo).

Nesta segunda visita ao Covidpódromo, percebemos como ele não era um lugar apto para míopes, nem para alérgicos ao pó. Os cavalos vencedores estavam já muito longe, nem dava pra ver até onde chegaram, nem como tinham vencido. Além da distância que separava nossos olhos da ansiada meta, uma grande poeira se levantava pela pista toda. Nossa capacidade de observação era limitada, nem binóculos ajudavam melhor a perspectiva, muito menos a nitidez. A pista estava bagunçada, suja, algo abandonada… como se a corrida tivesse se teletransportado a outra dimensão. A paisagem lembrava a ressaca do carnaval: uma rua abandonada cheia de restos da folia de ontem. Apesar da solidão na área de corrida, os palcos e arredores continuavam lotados. Exaltação, fofocas. Muita gente ainda ocupando e habitando o Covidpódromo. 

Frente ao desconcerto sobre o espetáculo que tinha acontecido, tentamos conversar com algumas personagens presentes, aquelas adeptas ou viciadas nesta corrida do século. Mas o barulho era alto, ensurdecedor. Tinha gritaria de todo tipo, palavras soltas, muitas torcidas (des)organizadas, aficionados desesperados, pequenos apostadores frenéticos, jornalistas caçando informações, as equipes dos cavalos abarrotados de paparazzis, presidentes falando de qualquer outro assunto, curiosos, como nós, perdidos no mar de vozes. Se escutavam também os alaridos dos profetas do boicote. Pregavam sua fé de forma muito criativa por sinal. Falam que nenhum cavalo-vacina prestava, e que era conveniente desacreditar nessas vitórias, que você podia “virar jacaré” e coisas do tipo (Jucá, 21 dez 2020)… Que “só importa Deus” ou “seu histórico de atleta” [o ser humano, é um bicho estranho. Suas artimanhas para fugir da realidade, surreais]. 

Em definitivo o Covidpódromo estava muito doido, complicado entender o que vinha acontecendo. O que sim parecia um fato era que os cavalos-vacinas correram bastante, nem pareciam cavalos, nem pareciam vacinas. Alguns, muito rápidos e bem sucedidos, chegaram à meta, ganharam a prova. Eram alguns chineses, um russo, vários estadunidenses e um inglês… [faltava o cubano e já simulava o quadro de medalhas dos Jogos Olímpicos]. 

Esses cavalos que ganharam se tornaram bastante famosos. Como celebridades pop stars seus videoclipes se replicavam pelo mundo todo, ainda que só marcassem shows naqueles países onde o mercado garantia os ganhos e os Estados financiavam os custos. É isso galera: as turnês sempre começam por casa, e seguem o GPS do dinheiro fácil. 

Interessante foi o que um senhor camelô, que estava vendendo pipoca e coca-cola entre as arquibancadas, nos comentou sobre um grupo de burocratas sonhadores e eloquentes, que no começo da corrida se apresentaram e tentaram organizar um pouco a parada. Segundo o comerciante ambulante, eram uns caras sérios, todos identificados com um crachá da “OMS” (Organização Mundial da Saúde) ou da “Gavi” (Aliança para as Vacinas). Esse grupo queria propor uma “união”, um “plano”, para garantir que as turnês dos cavalos-vacinas fossem mais “igualitários” e chegassem oportunamente a todos os territórios do mundo. O vendedor de pipoca explicou que esses senhores sérios e planejados falavam de um tal “Mecanismo COVAX” (Gavi, 2020) que eles pretendiam conduzir (BBC, 1 set 2020). Faziam lobby. Falavam com alguns representantes científicos, políticos e industriais da importância de “atuar globalmente”. Procuravam assim, “alianças estratégicas” para promover rolês dos cavalos-vacinas por aqueles países com “população vulnerável”. E que juntaram vários seguidores, maioria da Europa, e de locais “subdesenvolvidos” (OMS, 21 set 2020). E parece que conseguiram alguns resultados. Que o plano prometia funcionar, ainda que de forma menos “oportuna”, mas que de algum modo levaria cavalos-vacinas para 20% da população mais pobre e “vulnerável” do planeta (G1 Redação, 18 dez 2020). [Perguntamos para o senhor vendedor se os burocratas de crachá tinham alguma proposta em relação a 80% da “população pobre no mundo” que ficava fora desse cálculo do 20%, mas o bom homem não soube responder. Parece que a galera da COVAX só conseguia contar até duas dezenas]. 

