As favelas e as periferias empobrecidas em geral estão entre os locais mais deixados ao próprio azar pelos governos e pelos patrões no contexto da atual pandemia do coronavírus. Esses territórios já costumam receber do Estado e dos capitalistas a menor atenção em termos de direitos sociais e a maior atenção quando se (mal)trata de caveirão da polícia e de todas as tropas da elite. Como diz o Leonardo Coutinho de Souza, lutador social no Complexo do Alemão, são lugares que os ladrões do poder (dono do poder deveria ser o povo) transformam em laboratório da guerra colonial. PPP (preto, pobre e periférico) como alvos principais, nas grandes cidades, da gigantesca PPP (parceria “público”-privada) do imenso engenho Brazil. Eduardo de Jesus Ferreira, Claudia Silva Ferreira, Agatha Vitória Sales Félix… Tantas pessoas desperdiçadas, jogadas na vala da história, muitas vezes ainda crianças! Agora mesmo, durante a pandemia de coronavírus, em que os casos de contaminação em favelas estão especialmente subnotificados, os puliça não dão trégua, como na ação no Complexo do Alemão em que mataram 13 pessoas e tocaram o terror nos moradores. E na que matou o Iago em Acari , na que matou também o João Pedro em São Gonçalo, na que assassinou o João Victor na Cidade de Deus e na que tirou a vida do Rodrigo Cerqueira. O João Victor e o Rodrigo foram mortos pela PM enquanto estavam numa distrição de cestas básicas pra famílias em grande dificuldade financeira.
Ainda que haja desigualdades entre as favelas e dentro delas, muitos moradores de favelas vivem com diversas pessoas em residências de poucos metros quadrados e precisam circular pela cidade (ou até entre cidades, quando se trata, por exemplo, de quem mora na Baixada e vai trabalhar no Rio) pra conquistar, a duras penas, o pão de cada dia. O #ficaemcasa é mais difícil pra essa parcela, pois no nosso país, ainda mais com o ultra-liberalismo imposto na economia, muita gente ou se arrisca a contrair o coronavírus ou se arrisca a passar fome. Muitos moradores de favelas fazem parte dos grandes contingentes que estão na economia informal, que têm que se virar de qualquer jeito, e muitos estão nas também grandes legiões que estão sendo demitidas de modo especialmente cruel, inclusive terceirizados da base da pirâmide que trabalhavam na Petrobras.
Apoio a favelas e a importância de uma Petrobrás pública e democrática
Nesse quadro, o nosso grupo de base petroleiro organizou um esforço de solidariedade com moradores do Morro da Formiga, na Tijuca, e do Complexo do Alemão, que abarca alguns bairros da Zona da Leopoldina (Bonsucesso, Inhaúma, Olaria, Penha e Ramos). Nos articulamos com pessoas e movimentos sociais locais com os quais já mantemos relação (o Leonardo, citado no início deste texto, participa da escola comunitária quilombista Dandara de Palmares, e na Formiga demos as mãos mais diretamente ao André Leonardo Silva de Carvalho, que participa da Folia de Reis Mirim e diversas outras iniciativas comunitárias) e que já haviam começado um trabalho de auto-organização nos seus territórios pra fazer frente à pandemia, ampliando o trabalho de auto-organização que já realizam no cotidiano. Inicialmente, fizemos uma vaquinha junto a trabalhadores petroleiros. Numa primeira leva, arrecadamos 1953 reais, uma quantia simbólica pra nós por se tratar do ano da criação da Petrobrás (nos anos 1990, os privatistas retiraram o acento do nome da empresa, mudado pra Petrobras, num passo pra desnacionalizá-la; a privatização desnacionalizante está agora cada vez mais acelerada). Destinamos metade pra Formiga e metade pro Alemão. E estamos organizando a entrega da segunda leva. Na nossa atuação no sindicato, adquirimos também 40 cestas básicas do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), 20 pra cada uma das duas localidades. O custo foi de 4427 reais, pagos pelo sindicato. A nossa escolha pelo MPA se deveu à nossa política de priorizar fortalecer movimentos sociais e outros grupos que trabalhem numa lógica de cooperativa. Dito de outra maneira, damos a nossa contribuição pra que uma economia dos trabalhadores possa substituir a economia dos patrões. Na prática, fizemos, portanto, um apoio a pequenos agricultores e a moradores de favelas.
