Queimam os corações

(Sobre)Viver no Brasil tem se tornado cada vez mais difícil. O incêndio na Cinemateca de SP — mais uma das tragédias anunciadas tão frequentes em nossas terras — é mais uma árvore queimada em uma floresta em chamas. Estamos em chamas, e não é aquele fogo transformador, transmutador da matéria. Enquanto os alquimistas demoram de chegar, queimamos nossas almas, nossa cultura, nossa ciência, nossa memória, nossas florestas. Quisera tivéssemos a veia destrutiva-transformadora de Shiva ou Bakunin. Quisera procurássemos a ordem na anarquia, mas não, Proudhon, ainda não chegamos lá. Por ora, temos fogo e mortes.

Mais uma vez o que se chama de tragédia deveria ser chamado de outra coisa. No dia 12/04/2021 os trabalhadores da Cinemateca de SP lançaram um manifesto já apresentando os riscos. Não pode ser tragédia o que foi avisado. A quem interessa esse descaso? A quem interessam as mortes físicas e simbólicas? Afinal, não podemos esquecer que o incêndio em nossa memória coletiva não está isolado. As mortes simbólicas se somam às mortes físicas dos corpos daqueles e daquelas que se foram com a pandemia. Com vírus, ou fome. Com doença, ou miséria.

E estamos afundados na miséria. Miséria financeira, cultural, intelectual, de caráter. Quem vem acompanhando a CPI da COVID-19 (agora em recesso), vê isso tudo escancarado. Não só pelos dados, pelas informações, mas também pelas atuações tanto de depoentes quanto de deputados. Da lengalenga do “vou permanecer em silêncio” aos absurdos como dizer que a Fiocruz tem um pênis am sua entrada, é o que vemos diariamente nos depoentes. Do outro lado, a base governista no senado é completamente vergonhosa. Suas declarações deixam muito claro o baixíssimo nível (em todos os possíveis sentidos) que têm. Chega a ser risível. O famoso “cômico, se não fosse trágico”. E nós, espectadores, que lutamos em outros espaços, mas no que diz respeito à CPI, só assistimos, nós nos vemos em um lugar de apoiar, torcer, alegrarmo-nos com as falas de grandes canalhas já conhecidos da política. Mas o poço em que estamos é tão grande, que mesmo esses famosos canalhas se tornam um contraponto à barbárie desse fascismo à brasileira. Chegamos ao ponto de olhar figuras como Omar Aziz como nosso “malvado favorito”, como bem diz um amigo.

É de fato uma barbárie. Um incêndio generalizado. Não é só a Cinemateca queimando. São os nossos sonhos, as nossas conquistas, os nossos avanços. É também o negacionismo de esquerda, os partidos se reunindo com a PM e criminalizando o bloco autônomo, o dogmatismo e autoritarismo entre os nossos. São os cortes de bolsas, de investimento em ciência e tecnologia, a exoneração de funcionários que insistiam em mostrar ao mundo os dados alarmantes da situação em que vivemos, é o cancelamento do censo de 2021, são professores e pesquisadores da saúde insistindo no retorno às aulas presenciais, enquanto a educação teve um aumento de 106,7% de desligamento por morte entre 2020 e 2021; enquanto a COVID-19 já se torna a maior causa de morte entre jovens de 10 a 19 anos. Ter que ouvir pesquisadores da saúde, de esquerda, que lutam contra a pandemia defender o retorno presencial é duro. É grave. Ter que ouvir de militantes libertários que estamos negando a realidade quando defendemos a quarentena também.

Meu coração queima de desilusão. Do jeito que estamos, muitos incêndios já vieram, e tantos outros virão. Com nossa memória atacada, temos ainda que lembrar que em 2018 assistimos outra tragédia anunciada: o Museu Nacional em chamas. Em 2015, foi o Museu da Língua Portuguesa. Dias atrás foi o servidor do CNPq, que ainda não temos certeza se tem backup. Isso sem falar em Roberta, mulher trans queimada viva em Recife. Por mais que estejamos em uma situação terrível, não podemos esquecer que o descaso e os ataques não começaram agora, com esse governo. Já temos a emenda constitucional nº95, do teto dos gastos; a reforma do ensino médio, reforma trabalhista, reforma da previdência, e estamos no risco de sofrermos também com a reforma administrativa (que assustadoramente tem sido muito pouco falada, apesar de suas graves consequências). Até onde vamos chegar?

Luzia, ó Luzia, por onde você andará? Quantos mais te acompanharão? Quantos mais chorarão pelas perdas? Quantas lágrimas ainda sobram em nossos corpos? Com tantas pessoas negras assassinadas pela polícia, com tantas mulheres assassinadas pelos seus companheiros, tantas outras estupradas por familiares, amigos, desconhecidos, com tantas crianças abusadas, tantas pessoas LGBT assassinadas, com tantas pessoas passando fome e frio nas ruas, até quando conseguiremos chorar? Me entendo como um revoltado desde sempre, sempre criticando tudo e todos (provavelmente até demais), mas hoje eu só me sinto cansado. Cansado e triste. Mas na esperança de que apesar das queimadas, apesar do céu nublado, o sol há de brilhar mais uma vez. Mas não sem luta. Lutemos. Revoltados, cansados, tristes, mas lutemos. Se (sobre)viver tem se tornado tão dificil, sem lutar é impossível.

Jorge Vitral é físico, mestre em educação e é um dos fundadores editores do Portal Autônomo de Ciências.

Leituras sugeridas:

http://observatorioseguranca.com.br/wp-content/uploads/2021/07/REDE-DE-OBS_2_A-VIDA-RESISTE-_ALEM-DOS-DADOS-DA-VIOLENCIA.pdf

https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/arquivos/downloads/8132-atlas-da-violencia-2020-infografico.pdf

http://observatorioseguranca.com.br/wp-content/uploads/2021/03/REDE-DE-OBS_ELASVIVEM-1.pdf

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