Democracia? Só se for direta, e olhe lá…

Por: Guilherme Santana

Todo ano par é a mesma história e não será diferente dessa vez. Mesmo em uma pandemia, diversas questões em jogo, retirada de direitos, avanço do capital em vários aspectos sociais, temos no meio de tudo isso mais uma das tantas eleições que temos de dois em dois anos. Aquele jogo político de cartas marcadas que até hoje preserva muito do que Victor Nunes Leal relata em seu clássico “Coronelismo, enxada e voto” que teve sua primeira publicação no ano de 1948 mas que permanece extremamente atual.

Leal mostra detalhadamente como funcionavam as relações de poder e ascensão a cargos políticos no Estado nas primeiras décadas do século XX no Brasil, que ainda tinha uma votação bem limitada pois poucos poderiam se candidatar. Por ser um país agrário-exportador quem tinha o poder político local eram os coronéis. A implementação da política pelos coronéis (que eram na maior parte das vezes candidatos ou mesmo políticos profissionais locais) era por meio da força. Essa coerção por meio do voto ficou conhecido como voto de cabresto.

Importante reforçar que essa prática existe ainda hoje nos interiores do país ou foi ressignificada por meio de compra de votos (prática que existia naquele período que Leal descreve em sua obra e se chama clientelismo) das diferentes formas possíveis. Atualmente a compra de votos se sofisticou com as redes sociais, fazendas de fake news, pastores evangélicos usando seus aparatos econômicos em nome da fé, além de empresários e banqueiros envolvidos nesse processo desde sempre.

Daí que chega esse momento pré-eleitoral e a imprensa com sua propaganda a todo instante para a população ir às urnas, exercer sua cidadania e “fortalecer a nossa democracia”. Mas a gente já viveu em alguma democracia? Se pensarmos no sentido etimológico da palavra (DEMO=POVO; CRACIA=PODER), em tese o povo deveria exercer o seu poder no cotidiano em um ambiente democrático onde vivemos nesse regime. Acredito que estamos muito longe disso, não só aqui mas em quase todo o mundo. Pouquíssimas sociedades vivem em uma democracia, ou seja, quase nenhum povo exerce seu poder de forma efetiva e na prática.

No campo da esquerda, diferentes correntes socialistas (de sociais democratas até anarquistas) chamam esse regime de democracia representativa burguesa ou simplesmente democracia burguesa. Algumas dessas correntes socialistas participam do jogo eleitoral de dois em dois anos fazendo críticas ao processo mas com a desculpa que é um meio de intervir e expor suas ideias, com seus candidatos e representantes de tempos em tempos. Já outras correntes mais à direita do espectro político como alguns liberais dizem que o voto é a expressão máxima do cidadão poder exercer sua função política, exaltando o sufrágio universal (voto universal), logo igualando democracia com o voto.

Wallace de Moraes, cientista político da UFRJ, a partir de uma tradição anarquista que busca retomar e reivindicar o ideal e a prática da democracia direta, diz em seus livros que vivemos sob um regime plutocrático. Lembro aqui que plutocracia é um conceito antigo que significa em termos gerais “governo dos ricos”. Moraes defende que somente a teoria anarquista questiona as instituições de forma profunda e aponta para uma sociedade sem Estado, logo a dicotomia trabalhada pelo autor é a de “governantes e governados”. Se o povo não governa, em lugar nenhum do mundo não vivemos numa democracia, por sua vez, quem detém os poderes nos Estados-nação é a elite econômica.

Por isso Moraes diz que vivemos sob uma plutocracia no Brasil ao longo de todo o século XX até os dias atuais. Tal plutocracia varia de governo para governo, e tem seus perfis de acordo com seus representantes, partidos e grupos políticos, mas quem governa no sistema capitalista são os ricos, ainda mais num país na periferia do sistema em geral como é o Brasil.

No campo anarquista existe um debate longo a respeito da noção teórica e prática de democracia, e há também divergências sobre o assunto. Eduardo Colombo, por exemplo, é um dos famosos anarquistas que busca seguir uma linha de rechaçar a ideia de democracia e afastá-la dos ideais libertários. Colombo não é o único que defende essa tese que associa a ideia de democracia à representatividade.

Já David Graeber faz parte de outra corrente libertária, que em seus textos entende a democracia como uma questão que pode e deve ser construída para além da representação. Para isso, o antropólogo estadunidense se aprofunda em eventos da história interpretando que a democracia sempre foi considerada “maldita” pelas elites políticas ao longo do tempo, e que na virada do século XVIII para o século XIX foi começando a ser apropriada por essa mesma elite com claros interesses políticos. A própria institucionalização do voto universal nos Estados Unidos e Europa foi um mecanismo de cooptar e conter setores que se rebelavam ou buscavam se auto-organizar em diferentes contextos na história.

