Um espectro ronda o Chile: o espectro do Pinochet. Ele morreu em 2006, mas seu fantasma, junto com o da Margareth Thatcher, continua assombrando o Chile. O Pinochet é um Príncipe de Gales do capital no Chile. A Margareth Thatcher é uma rainha do capital. O Pinochet ordenava aos chilenos que cantassem todo dia God save the Queen. Ai dos que não cantassem. O Pinochet beijava a mão da Dama de Ferro Thatcher que abençoava a mão de ferro da Dirección de Inteligencia Nacional, a DINA, dirigida por Manuel Contreras. DINA que foi uma agência central da repressão pinochetista, uma espécie de sucursal da CIA usamericana. E toda CIA serve às companhias do capital. O Pinochet é um Príncipe de Gales que o Príncipe de Gales utiliza pra se disfarçar. É a face da moeda que oculta a própria moeda como face sem face do capital. Cara ou coroa? A cara pode ter coroa, mas the Queen is the money. A face invisível da moeda é a cara; a coroa é a mão invisível do mercado. A face invisível da moeda é a outra face da mão invisível do mercado. A face visível da moeda é o que torna invisível a mão do mercado. A mão da DINA é a mão do mercado condensado em formato de política militarizada. Como o Pinochet é a Margareth Thatcher condensada em formato de política (mais diretamente) militarizada. O Pinochet assombra o Chile. Mas quem assombra o Chile com o fantasma do Pinochet? O capital. Eis o principal Príncipe de Gales. Todos os outros são pseudônimos. Gold save the Queen.
Um espectro ronda o Pinochet: o espectro do povão chileno. Muitos dos seus integrantes morreram pela mão de ferro da DINA. Muitos morreram e morrem todos os dias pela mão invisível do mercado. Pelas mãos da Margareth Thatcher de cada momento. Em 11 de setembro de 1973, no Chile, suas mãos foram as do Pinochet e de outros que participaram da ditadura pinochetista. Foram as mãos dos Chicago Boys, que foram a DINA na economia. Mesmo assim, o povão sobrevive. Junto com alguns outros setores do povo trabalhador, combateu a ditadura pinochetista, que foi uma forma aguda da cotidiana ditadura do capital. Primeiro, resistindo ao golpe. O Allende, que, mesmo não sendo oriundo do povão, já era uma gigantesca expressão dos anseios populares, ecoava séculos de lutas do povo chileno. Mesmo tendo, por acreditar em demasia na “democracia” burguesa e na idéia de militares que respeitam governos que tentam derrotar o capitalismo, deixado o Pinochet chegar ao comando das Forças Armadas, o Allende governou combatendo o Príncipe de Gales. Atuou pra que o cobre, uma das grandes riquezas do subsolo chileno, servisse numa lógica contrária à do vil metal. O Allende foi um anti-Pinochet antes mesmo de saber efetivamente (e tragicamente) quem era o Pinochet. Foi um anti-Margareth Thatcher antes mesmo dela se tornar primeira-ministra do Reino Unido e levar adiante uma guerra de classes contra os mineiros e o conjunto da classe trabalhadora britânica e do mundo e dela tomar seu chá das 5 de sangue com o Pinochet. O Allende resistiu ao golpe pinochetista pagando o preço da sua própria vida. E o povo resistiu como pôde. Não pôde mais em parte porque o governo do Allende não quis armá-lo. O Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR) resistiu na clandestinidade. Já na década de 1980, a Frente Patriótica Manuel Rodríguez realizou inclusive um atentado que, por pouco, não resultou na morte do Pinochet. E, sobretudo, o povão resistiu, do jeito que conseguiu. Não necessariamente de forma mais geral, com uma organização popular ampla, mas resistiu. Em 1988, foi fundamental pra vitória do Não no plebiscito sobre a continuidade do Pinochet como presidente (ditador) do Chile. Nos anos 2000, revoltas estudantis contra o sistema de ensino privatizado e depois manifestações contra o fato do sistema de aposentadoria ser privatizado, ou seja, em ambos os casos, contra o rastro da política econômica pinochetista, oficializada na Constituição, em 1980, foram o prelúdio da revolta de grandes proporções de 2019 que buscou transformar o Chile de laboratório do neoliberalismo em túmulo dessa vertente econômica que aumenta muito as desigualdades sociais, que enriquece muitíssimo os ricos e empobrece muitíssimo os pobres, que destrói o chamado Estado de bem-estar social que o capitalismo estabeleceu no pós-Segunda Guerra Mundial pra evitar o avanço de projetos realmente socializantes. O (neo)liberalismo é o capitalismo sem maquiagem. Por mais que seus defensores o coloquem numa bela moldura.