Apesar das tentativas de organização do pessoal da OMS e da Gavi, o clima competitivo e frenético do covidpódromo era outro. Pouco tinha a ver com palestrinhas de “planejamento global”, de tecnicismos epidemiologistas para atingir “objetivos igualitários”… que “isso depois se resolve”, primordial era deixar que a corrida flua, que havia muita pressa e contas que pagar a uns tais “investidores”. Fato foi que a muvuca toda cansou os burocratas logo, e depois dos acordos, tensos acordos, a pista de corrida impôs seus swing, no ritmo da financiada meritocracia. O refrão dizia: “os melhores vencerão”. Assim foi que a corrida se tornou balada, o descontrole foi geral e os burocratas tiveram que embrulhar seus planos e promessas e voltar para seus escritórios, elegantes escritórios, em Genebra (Suíça).

Num cantinho da pista enxergamos uma moça que destoava da cena. Ela estava tranquila, encantadora. Sentadinha no chão, num minúsculo pedacinho de grama que separava o banheiro feminino do masculino, ela olhava a pista de um outro jeito. Pendurada do seu pescoço uma câmera fotográfica, que ela manipulava, e fazia falar em clicks constantes. Nos aproximamos até ela para trocar umas ideias, parecia alguém que podia entender alguma coisa para além da poeira, do barulho e das recentes vitórias. Mas ela não falou muito não. Só disse que estava cansada das notícias, das perguntas, dos curiosos, das certezas e incertezas. Sua “verdade” ia por outro lado. Nos mostrou então tipo um “caderno-álbum”, já bastante manuseado. Continha fotos de seu trabalho na pista, imagens fortes e profundas. 

Fase III. Receios > Cena III. Fotografias da pista

Passamos um bom tempo olhando sua obra. Finalmente, propomos para ela uma brincadeira: íamos selecionar algumas de suas fotos e improvisar um título e um “comentário livre”. A ideia era dialogar com ela a partir de sua arte a fim de tensionar esse diálogo para ver até que ponto esse intercâmbio ajudava a dar um “sentido”, a “pegar a visão” do que tinha e estava acontecendo na pista e nesta nova fase de turnês imunizantes. 

Segue então parte desse diálogo, nada fechado nem coerente. A ideia é que você querido/a/e leitor/a/e, também brinque, se deixe perpassar pelo que as impressões de luz falam para você [no final das contas uma foto é uma impressão de luz]. Sugerimos que leve em conta sua experiência, seus medos e ideais. 

Pode-se inspirar nos parágrafos seguintes, onde relatamos o que essas fotografias evocaram em nós. As imagens, para além de selfies e postagens que massageiam nosso ego, são boas para isso: atuam no nível simbólico, estimulam associações inusitadas, desafiam nossos enigmas. 

Nesta brincadeira, não há respostas certas, nem verdades absolutas. O risco mesmo é se deixar levar, explorar aqueles medos, fraquezas e sagacidades frente à dura e impotente realidade inscrita pela pandemia.

Imagem 1. Queda

Os cavalos-vacinas vitoriosos não são para todes, não. São bichos manhosos. Ensinaram eles a serem seletivos, terem prioridades. Quem não já imaginou conseguir um cavalo-vacina? Montar nele, se mimetizar com ele… Que ele penetre nosso sistema imunológico, nos deixe fortes e resistentes à Covid-19 e, se for possível, a qualquer outro tipo de vírus, bactéria, parasita que coloque em risco nossa saúde? Que seja total e eternamente eficaz e que esteja disponível para todos agora, neste preciso instante! Talvez até nos permita esquecer que somos mortais… que sonho né? Imaginem… que nos permita voltar aos rolês, à vida livre de álcool gel, às salas (de cinema, de teatro, de aula) lotadas… que, no seu galope tranquilo e harmônico, possamos sair de uma vez e para sempre de toda esta doideira de mortes, desigualdades, preocupações e isolamentos. 

