Esse texto foi escrito por Aline Ricci.
Atualmente estamos passando pela maior crise humanitária da nossa geração. Começar o texto com essa frase me causa um grande impacto, pois, no final de dezembro de 2019, quando comecei a ter acesso a notícias sobre o coronavírus, não imaginei que a situação chegaria a esse ponto. A forma como a doença avançou pelo mundo e como se propaga pelo Brasil, deixa claro que estamos vivendo algo sem precedentes.
No Brasil, segundo dados do Ministério da Saúde, temos 828.810 casos confirmados da doença e 41.828 óbitos no país (dados acessados no dia 13 de junho de 2020), isso sem levar em conta as subnotificações. Por conta da facilidade de transmissão e do alto grau de letalidade da doença, a rotina de todos precisou ser alterada. Neste momento, vivemos tentando ajustar a nossa vida à quarentena (para aqueles e aquelas que têm o privilégio de poder ficar em casa nesse momento) que nos foi imposta por conta do vírus. Sem dúvida, em pouco tempo, muitas coisas mudaram: a nossa forma de se relacionar com os outros, a economia, as políticas, nossa relação com o consumo, a forma como trabalhamos, estudamos.
Como professora de Educação Infantil (crianças de 0 a 6 anos de idade) da rede municipal do Rio de Janeiro, trabalhei de forma presencial até o dia 14 de março, quando a prefeitura interrompeu as aulas. Apesar disso, o prefeito decidiu manter as escolas abertas, em horário reduzido, para oferecer almoço aos alunos atendidos pela rede. Se as aulas foram interrompidas para evitar aglomeração e a propagação do vírus, como manter as escolas abertas para o almoço? Isso não estaria indo contra a determinação de se evitar aglomerações? Essa decisão prejudicou o setor mais fragilizado da educação: merendeiras, porteiros, agentes escolares, que teriam que estar nas escolas para prestar esse atendimento. Justamente esse é o segmento que sofre, há muito tempo, com baixos salários, carência de quadros por falta de concurso público. O Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação do Estado do Rio de Janeiro (SEPE) entrou com uma ação na justiça pedindo o fechamento total das escolas. O pedido foi atendido e as escolas fechadas.
Recebi alguns questionamentos em minhas redes sociais por compartilhar da opinião de que as escolas deveriam ser totalmente fechadas. Algumas pessoas disseram: “as crianças precisam comer”, “tem aluno que a única refeição que faz é na escola”. Infelizmente, sei que essa é a realidade de muitas crianças e adolescentes que frequentam as escolas públicas do país. Porém, seria essa a única alternativa possível para ajudar quem precisa dessa refeição? Qual a intenção da prefeitura com essa medida? Durante a crise da saúde em 2009, por conta do vírus H1N1 (conhecido como “gripe suína”), por exemplo, a prefeitura distribuiu alimentos diretamente às famílias que mais precisavam, sem a necessidade de abertura das escolas. Tudo isso me fez pensar sobre a concepção que se tem de escola. Qual é a função da escola pública? Suprir carências?
As primeiras tentativas, no Brasil, de se organizar espaços de atendimento à criança pequena surgiram com um caráter assistencialista, com o objetivo de ajudar as mulheres que trabalhavam fora de casa. Devido ao impacto causado pela revolução industrial, as mulheres entraram em massa no mercado de trabalho, mudando a forma familiar de cuidar e educar os filhos. Com as mulheres trabalhando fora de casa, com quem ficariam seus filhos e filhas? Questões como o alto índice de mortalidade infantil, a desnutrição e o número grande de acidentes domésticos, fizeram com que alguns setores da sociedade, especialmente os religiosos, empresários e educadores, começassem a pensar num espaço de cuidados da criança fora do âmbito familiar. De maneira que foi com essa intenção ou com esse “[…] problema, que a criança começou a ser vista pela sociedade e com um sentimento filantrópico, caritativo, assistencial é que começou a ser atendida fora da família” (DIDONET, 2001, p. 13).
Enquanto para as famílias mais abastadas pagavam uma babá, as pobres se viam na contingência de deixar os filhos sozinhos ou colocá-los numa instituição que deles cuidasse. Para os filhos das mulheres trabalhadoras, a creche tinha que ser de tempo integral; para os filhos de operárias de baixa renda, tinha que ser gratuita ou cobrar muito pouco; ou para cuidar da criança enquanto a mãe estava trabalhando fora de casa, tinha que zelar pela saúde, ensinar hábitos de higiene e alimentar a criança. A educação permanecia assunto de família. Essa origem determinou a associação creche, criança pobre e o caráter assistencial da creche. (DIDONET, 2001, p. 13).
Longe de querer dar uma resposta única e definitiva sobre a questão da função da escola pública, penso que conhecer e entender sobre o contexto de seu surgimento é fundamental para compreender as necessidades e organização dessas instituições. Ainda falando especificamente da Educação Infantil, apenas em 1996, com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996), foi definida como a primeira etapa da Educação Básica.