Nesse esforço, buscamos também mostrar a importância da luta por uma Petrobrás pelo menos pública e democrática, gerida pelos trabalhadores petroleiros em conjunto com o povo trabalhador de um modo mais amplo. Ou seja, de uma Petrobrás do povo, pro povo e com o povo. E mostrar como a luta contra a privatização da empresa é parte indispensável e urgente desse projeto. Buscamos, ao mostrar isso, que o povão se organize pra participar dessa luta. A maior parte do povo brasileiro está nas periferias, bem retratadas e vividas por gênios do povo, como o escritor Lima Barreto, autor de obras como Recordações do escrivão Isaías Caminha e Clara dos Anjos, e o rapper Mano Brown, do grupo Racionais MC´s, com base na favela Capão Redondo, em São Paulo. Se a periferia, que é a maior parte do povo brasileiro, se colocar como uma atriz dedicada da luta em torno da Petrobras e da luta pelo controle da energia, a possibilidade de vitória popular se torna grande. Essa participação deveria ser evidente pros moradores de favelas e demais áreas periféricas, pois são os principais atingidos pelo aprofundamento aceleradíssimo da privatização do sistema Petrobras e da (re)colonização do país, mas a dificuldade de acesso a informações críticas sobre esse tema, a manipulação da mídia mais diretamente mercantil (que é privatista), o pouco tempo que sobra na luta diária pelo pão de cada dia e tantas outras lutas especialmente urgentes, como se proteger da violência policial, dificultam que a Pretobrás lute pra que a Petrobrás seja sua. Soma-se a isso que a Petrobras sempre foi mais voltada pra classe média e, principalmente, pro topo da pirâmide social do que pro povão, mesmo nos seus momentos mais voltados pro povo. Quando, por exemplo, algum morador pobre de periferia foi pelo menos consultado sobre que rumos quer que a Petrobras, a principal empresa do país, siga? Isso (e a própria insuficiente participação petroleira na luta em questão e nas lutas das favelas) distancia o povão da percepção de que uma Petrobrás pelo menos pública e democrática é peça-chave pra melhorar a sua vida (e a dos seus filhos, netos…). E isso dificulta, inclusive, que a parcela do povão que tem esse entendimento organize a periferia pra essa luta e pra que petroleiros e periferia estejam juntos nesse combate. O nosso esforço pra aproximar os petroleiros das lutas das favelas e as favelas das lutas em torno da Petrobras passa por explicarmos como um dos motivos pra que o preço do botijão de gás de cozinha tenha ficado bem mais caro de uns anos pra cá, prejudicando a vida das famílias pobres, é a política de vincular o preço dos combustíveis à cotação internacional do dólar e do petróleo e aos custos de importação imposta pela hierarquia da empresa e pelos governos Temer e Bolsonaro/Paulo Guedes, pra favorecer os produtores estrangeiros de derivados e pra facilitar a privatização das refinarias da Petrobras e do conjunto do conglomerado Petrobras. Mostrarmos como isso está relacionado à desindustrialização do nosso país, aprofundando o subdesenvolvimento. Assim, buscamos ajudar a costurar o tecido social que o liberalismo econômico esfarrapa a cada dia.
Comitês populares
A idéia de comitês populares que se organizem em cada periferia e se articulem entre as periferias e entre a cidade e o campo pra construirmos juntos uma economia dos trabalhadores em escala nacional (e até internacional) é parte do nosso projeto. Esses comitês seriam pilares fundamentais de um sistema de abastecimento alimentar do povo pro povo e de uma reorganização da produção e da distribuição de energia envolvendo uma Petrobrás e uma Eletrobrás (por que não unificadas?) controlada(s) pelo povo trabalhador, considerando também sistemas comunitários de produção e distribuição de energia, ao mesmo tempo auto-suficientes e podendo ser interligados ao sistema nacional de energia. Pilares fundamentais do nós por nós.
É 1953 x 1984. Belo horizonte x distopia totalitária. Uma campanha O petróleo é nosso permanente x a permanente campanha O petróleo é Esso. Organização popular x ditadura do Big Brother is watching you. George Orwell e seu olho mágico x teletelas prisões da nossa alma. Aldous Huxley x Heil Ford. Auto-organização x Luciano Huck. Descolonização cultural, política e econômica x Brazil dos Mercados Unidos. Liberdade x Estátua da Liberdade. Liberdade x liberalismo. Democracia do povão x tecnocracia. Economia dos trabalhadores x cifrão-suástica do capitalismo. Como no futebol, política-arte x política de “resultados”. Garrincha das letras x discurso de planilha de Excel. Petrobrás x PetroBrax. Nós por nós, tecendo nós x o egoísmo que não está nem aí pra nós.
1953 é um V de Vingança contra o liberalismo. Um Conde de Monte Cristo coletivo na luta contra a colonização. Um Frantz Fanon em luta pela Pretobrás. Uma Luísa Mahin que ecoa: o ouro negro é o povão e do povão deve ser o ouro negro.
Antony Devalle é trabalhador da Petrobrás e integrante do grupo autônomo de trabalhadores petroleiros Inimigos do Rei. É um dos fundadores e editores do Portal Autônomo de Ciências.