Depoimento 1

A ideia de um portal autônomo sobre a ciência já interessa pelo nome. Em geral, têm-se a noção de que ciência e tecnologia são completamente apartadas de valores, interesses, raças, gêneros, credos, ideologias e outros bichos. Ainda, imagina-se que a tecnociência acumula conhecimentos de forma linear e crescente, portanto somente as mais recentes descobertas seriam aquelas mais interessantes. Contudo, dentro da própria comunidade científica, diferentes autores desmentem tais ideias.

Mostraram, entre outros pontos, que o desenvolvimento científico não se move somente por evoluções, mas também por revoluções que modificam os paradigmas vigentes, paradigmas esses que servem de base para determinada ciência, de determinado tempo – como nos trouxe Thomas Kuhn, no clássico “A estrutura das revoluções científicas”. Mostraram também que ciência e tecnologia redistribuem poderes: a “tecnologia não é nem boa nem má; nem é neutra” (M. Kranzberg, “Technology and history”). Mostraram que a tecnociência embute e propaga valores: “assim como bicicletas, ferramentas e técnicas de genoma, dispositivos de mercado […] são tanto projetos culturais como são proezas de engenharia” (Donald Mackenzie e Juan Pablo Pardo-Guerra, “Insurgent capitalism: Island, bricolage and the re-making of finance”). Mostraram que os arranjos sociais se inscrevem nos dispositivos tecnológicos: “[o]lhando o VAX por dentro, West imaginava estar vendo um organograma da DEC. Achava o VAX complicado demais. Por exemplo, não gostava do sistema por meio do qual várias partes da máquina se intercomunicavam; para seu gosto, aquilo tudo era protocolar demais. Chegou à conclusão de que o VAX encarnava os vícios daquela sociedade anônima. A máquina expressava o estilo cauteloso e burocrático daquela companhia fenomenalmente bem-sucedida” (Bruno Latour, “Ciência em Ação”).

Essas investigações não apontam para a negação da ciência. Como Ivan da Costa Marques bem disse em 30/04/2020 na “live” do LabIS, um crítico de arte não está afrontando a arte. Se não defendem a negação da tecnociência, comunidades científicas como a dos estudos de ciência, tecnologia e sociedade abrem possibilidades para tecnociências que incorporem e dialoguem com saberes locais, que considerem Brasis profundos, que valorizem periferias, mulheres e trabalhadores. Que o portal seja um espaço tanto de denúncia e discusão das ausências de autonomias tecnocientíficas em relação a redes opressoras, e também seja um espaço de engajamentos tecnocientíficos com redes mais justas, populares e solidárias. Vida longa ao portal!

Depoimento enviado por Luiz Arthur Silva de Faria, trabalhador da Petrobras, participante do grupo de base de trabalhadores petroleiros Inimigos do Rei, e pesquisador pós-doutorando na Universidade Federal do Rio de Janeiro (COPPE/UFRJ) e na Escola de Administração de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV EAESP).

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