A partir da Lei 9394/96, que estabelece novas diretrizes e bases para a educação nacional, o atendimento a crianças em creches (até 3 anos de idade) e pré-escolas (de 4 a 6 anos) constitui a educação infantil, nível de ensino integrante da educação básica. Esta condição, ao mesmo tempo que rompe com a tradição assistencialista presente na área, requer um aprofundamento do debate acerca de quais seriam os modelos de qualidade para a educação coletiva de crianças pequenas. Essa condição rompe com a visão assistencialista presente na educação infantil (OLIVEIRA, 2002, p.35)
Esse ranço assistencialista ainda perdura até os dias de hoje. Por isso, muitos não questionam o fato de abrir as escolas, em meio a uma pandemia, para servir refeições às crianças. Recentemente a prefeitura do Rio elaborou um planejamento para a reabertura gradual da cidade. O plano, dividido em fases com duração de 15 dias cada, propõe a abertura das creches municipais na fase 3. Porém, somente para as crianças a partir dos 2 anos, desde que os pais estejam trabalhando. Pergunto novamente: qual a função da escola pública? A escola vai abrir para alguns e não para outros? Aquelas que não podem ir, pois os pais não estão trabalhando, serão prejudicadas? Aquelas que vão ter que passar horas do seu dia em um espaço coletivo, em meio a uma pandemia, serão prejudicadas? Escola é um direito da criança, mas, nesse momento, isso parece pouco importar.
O documento “Para um retorno à escola e à creche que respeite os direitos fundamentais de crianças, famílias e educadores” (CAMPOS et al., 2020), afirma que para se pensar a reabertura das escolas e creches é necessário um amplo debate e busca de entendimento entre diversas áreas de conhecimento, diferentes grupos profissionais e distintos setores das políticas públicas, nos níveis municipal, estadual e federal. Antes de tudo, deve-se pensar nos direitos das crianças e em segundo lugar nos direitos dos familiares que foram surpreendidos por uma situação de mudança em suas rotinas e condições de sobrevivência. Deve-se levar em conta ainda o direito dos profissionais da educação, que também estão enfrentando uma situação para a qual nenhum de nós foi preparado em sua formação profissional.
Antes de cogitar reabrir as escolas públicas, é necessário, ainda, pensar em algumas questões fundamentais. Apresento aqui algumas: as salas de aula vão ter estrutura adequada para o retorno? Na rede municipal do Rio de Janeiro, na Educação Infantil, há em média 27 crianças por turma. Como evitar aglomeração nessa situação? Vão ser disponibilizadas máscaras, viseiras, luvas, termômetros, álcool gel? É necessária a troca de máscaras depois de um período de horas, como vai ser esse processo com as crianças pequenas? Como manter as crianças usando máscaras durante todo o tempo em que estiverem na escola? Não há pessoal de limpeza suficiente nas unidades escolares para garantir a higienização dos livros, brinquedos e de todo o espaço escolar, isso vai ser resolvido pela prefeitura? A prefeitura já realizou o levantamento do quantitativo de profissionais com doenças pré-existentes e que fazem parte do grupo mais vulnerável?
Escolas fechadas: o que fazer com as crianças?
Nesse período de pandemia, com as escolas fechadas, surgiu a preocupação sobre como ficaria o ano letivo das crianças e adolescentes da educação básica. O calendário escolar deveria ser suspenso? Aulas on-line? Ensino remoto? O que fazer? Acredito que, antes de tudo, devemos nos perguntar o que realmente é importante nesse momento. A cada dia que passa, acompanhamos pela mídia e por relatos de conhecidos e familiares as notícias de pessoas próximas que morreram ou que precisaram ser internadas por conta desse vírus. O momento é delicado. Mantenho contato com familiares das crianças da minha turma, alguns disseram que tiveram a carga horária de trabalho reduzida, consequentemente o salário também diminuiu. Qual será a preocupação deles nesse momento? Como será que estão as crianças?
Tenho acompanhado através de relatos de professoras que conheço e também pelas redes sociais, as soluções encontradas para esse momento: atividades remotas, plataformas para atividades em EAD (Educação a Distância), envio de vídeos e atividades através de grupos de Whatsapp. Todas as soluções são no formato on-line. Pode ser difícil para alguns conceber que ainda há pessoas que não têm computador em casa ou acesso a internet, porém essa é a realidade de muita gente. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 46 milhões de brasileiros não tinham acesso à internet em 2018, esse número corresponde a ¼ da população com 10 anos ou mais de idade. O acesso ao ensino dividido entre os que têm celulares, computadores e internet e os que não têm, é antipedagógico e amplia desigualdades. Sabemos que muitos estão sendo excluídos desse processo.
Além disso, como planejar atividades sem o contato cotidiano e sem ouvir as crianças? Há um discurso comum de que é possível reproduzir em casa os espaços de prática na Educação Infantil, mas isso não é real. A criança precisa ser protagonista de todo o processo. Se o professor não tem a possibilidade de estar junto, de ouvir, de observar o desenvolvimento e como ela está reagindo a determinados estímulos, para que servem as atividades?