Um de nossos medos é cair do Cavalo, sim. Que ele não sirva para conter a doença, seja por falta de eficácia, porque provoca alguma alergia ou porque o mercado internacional de imunizantes está “sem estoque”. Inclusive, porque nossos mesquinhos governos (municipal, estadual, federal) estão “nem aí” para gerir uma campanha de vacinação à altura das circunstâncias. 

Cair do cavalo, dá medo sim. Deve doer bastante. Dá para imaginar o tombo, a vergonha, a frustração, a impotência. O pior é que, conhecendo nosso mundo, sabemos que muitos e muitas vão cair. Talvez individualmente, até possamos nos manter mais ou menos firmes, nos segurar de algum jeito do cavalo, de alguma maneira diminuir o risco de queda. Mas muitas pessoas neste país, nesta região, e em outras iguais ou piores de maltratadas, exploradas, espoliadas, muito provavelmente vão cair. Muitos até nem vão conseguir montá-lo. 

Como explicar senão, que em menos de um ano já existem alternativas imunizantes para a Covid-19, e para outras doenças infecciosas como por exemplo a Malária, (descoberta em 1880) e o Zika (descoberta em 1947) ainda não têm vacina desenvolvida (Costa, Tombesi, 11 dez 2020)? 

Como explicar senão, que as potências mundiais como China, Estados Unidos, Rússia, Inglaterra e os países da União Europeia, (e também alguns bons alunos dos Estados Unidos como México, Israel, Costa Rica e Chile) já estão implementando as campanhas de vacinação, e países “pobres” que assinaram à iniciativa COVAX (como por exemplo, Afeganistão, Burkina Faso, Burundi, Benin), ainda nada (OurWordInData, 2020)? Para além de estruturas socioeconômicas empobrecidas e incompetências dos governos nacionais (alô Brasil), a “partilha” das vacinas não passa de uma nova e atualizada ficção do institucionalismo global, que decora com protocolos, lindas palavras e um “20%” de lavagem de culpas, as injustiças de sempre.   A perspectiva evolutiva, fala que quando sonhamos com alguma queda (que caímos de uma ponte, de um prédio ou num buraco fundo) relaciona-se com um instinto arcaico, que permitia a nossos antepassados não cair durante suas sonecas nas árvores (Ellis, 18 set 2016). Esses sonhos combinam espasmos musculares com imagens mentais, a fim de promover uma resposta fisiológica para reagir e permanecer seguros no topo da vegetação. Quiçá, a queda do cavalo-vacina simbolize algo neste sentido. Um de nossos medos, mais ancestrais e profundos de perda de estabilidade e segurança. Cabe a nós lidar com a fantasia e gerar mecanismos para garantir cavalos seguros e oportunos para todes, seja em Oslo ou em Porto Príncipe, na zona Sul do Rio de Janeiro, ou no sertão paraibano.

Imagem 2. Conquistador

Nas estátuas quem monta o cavalo é o conquistador. Nos países de conquista hispânica, estátuas semelhantes também louvam os “libertadores”, também conhecidos como “heróis da independência”. Curiosa a mensagem que evocam essas figuras equestres de ferro e bronze: nos rampantes cavalheiros se sutura a colonialidade. 

Bem sabemos como a “independência” só mudou as cores das bandeiras e o tipo de contrato social entre vencedores e vencidos, pois essa “liberdade” alterou de fato pouca coisa, mais bem funcionou para aggiornar aquelas relações estritamente coloniais, já vetustas e bolorentas, conforme os novos princípios e instituições liberais (indeed, my darling), muito republicanas, assalariadas, cidadãs e nacionais elas. Tratou-se em definitiva, de uma boa artimanha para garantir a impronta colonial, agora fantasiada de uma institucionalidade mais liberal e endêmica (with new friends), re-inaugurando um novo ciclo de conquista e extermínio. 

O conquistador, como figura que se repete em nossa história, é aquele hábil cavaleiro que decora praças e parques. Aquela personagem séria e altiva, algo terrorífica. Dá pra imaginar o seu ritual de “monta”: olha pra besta, caminha a passo firme, enfia o pé no estribo, senta na cela, segura forte e convencido as rédeas, e usa suas esporas caso o animal se empaque (para maiores informações sobre equipamento equino, consultar Chevaux, 2017). Assim, o conquistador se faz da fera: o “dom”a-”dom”estica-”dom”ina. Esse é seu “dom”: levar o potro ou a égua de lá pra cá, utilizá-lo conforme suas próprias fomes e batalhas. 

