Como Maradona contra os ingleses

Nesta sexta 30 de outubro, o Maradona completou 60 anos. DIE60, como a Associação de Futebol Argentina (AFA) com criatividade escreveu seu nome em diversas homenagens, foi um craque. Gênio do futebol. Um dos melhores da história. Com habilidade mágica e muita paixão, Don Diego Armando Maradona teve o seu auge na Copa do Mundo de 1986, no México. Fez jogos memoráveis, como nas vitórias por 1 x 0 contra o Uruguai do mui talentoso Enzo Francescoli, por 2 x 0 contra a Bélgica (com dois golaços seus) e por 3 x 2 na final contra a Alemanha (na época, Alemanha Ocidental, por conta da Guerra Fria), após a qual levantou a taça.

Mas o mais épico de todos, um dos mais simbólicos da história do esporte, foi Argentina 2 x 1 Inglaterra, nas quartas-de-final, no qual marcou dois dos mais comentados gols de todos os tempos: o primeiro, com la mano de Dios, quando “cabeceou” com o punho cerrado (próximo à cabeça, pra disfarçar, e porque era a forma como conseguiria alcançar a bola), e o segundo, considerado por muitos o mais bonito de todas as Copas, no qual driblou grande parte do time inglês desde o meio-campo até o goleiro. Golaço eternizado na narração-moldura (ela própria emoldurada) de Víctor Hugo Morales: “La va a tocar para Diego, ahí la tiene Maradona, lo marcan dos, pisa la pelota Maradona, arranca por la derecha el genio del fútbol mundial, deja el tendal y va a tocar para Burruchaga… ¡Siempre Maradona! ¡Genio! ¡Genio! ¡Genio! Ta-ta-ta-ta-ta-ta-ta-ta… Gooooool… Gooooool… ¡Quiero llorar! ¡Dios Santo, viva el fútbol! ¡Golaaazooo! ¡Diegoooool! ¡Maradona! Es para llorar, perdónenme… Maradona, en recorrida memorable, en la jugada de todos los tiempos… Barrilete cósmico… ¿De qué planeta viniste para dejar en el camino a tanto inglés, para que el país sea un puño apretado gritando por Argentina? Argentina 2 x Inglaterra 0. Diegol, Diegol, Diego Armando Maradona… Gracias, Dios, por el fútbol, por Maradona, por estas lágrimas, por este Argentina 2 x Inglaterra 0.” Obra de arte que está no museu do coração do povão argentino e de todos os que amam o futebol como quem joga na várzea sonhando em fazer a jogada de todos os tempos e se dedicando de corpo e alma pra isso.

Dulce de leche é melhor que marshmallow

Essa partida, com esses dois gols, foi especial (também) porque foi anti-imperialista. Simbolicamente, o Maradona mostrou que é possível a Argentina não ser dominada pela Inglaterra. E que essa possibilidade passa principalmente pela Argentina ser do povão. El Pibe de Oro, apelido-epíteto público do Maradona, é a síntese genial de milhões de pibes pelas canchas das periferias argentinas, de tantos moleques da imaginação dos subúrbios, de um montão de olvidados que escrevem seus próprios sorrisos e a felicidade de tantos companheiros com dribles, passes (de mágica) e gols, recriando o futebol à sua imagem e semelhança, fazendo do futebol a utopia realizada no dia-a-dia. O Maradona mostrou que a Argentina pode vencer o imperialismo se quiser ser Argentina, em vez de desejar ser um (sub-)lorde inglês. Se quiser expressar a sua arte, em vez de tentar imitar a linguagem tecnocrática de mister and miss, do big boss. Não será sempre fácil. Muitas vezes será extremamente difícil. Meticulosamente ou na força bruta, a tecnocracia vai buscar trancar os espaços, inclusive transformando em mercadoria a arte popular e pintando de ouro (falso) os seus símbolos pra que queiramos utilizá-los como uma coleira com um pingente gigante de cifrão. Vai tentar nos fazer crer que Mary é melhor que Maria, que gestão ativa de portfólio na atual Petrobras não é privatização, que marshmallow é melhor do que dulce de leche, que a Bolsa vale mais do que o pão, que o arranha-céu é melhor do que o céu. Que a técnica é melhor do que a arte. E até, quando não conseguirem nos convencer de outra forma, que a arte é só técnica (e que essa técnica é neutra). Nos convencer de que o mundo deve ser governado por um software é um dos aspectos mais poderosos do softpower da tecnocracia.

Não se trata de endeusar o Maradona ou mesmo o povo, por mais que seja interessante (e até certo ponto importante) adorar la mano de Dios e a (ir)reverência das camisas com esse tema na calle Pueyrredón, em Buenos Aires, e do neologismo D10S pra se referir a esse grande camisa 10 da seleção argentina. O Maradona é atuante em manifestações de esquerda, costuma criticar as oligarquias, defende e é defendido pelas Madres de la Plaza de Mayo… Mas também cometeu muitos erros, se deslumbrou, aceitou ser útil à sociedade do espetáculo… O povo está cheio de canalhas, de mesquinhos que praticam, em sua escala, pecados do capital. Está cheio de anti-povo no povo. E também, ainda muito mais, está cheio de gente que, apesar de tudo, não está disposta a participar da criação e da realização da jogada de todos os tempos, mesmo que se anime pra ser seu espectador-torcedor. O povo não é uma “neutralidade” de “esquerda”. Mas o povo é quem pode realmente fazer uma jogada de todos os tempos. Sem o povo, não haveria o sonho O Maraca é nosso. Não haveria O petróleo é nosso. Não haveria revolução. A rima do povo é pobre: faz bola de meia costurando pão e mulequi bão. Pé no chão com imaginação. A rima do pobre é povo: arroz com feijão, golaço do povão. O tesouro, no subsolo do poema, escrevemos com nossas próprias mãos. A rima rica do povo pobre se chama mutirão.

Do Jogai por nós ao Joguemos por nós

O povo pode ser Maradona contra os ingleses. O povo pode ser campeão do mundo. Pra isso, precisa ser um punho apertado gritando por si próprio. Os ingleses da nossa partida são os que privatizam a Petrobras (incluindo os que participaram da fase da privatização que roubou o acento da Petrobrás). São os que, com isso, cavam ainda mais o abismo entre a oligarquia e povo. Os que enterram ainda mais numa cova rasa, como indigente, a possibilidade de justiça social no nosso país. Que aprofundam a colonização do Brasil. Que tratam os números (dos cifrões) como pessoas e as pessoas (do povo) como números. Os petroleiros precisam se transformar em povo e jogar como o Maradona contra os ingleses. Não que o povo precise esperar os petroleiros. Mas os petroleiros como povo com o povo trariam muito mais chances de vitória. Torcedores da fiel torcida corintiana criaram o quase-versículo de oração Jogai por nós, que recitam nas partidas do seu time de (c)oração. Pratiquemos o Joguemos por nós.

Antony Devalle é trabalhador da Petrobrás e integrante do grupo autônomo de trabalhadores petroleiros Inimigos do Rei. É um dos fundadores e editores do Portal Autônomo de Ciências.

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