Na Educação Infantil, quando planejamos uma atividade, pensamos sobre como será organizado o tempo, os materiais, o espaço, o mobiliário. Esses elementos assumem um papel fundamental enquanto instrumento ambientador, coadjuvante do processo de descobertas na aprendizagem. Nesse sentido, na educação de crianças pequenas, planejar o cenário onde as experiências físicas, sensoriais e relacionais acontecem é fundamental (GUIMARÃES e KRAMER, 2009). Ainda que o planejamento seja feito por um professor ou professora, quem vai estar ao lado da criança pequena, auxiliando na atividade será algum familiar. Como será feito isso? Em qual momento? Em que espaço? Por não terem uma formação específica para mediar esse processo, podem acabar não contribuindo para o desenvolvimento pleno das crianças. Além disso, criar uma rotina de estudos em casa não é fácil, porque as famílias precisam dar conta da vida profissional e dos afazeres.
A União dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), que reúne os secretários municipais de educação do país, publicou nota, afirmando que nem todos os estudantes têm autonomia para o ensino a distância e, na Educação Infantil, é “necessário um outro tipo de abordagem para garantir o ensino-aprendizagem, visto que o processo se dá de maneira interacional”.
O Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil (MIEIB), que é um movimento social de âmbito nacional constituído por 26 fóruns Estaduais e um Fórum Distrital de Educação infantil, além de Fóruns regionais e municipais distribuídos em todo o território nacional, se posicionou sobre a proposta de parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE) relativo à reorganização dos calendários escolares e atividades pedagógicas não presenciais durante esse período de pandemia. O movimento afirma que:
Desse modo, os cuidados e a educação oferecidos por profissionais com formação inicial específica (curso de Licenciatura em Pedagogia) em espaços coletivos distintos do ambiente doméstico das crianças, para além de conquista histórica e de direito da população brasileira de até cinco anos de idade, constitui ação pedagógica que se articula à ação da família e da comunidade. Nesse sentido, a proposta deste Parecer não considera o caráter eminentemente interacional dos currículos da educação infantil – concepção celebrada também pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI), publicadas por este Conselho por meio da Resolução CNE/CEB N.º 05 de dezembro de 2009. Assim, compreendemos que as ações da família e da escola são complementares, jamais sobrepostas e, portanto, não justificam sugestões de atividades às famílias como proposto por esse Conselho.
Segundo Benjamin (2007) a criança é um indivíduo social inserido em sua classe. “As crianças não constituem nenhuma comunidade isolada, mas antes fazem parte do povo e da classe a que pertencem.” (p.94). As crianças participam coletivamente na sociedade e são dela sujeitos ativos e não meramente passivos, porque interagem com as pessoas, com as instituições, reagem frente aos adultos e desenvolvem estratégias de luta para participar no mundo social. Não podemos olhar para as crianças somente cognitivamente ou como alguém alheio a tudo o que está acontecendo a sua volta. O que as crianças querem e precisam nesse momento?
Retomando a pergunta título dessa parte do texto: diante das escolas fechadas, o que fazer com as crianças? Acredito que o mais importante agora seja ouvir as crianças, elas podem estar com medo, ansiosas. Buscar planejar o dia e mantê-las o mais próximo da rotina habitual. Ter horário para acordar, realizar as refeições, para brincar. Até mesmo ajudar no que for possível nas tarefas de casa. Essas medidas podem ajudá-las a se sentir mais seguras.
A Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) lançou uma cartilha com o objetivo de apresentar aspectos referentes à saúde mental e à atenção psicossocial a crianças durante esse período de pandemia. Dentre as reações emocionais e alterações comportamentais frequentemente apresentadas pelas crianças nesse período, a cartilha destaca: “dificuldades de concentração, irritabilidade, medo, inquietação, tédio, sensação de solidão, alterações no padrão de sono e alimentação. Em linhas gerais, essas manifestações são esperadas frente às adversidades do atual cenário”. Por isso, ainda segundo a cartilha, é fundamental manter o dialogo e a acolhida com as crianças para ajudá-las a compreender que os momentos difíceis existem, mas que é possível enfrentá-los. O que não podemos é invisibilizar as crianças. O que elas pensam e sentem importa.
Aline Ricci é pedagoga, professora de educação infantil da rede municipal, especialista em educação infantil e mestre em educação.
Referências bibliográficas
BENJAMIN, W. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 2007.
BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei nº 9394, de 20 de dezembro de 1996. Dispõe sobre as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília: MEC, 1996.
DIDONET, Vital. Creche: a que veio, para onde vai. In: Educação Infantil: a creche, um bom começo. Em Aberto/Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais. v 18, n. 73. Brasília, 2001. p.11-28.
GUIMARÃES, D.; KRAMER, S. Nos espaços e objetos das creches, concepções de educação e práticas com crianças de 0 a 3 anos. In: KRAMER, S. (org.) Retratos de um desafio: crianças e adultos na Educação Infantil. São Paulo: Ática, 2009.
OLIVEIRA, Z. R. de. Educação Infantil: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2002.
RIZZO, Gilda. Creche: organização, currículo, montagem e funcionamento. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.