Os conquistadores, como na foto, olham para frente, nem sabem muito bem onde pisam, nem pisam aliás, quem conhece o chão são os cascos. O visual desde as costas do cavalo é “elevado”, a sua perspectiva flutua perpendicular ao chão e por cima do horizonte. Nesta posição desconectada (sem solo nem para andar, nem para ver), o compromisso do conquistador com o presente é inversamente proporcional à sua megalomania ansiosa e apropriadora. E para camuflar tal desconexão, cria sua própria mentira: fala de expansão, de grandeza, de coragem, de vitórias. Pouco lhe importa o sangue derramado nesse chão que nunca pisou (mas já lhe “pertence”)… nada lhe importa o aqui e agora pois não consegue mirar para os lados (quem dirá para atrás). Nisso o cavaleiro se parece com a ferra que monta: ambos levam antolhos

Quem aspira a ser conquistador, além de um cavalo, precisa de um objetivo de “dom”inio, suas competências equestres não lhe bastam. Não existe conquistador que não conquiste. O ato de conquistar é o miolo de sua identidade. Assim, o conquistado, o vencido, completa o conquistador, seja como espaço feito território, natureza feita recursos, povo feito súdito ou escravizado, corpo outro racializado e subjugado. 

Todo conquistador, além de um cavalo e de um conquistado (médio e fim do ato de conquistar), também precisa de um espelho: um outro igual, na sua imagem e semelhança, amém. Esse outro, mimético, fixa o limite de suas façanhas, ao mesmo tempo que promove certa retroalimentação narcísica. Desta forma, o ato de conquistar torna-se um bucle compulsivo onde conquistadores supostamente rivais, no ato mesmo de conquistar a materialidade da vida, gozam um do outro por meio de fantasias onanistas onde trocam espelhinhos de si mesmos. Nesse encontro perverso e imaginário, de ver-se espelhado no outro semelhante, se conquistam mutuamente… “conquistar” abrange tudo, até o desejo.  

Por associação livre, lembramos da proposta instigante do antropólogo Mario Rufer (2020), quando a partir de um diálogo entre Foucault, Quijano e Segato, tenta defender a tese de que a raça é um efeito de conquista (não uma causa). Conquista não como acontecimento, mas como estrutura de ação histórica, como princípio organizador na construção da alteridade (e do poder, e do extermínio do outro e de sua temporalidade). [o texto é interessante, recomendamos a leitura porque muito aqui não conseguiremos abordar]. 

Cita a Antonio Carlos Souza Lima (Rufer, 2020, p. 41) para argumentar como a conquista se reedita constantemente em nossa história cuando se combinan os seguintes elementos: 1) uma ação bélica determinada com sua teatralização do poder como conquista semiótica; 2) uma fixação das populações controladas em termos de  pacificação, domínio e extensão territorial; e 3) a imposição duradoura de uma paz necessária por meio da instalação de um poder tutelar com a centralidade do direito na fase republicana. Assim, para o autor: 

[…] Não é que a subjugação pela conquista foi “substituída” pela racialização somatizada ou biologizada das relações sociais. É exatamente o contrário: a conquista é o único acontecimento que não para de acontecer, o único que se reedita sob a evangelização, sob a constituição da cidadania diferenciada ou sob as versões díspares e múltiplas do indigenismo: é, basicamente, solapar a constante matriz bélica da ficção soberana.

Rufer, 2020, p. 40, tradução livre

Voltemos então ao ponto de onde partimos. Que a gente começou este texto falando de cavalos-vacinas numa corrida global pela cura da Covid-19 e acabamos falando da “reedição constante da conquista” (?????). Vão pensar que estamos algo transtornades, provavelmente. A pandemia também afeta a saúde mental (Icict/Fiocruz, 19 out 2020; Pereira et al, 2020). Mesmo assim, o doido foi como uma imagem, nos levou por caminhos tortuosos e impensados. 

Continuando fiéis à nossa brincadeira, seguimos o baile para tentar esse diálogo entre  a reedição constante da conquista e a novela científico-farmacéutica das vacinas contra o coronavírus. [Sim, parece desconectado, uma viagem sideral, né? Pensar de forma não linear e improvisada tem esses riscos].