Prioridade: pão, saúde, educação, aposentadoria
O estallido social de 2019 acabou sendo canalizado pra institucionalidade. Primeiro, com um acordo de paz que o até então acossado governo do neoliberal Sebastián Piñera, beneficiado pelo pinochetismo, conseguiu junto a setores que participavam da revolta de massas. “Essa situação precisa acabar, e isso precisa ser agora”, declarou o Piñera na ocasião, se referindo aos protestos. Essa declaração é praticamente uma demonstração de que a canalização da revolta popular pra institucionalidade controlada pela burguesia tinha como objetivo derrotar o potencial revolucionário da rebelião. Ainda mais considerando que a repressão às manifestações era feroz, com um saldo de mais de 20 mortos, dezenas de milhares de feridos, dentre os quais muitos cegos após terem levado tiros propositais da polícia nos olhos com balas de metal revestidas com borracha, e mais de 28 mil presos, muitos dos quais torturados. Por um lado, a burguesia buscou controlar pela repressão; por outro, com a ilusão. A rebelião foi contra o modelo neoliberal imposto na ditadura pinochetista e mantido no pós-ditadura. Modelo neoliberal inscrito na Constituição herdada da ditadura. Se a burguesia tinha conseguido manter o modelo neoliberal enquanto fingia que não tinha nada a ver com a ditadura pinochetista, por que não conseguiria agora manter esse modelo econômico fingindo estar deixando o povo mudá-lo? Aí é que entra o segundo ponto: um plebiscito, em 2020, sobre a criação de uma Constituinte pra elaborar uma nova Carta Magna. O Sim venceu, e pra que fosse uma assembléia com representantes eleitos especificamente pra esse trabalho, ao invés dos parlamentares do Congresso. Depois, foi feita a eleição em si dos representantes pra Constituinte. O campo geral da centro-esquerda obteve a maioria das vagas. Havia um grau de risco nessa saída encontrada pela burguesia. A de ser aprovada uma nova Constituição que no mínimo limitasse consideravelmente o terreno legal do liberalismo. Mas a burguesia sabia que poderia pressionar a Constituinte e que, mesmo se uma nova Constituição anti-neoliberal fosse aprovada, é mais fácil controlar e até reverter, sobretudo na prática, um resultado institucional do que lidar com as consequências da transformação de uma revolta numa revolução. O estratégico pra burguesia era tirar o povo das ruas. E, assim, a Constituinte desenvolveu os seus trabalhos, sem que o povo estivesse mobilizado no cotidiano nas ruas. Chegou-se ao plebiscito sobre a proposta de nova Constituição, em 4 de setembro deste ano (2022). A maior parte dos votantes foi contra a nova Constituição (https://www.conjur.com.br/dl/texto-constituicao-chile.pdf). 62,55% a 37,45%. Em parte, pela contra-ofensiva da direita, que é tradicionalmente forte no Chile; em parte, porque o governo do Gabriel Boric não corresponde ao que importantes setores da esquerda buscam. Por exemplo, o Boric, que, na eleição presidencial em 2021, derrotou o pinochetista José Antonio Kast, e foi também, em parte, uma canalização pra institucionalidade da grande revolta social dos dois anos precedentes, não libertou os presos durante o estallido social que ainda não tinham sido soltos, manteve repressão em torno dos indígenas mapuches e não implementou mudanças que melhorassem realmente a vida do povo trabalhador chileno. O professor de relações internacionais Gilberto Maringoni analisou um pouco o resultado desse plebiscito no texto A dura derrota do progressismo chileno (https://www.diariodocentrodomundo.com.br/a-dura-derrota…/). Entre outros asectos, ele destaca que “as idas e vindas na elaboração do projeto pesaram e muito, o que foi aproveitado fartamente pelo conservadorismo” e que o identitarismo pode ter esbarrado em resistência. Por setores conservadores da direita, essa resistência é um clássico, enquanto a direita liberal nos costumes impulsiona o identitarismo liberal. Mas talvez tenha havido resistência ao identitarismo em parte considerável do povão. Falar todes não é prioridade pro povão. Ter comida na mesa todo dia, ter acesso a médico, ao trabalho e à aposentadoria são prioridades. Tampouco era do interesse do povão o alinhamento à chamada responsabilidade fiscal, ferramenta da burguesia pra tirar do orçamento dinheiro de políticas públicas socializantes, especialmente políticas que atuem num sentido socializante diretamente nas estruturas da sociedade, ou seja buscando uma mudança da linha econômica. Além do que o Maringoni apontou, a própria canalização da revolta social pra institucionalidade pode ser parte da explicação pro resultado do plebiscito.