Entendo que a noção de democracia precisa ser disputada e não tem absolutamente nada a ver com o voto e eleições de dois em dois anos. É possível e é necessário avançarmos no debate sobre o que é democracia e que democracia queremos. Além de dizer qual forma de democracia a gente tem condições de construir.

Partindo da ideia de que os fins não justificam os meios é importante estarmos atentos e entender que a ideia de democracia direta não é e muito menos precisa ser estática, muito menos ligada somente a forma e prática da democracia grega clássica. Nesse sentido, cabe atualizar e reforçar que outras formas de democracia direta sempre foram e seguem sendo possíveis e aplicadas hoje em dia.

Nós somos ensinados a naturalizar a existência da democracia vinculada ao Estado e suas instituições. Funciona quase que de forma metafísica para algumas correntes políticas para justificar suas atuações e legitimar esse processo viciado que de democrático não tem nada (lembrando que o voto no Brasil é obrigatório e mesmo assim na última década o número de abstenções, votos nulos e brancos tem sido bem altos nos pleitos eleitorais).

Diante desse cenário de quase naturalização de associar a democracia ao voto, não trabalhamos na cabeça a ideia de que a democracia em si é uma construção histórica. Hoje existem populações com milhões de pessoas vivendo a partir de outras lógicas de democracias, partindo da prática política auto organizada sem vinculação ao estado como em Chiapas, no México, e em Rojava, no Curdistão.

Por isso que ao invés de gastar energia de dois em dois anos (e nesse intervalo de tempo pouco se discute ações políticas concretas), por que não buscamos entender as necessidades mais urgentes onde seria importante intervirmos de forma coletiva onde moramos, trabalhamos, estudamos e atuamos diariamente? Será que precisamos sempre recorrer a políticos do legislativo ou executivo para atuar politicamente? A população pobre nas periferias em geral sempre “se virou” e ao mesmo tempo segue sendo massacrada pelos agentes de segurança pública. Tudo em nome de uma ordem que se diz democrática, não é? Mas será que essa mesma população consegue sobreviver sem intervenção do estado ou o estado mais atrapalha do que ajuda com seus políticos?

É preciso dialogar, avançar no sentido de mudança da cultura política em geral para transformar esse ideal em ação. Ideal esse que é o de buscar participação e intervenção de forma direta junto com quem trabalha, estuda e/ou seja da nossa vizinhança.

Ou seja, entendemos que atuar na construção de mecanismos que melhorem nossas vidas  sem intervenção de políticos profissionais sempre foi saída no passado, atualmente e permanecerá sendo no futuro, com ou sem políticos para dar uma “ajudinha” quando é conveniente.

Por esses motivos acreditamos que democracia é algo que está sempre a se construir, de baixo pra cima, onde moramos e atuamos profissionalmente ou de outras formas, e não necessariamente tem a ver com a chamada “real politik” que muitos cientistas políticos chamam tradicionalmente.

É preciso defender a radicalização da democracia.

É urgente reforçar e colocar em prática de que democracia de fato só se for a direta, do povo e para o povo.

O resto é um teatro que engana a população e assim muita gente acaba acreditando que está exercendo seus direitos políticos, quando na verdade está corroborando com um sistema que é feito para dar certo para a mesma casta política que governa de forma direta ou indireta há décadas e séculos o país (e o mundo se pensarmos bem) e exclui esse mesmo eleitorado que está sendo “representado” segundo as regras do jogo institucional.

Guilherme Santana é professor do Pré Vestibular Machado de Assis no Morro da Providência, militante no campo da educação popular e libertária, é formado em Ciências Sociais pela UFRJ, mestre em educação pela UFRJ, doutorando em história comparada pela UFRJ, editor da Revista Estudos Libertários da UFRJ, é pesquisador do Observatório do Trabalho na América Latina da UFRJ (OTAL-UFRJ) e professor de sociologia da Rede Estadual de Educação do RJ.

Referências

COLOMBO, Eduardo. Democracia e poder: a escamoteação da vontade. São Paulo: Intermezzo Editorial, 2016.

GRAEBER, David. Um projeto de democracia. São Paulo: Paz e Terra, 2015

LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira. 1997.

MORAES, Wallace de. Governados por quem? Diferentes plutocracias nas histórias políticas de Brasil e Venezuela. Curitiba: Editora Prismas, 2018.

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