Vamos então forçar a barra, e explorar a ideia de que a pandemia reedita uma situação de conquista, e a corrida da vacina restabelece a ficção soberana.

Não achamos necessário ilustrar com cifras as marcas do extermínio causadas pela Covid-19. Apesar das teorias conspiranoicas sobre a origem do vírus, é claro que não houve “ação bélica determinada”, mas sim muita morte, desestruturação social, mudança dos modos de vida, perdas incalculáveis. Aliás, a retórica de “guerra ao vírus”, de “combate à doença” foi reiterada e propagada tanto por senhores de estado, como por cientistas, profissionais de saúde e grande parte dos “usuários online”. Neste caos pandêmico, nessa impotência por controlar o desenvolvimento de um vírus de inusitado contágio, produziram-se portanto as respectivas teatralizações de poder. Assistimos várias e variadas, em diferentes línguas, formatos e ideologias (cada quem poderá lembrar a sua cena preferida). 

O vírus, por seus efeitos reais e simbólicos, clausurou os temas e formas de nos relacionar. As conversas versaram sempre nele, com ele, sobre ele; seu drama, suas mazelas, sua capacidade de modificar nossas vidas, de evidenciar problemas de antanho que tentávamos ocultar. A força irruptiva e globalizada do pequeno organismo proteico produziu então certa conquista semiótica, que não só se fez dono de nosso léxico, também entrou em nossas casas e relações, encheu a sala de medos, de telas de bits

A ciência como ferramenta de Estado-mercado fez sua parte, tentou criar “dados”, indicadores epidemiológicos, fixar populações para conseguir dominar o caos reinante, restabelecer, com protocolos de distanciamento e medidas de higiene, algo da “paz” supostamente perdida (como se essa “paz”, realmente tivesse existido antes da pandemia). Assim, os Estados responsáveis, bons alunos da OMS e suas recomendações sanitárias, assumiram de vez sua função tutelar. Os modelos de tutela também variaram. Tinha aqueles que só se preocuparam por distribuir algo de grana, mas omitiram grande parte de ações e medidas sanitárias. Outros foram mais firmes: toque de recolher, nada de muvucas, fica em casa (e se não tem casa, que Deus e a máscara te protejam). A lei se fez corpo, se fez rotina. O direito republicano (que sabemos é para poucos), direito de propriedade e livre mercado, protegeu mais uma vez os “corpos que importam”. E o resto? talvez um 20% tenha sorte e se beneficie das boas intenções do “Mecanismo COVAX”.    

Na epopeia farmacológica contra a Covid-19 podemos imaginar também alguns heróis conquistadores, perdão, “libertadores” da ditadura do vírus. Digamos que são esses senhores de nome estranho, forâneo, que todos os meios de comunicação vêm falando ultimamente (Sinovac, Pfizer/BioNtech, AstraZeneca, Nonavax, Johnson & Johnson, Sanofi/GSK, Curevac, Sputnik-V, Moderna) (Hooker e Palumbo 16 dez 2020).

Era de esperar que esses salvadores estariam associados ao poder reinante do capital biomédico, aqueles mega laboratórios do ocidente imperial (England and USA of course, baby) e seus atuais e necessários “rivais” (中国/China e Россия/Rússia) que com outros alfabetos – mas semelhantes calculadoras – participam do mesmo jogo. Lembram do espelho entre os conquistadores? Bom, também servem para os que “libertam”. 

Com isto não estamos dizendo que não seja preciso vacinar, ou que as vacinas “não prestam”. Temos que tomar vacina sim, pois ela é o remédio imediato possível e viável numa ordem mundial e um sistema de vida que repete seu mecanismo de extermínio/vida: age com violência e destruição para depois impor sua “paz” e seu “remédio” (Segato, 2014). E, enquanto não tivermos outra proposta organizada para conseguir articular uma opção civilizatória menos consumista, desigual e destruidora, é isso gente. Se a vacina agora vai deter a propagação do vírus e proteger nossas vidas (dentro dos limites de gênero, classe, raça dessa proteção sempre excludente), sejamos pragmáticos. A escolha é picar o braço e bola para frente. Sem mistério, sem conspirações, mas sabendo da contingência dos imunizantes frente a organismos bastante escorregadios e camaleônicos como “o corona” (Gorman e Zimmer 30 nov 2020).