United Colors of Benetton
O Boric já disse que vai continuar os esforços por uma nova Constituição. Mas agora de forma ainda mais enquadrada nos limites da institucionalidade burguesa. Pelo próprio Congresso, ajudado por “notáveis”. O risco é grande do resultado ser uma nova Constituição no estilo United Colors of Benetton. Ou seja, uma Constituição liberal, nos costumes e na economia, com uma embalagem politicamente correta e algumas políticas compensatórias pra diminuir a desigualdade social. Uma Constituição que possa não ser mais chamada de pinochetista, mas que seja permitida pelo Banco Mundial. É interessante pra amplos setores da burguesia no Chile tirar a marca Pinochet da sua Constituição. Pra renovar a idéia de que o modelo econômico é outro, mesmo que lhe sejam fetos apenas alguns ajustes. Uma Constituição social-liberal, que poderia ser um documento de missão, visão e política da chamada responsabilidade social de uma transnacional. Que se encaixaria bem como um documento norteador da política de ESG (Environenment, Social and Governance). O Príncipe de Gales fica contente que o Chile não tenha um presidente, mas um Conselho de Administração (CA) pra gerir o país. Gerir. É com esse tipo de vocabulário que que o Príncipe de Gales governa do país, independentemente de que pense estar no governo. Ele governa. Os presidentes só podem gerir. O Príncipe de Gales mantém o Pinochet num baú, como uma relíquia pra direita conservadora e pra The Money, com a eterna ameaça, direta ou velada, de retirá-lo de lá se o povo quiser ele próprio governar ou mesmo se o povo não aceitar os limites da gestão United Colors of Benetton. Se precisar, o Príncipe de Gales pega o fuzil. Se não, basta a varinha mágica do discurso de que técnica é neutra e que o liberalismo é técnico, logo neutro. Com o fuzil sempre por perto. A varinha mágica é seu melhor fuzil, mas ele nunca aposenta a arma de fogo. Com ela, escreveu e continua escrevendo grande parte da sua história.
Temos nosso próprio tempo
Pros trabalhadores petroleiros no Brasil, é importante observar bem o Chile. O Príncipe de Gales implementou o pinochetismo econômico na maior e mais estratégica empresa do Brasil: a Petrobras. Ao mesmo tempo em que estimulou a gestão United Colors of Benetton. Duas faces da mesma moeda. Que encobrem a moeda como ditadora do tempo. Do time is money ao money is time. Um só time, diz a propaganda liberal na Petrobras. Um só time. Um só time. Cronometrado. Controlado. Um só time. O da moeda. Time is money. Money is time. Na luta contra a privatização tecnocrática em curso avassalador na Petrobras, precisamos de movimentos táticos, com alguma flexibilidade, que incluem (e muito) a institucionalidade burguesa, ainda que sempre tentando pressioná-la pra que seja alargada, mas precisamos, muito mais ainda, como linha estratégica, pensar e agir buscando um estallido social que possa se tornar revolução. Precisamos pensar e agir pra descolonizar o tempo. O tempo não pode ser do Príncipe de Gales. O tempo não pode ser the money. Temos pouco tempo. Mas precisamos ter nosso próprio tempo. Temos nosso próprio tempo…
Um espectro ronda a Petrobrás: a campanha O petróleo é Esso. Que tem várias faces na moeda. Só com os petroleiros se tornando povo o Príncipe de Gales deixará de assombrar o dia-a-dia na empresa que, em grande medida, define pra onde vai o Brasil. Povo x Príncipe de Gales: batalha decisiva de cada dia. Uma espécie de plebiscito, em forma de batalha diária. Não nos esqueçamos: temos pouco tempo, mas temos nosso próprio tempo!
Temos nosso próprio tempo…!
Antony Devalle é trabalhador da Petrobrás e integrante do grupo autônomo de trabalhadores petroleiros Inimigos do Rei. É um dos fundadores e editores do Portal Autônomo de Ciências.