Incomoda né? Esta comparação forçada entre conquista e pandemia, entre independências e vacinas. Bom lembrar que muitas conquistas também tiveram suas armas biológicas e seus remédios bíblicos. Acreditamos que neste caso da Covid, a lógica “conquistual” talvez esteja atingindo outros patamares. É cedo ainda para elucubrar conclusões certeiras. Fato é que se a conquista se reedita, neste jogo entre natureza, territórios, governos e corpos, entre morte e vida, vai ter vencedores e vencidos. E infelizmente, sabemos a cor e a paisagem de cada um deles.

Imagem 3. Carrossel

Vocês gostam de carrosséis de parquinho? Desse conjunto tétrico de figuras animais inanimadas, duras e pouco confortáveis, enfiadas como espetinhos girando mortuáriamente numa roda mecânica quase sempre desbalanceada, ao compasso de um som alto e deprimente???? Pensem bem, gostam mesmo de carrosséis? Talvez nossas lembranças possam ser diferentes, e em vocês a associação mais direta com esta palavra remeta uma novela da SBT. Mas quando iam nos parquinhos, escolhiam mesmo o carrossel como brinquedo predileto? Sejam sinceros/as/es e escutem com cautela a criança que ainda bate nos seus corações. 

Uma das figuras clássicas do carrossel são tipicamente esses cavalinhos (geralmente brancos, ou de cores “pequeno pônei”). Nas suas melhores versões, bem semelhantes às da foto. Vocês acham mesmo que os cavalinhos transmitem algo de alegria? Observem com calma, esses olhos e esse pedaço de ferro que atravessa a parte de trás das cabeças dos bichinhos…  cadê a vitalidade, a “boa onda”, a “energia positiva” nesse negócio? 

Carrossel, carrossel, brincadeira chata, para ficar bolada/o/e mesmo. Certa perversão nele? Talvez. Supostamente, a criança deveria “se divertir” montando esses pseudo-animais feitos de um material de duvidosa procedência, atravessados por paus que sobem e descem no decorrer das voltas. Evoca uma natureza morta ou, pelo menos, o extremo da domesticação. Os bichinhos aí inertes, condenados a essa música e a esse “gira que gira”, só pelo estímulo de nossos (falsos) sorrisos.

No carrossel se exemplifica de maneira póstuma a neurose de controle de ocidente (Segato, 2019). Achar que podemos adestrar a (des)ordem natural conforme o nosso modo desconectado de apropriação porno-instrumental da vida. Vida feita coisa, insumo utilizável para nossos desejos mais banais hoje em dia sacralizados no modo consumista e capitalista de garantir nossa apreciada (e europeia) “humanidade”. Como se nós mesmos fôssemos parte de uma “outra dimensão” mais elevada e autorizada, quase divina. Aqui a ciência moderna e o cristianismo secular se encontram, na partilha do especismo de seus dogmas e morais.

É importante acatar a ideia de que, mesmo que esse vírus fosse resultado de manipulação humana em laboratório ou, como certamente é, consequência da forma abusiva com que a espécie tem tratado seu ambiente, ainda assim e de todo modo, seria um evento da natureza. ¿Por que? Porque nós somos parte dessa mesma natureza e, ainda quando capazes, como espécie de manipular microrganismos e provocar o advento de uma nova era como o Antropoceno, temos o nosso lugar aí, fazemos parte daquele cenário que chamamos de “natureza”. Nossa interação bioquímica pertence e desempenha um papel em uma cena dentro do grande ninho que habitamos, embora o pensamento ocidental nos tenha empurrado a nos afastarmos dessa posição contida, interdependente e dependente. Pensar assim não nos é fácil, pois estamos dentro da lógica cartesiana de sujeito-objeto, cabeça-corpo, mente-corpo extensiva. A objetificação e externalização da vida é o nosso mal.

Segato, 2020, p.84, tradução livre.

A partir desta perspectiva, podemos dizer que temos que nos atentar para que os atuais cruzados dos cavalos-vacinas não fiquem presos na metáfora do carrossel. Relativizar nossa fé na sua capacidade de re-harmonizar a “intrusão de Gaia” (Stengers, 2015). Ter certa suspeita das quimeras farmacêuticas. A “vida”, na sua impertinência e imprevisibilidade, vai seguir, intempestiva. Como bem advertem Gorman e Zimmer “a aparição da vacina não vai deter a evolução do vírus” (30 nov 2020) e, muito provavelmente, novas pandemias desafiarão nosso futuro. É que a (des)ordem natural continuará, conosco e para além de nós. Ela sim que está “nem aí” para nossos desesperos e remédios. Ature ou surta.

Por mais que agora a ciência-indústria farmacêutica tenha demonstrado sua potência para frear a propagação de um vírus em tempo recorde, lembremos o que assinala Rita Segato (2020, p. 86) sobre outro desdobramento da radicalidade pandêmica: a possibilidade de reconhecer o fracasso da “ meta por excelência do projeto histórico eurocêntrico [que] é a dominação, cosificação e controle da vida. Acurralar e bloquiar todo imprevisto, toda improvisação, tem sido sua tentativa e relativo sucesso progressivo” (tradução livre). Então pessoal, apesar das tentativas do ocidente para nos encurralar em calendários, rotinas e relógios, é importante introjetar que não todo tempo se limita o tempo todo às manias das previsões e das leis, sejam elas econômicas, históricas ou biológicas. A vida sempre escapa à falsa e arrogante onipotência moderna.

Com estas últimas palavras, damos por finalizada nossa brincadeira com as fotografias. Achamos que talvez funcionou como um convite para descer do cavalo, andar do seu lado, sujar os pés da mesma lama que ele pisa, desvencilhar o conquistador (e o libertador), fugir da chatice coisificante do carrossel. Pode ser que assim possamos mitigar, nem que seja um pouquinho, nossas quedas. 

Encerramos também esta saga tripla sobre a aventura imunológica contra a Covid-19. 

Esperamos que tenham gostado.

Feliz 2021 gente.

Valentina, é comunicadora e pesquisadora social. Mestre e doutoranda em educação em ciências e saúde.
LinFranco é biomédico e mestre em comunicação e informação em saúde. Um dos fundadores e editores do Portal Autônomo de Ciências.

Referências

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Chevaux. (2017). Equipamentos do cavalo. Imagem [Facebook] link
Costa, Camila; Tombesi, Cecília (11 dez 2020).  Coronavírus gráfico mostra tempo que humanidade levou para criar vacinas e recorde para covid-19. BBC News, Brasil. https://www.bbc.com/portuguese/internacional-55232520
Ellis, Jason (18 set 2016). ¿Por qué tenemos la sensación de que nos caemos cuando nos quedamos dormidos?. El País.   https://elpais.com/elpais/2016/07/27/ciencia/1469632885_965986.html
G1 (18 dez 2020).  Países pobres terão 1,3 bilhão de doses de vacinas contra a Covid-19 no primeiro semestre de 2021, diz Covax. https://g1.globo.com/bemestar/vacina/noticia/2020/12/18/paises-pobres-terao-13-bilhao-de-doses-de-vacinas-contra-a-covid-19-no-primeiro-semestre-de-2021-diz-covax.ghtml
Gavi (2020). COVAX List. https://www.gavi.org/sites/default/files/covid/pr/COVAX_CA_COIP_List_COVAX_PR_15-12.pdf
Gorman, James; Zimmer. Carl. (30 nov 2020). La aparición de la vacuna no detendrá la evolución del virus. The New York Times, publicado em espanhol por Infobae. https://www.infobae.com/america/the-new-york-times/2020/11/30/la-aparicion-de-la-vacuna-no-detendra-la-evolucion-del-virus/?fbclid=IwAR2niNK75P905Hp6y0bsIw47efcOUJA0ddEsc7H6v2lUrl_lSaW5BvMmjCg
Hooker, Lucy; Palumbo, Daniele (16 dez 2020). Covid-19: o que as farmacêuticas têm a ganhar na corrida bilionária por vacinas. BBC News, Brasil. https://www.bbc.com/portuguese/geral-55318843
Icict/Fiocruz (19 out 2020). Pesquisa analisa o impacto da pandemia na saúde mental de trabalhadores essenciais. Fiocruz [site oficial]. https://portal.fiocruz.br/noticia/pesquisa-analisa-o-impacto-da-pandemia-na-saude-mental-de-trabalhadores-essenciais
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