“Sabe moço, trabalhar no Uber é muito difícil. Antes de vir pra cá eu era caminhoneira. Era mais fácil trabalhar sabendo que eu tinha aquele dinheirinho X no fim do mês. Aí veio o Uber. No começo até que era bom, mas a coisa foi ficando mais difícil. Agora é complicado, você não sabe o quanto ganha no fim do mês ao certo, varia muito. Aì você vê que não tá chegando naquele valor que você esperava, você começa a andar mais, ficar até mais tarde. E é difícil, né? Tá cada vez mais perigoso circular à noite. Vai ter essa greve aí, vamos ver como vai ficar. Eu paro, já falei pro pessoal do grupo. A maior parte tá falando que vai parar também. Não tem como, né, moço? Se a gente não fizer, não muda nada. E eu sou chata. Todo problema que eu tenho, tô lá no prédio da UBER reclamando”[1]
“Essa greve aí? Isso não vai dar em nada! Pessoal tem é que trabalhar. Não muda nada, pessoal fala que vai parar aí quando você vê é só meia dúzia de gato pingado. E com a situação difícil que tá esse país, você acha mesmo que vai mudar alguma coisa? E tem outra, a gente não tem nem patrão pra reclamar, porque os donos mesmo da Uber não ficam no Brasil. Eu não acredito numa saída não. Sabe como é, trabalhador de aplicativo não tem sindicato, o negócio é trabalhar, não tem muita saída não. No grupo ninguém tá confiando muito nisso aí e é isso. Se já tá difícil com trabalho, imagina sem?”[2]
Esses relatos foram coletados em uma volta em São Paulo. O primeiro, na ida para a festa da amiga de uma amiga minha. O segundo, na volta. Tenho sempre o costume de conversar bastante com os motoristas quando pego um transporte por aplicativo, mas nesse dia estava especialmente interessado na repercussão da Greve Internacional dos motoristas de Uber[3] que tomei conhecimento poucas horas antes. Foi engraçado ter contato com as duas realidades e os dois perfis de trabalhadores. Mas o que me interessou mais foi na forma como tudo aquilo estava se dando. Ambos os motoristas apontaram os grupos de whatsapp como o local da organização. A função que o sindicato desempenha (ou desempenhou) nos diversos setores da classe trabalhadora, principalmente nos empregos formais, parece ter dado lugar à uma organização em rede proporcionada pelas novas tecnologias comunicacionais, em especial (e principalmente no Brasil) o Whatsapp[4].
Os grupos de Whatsapp não se limitam apenas à agitação ou compartilhamentos de informações, memes, problemas ou zoeiras. São verdadeiros espaços de segurança e autodefesa onde motoristas alertam uns aos outros, a todo instante, sobre atividades suspeitas ou emboscadas[5]. É comum a divulgação da localização em tempo real e a utilização de outros aplicativos no estilo de “walkie-talkies”, como o Zelo, ou de monitoração coletiva em tempo real, como o Life360[6]. Não seria nada estranho comparar essas redes com sindicatos autônomos, descentralizados e baseados no princípio da ajuda-mútua, afinal, a segurança de cada trabalhador depende da segurança dos outros envolvidos nessa rede. Parece que os próprios trabalhadores ofereceram as respostas para a grande dúvida de muitos militantes a respeito da incapacidade de se organizar trabalhadores extremamente fragmentados, tanto devido à própria dinâmica do trabalho por aplicativo quanto pela fluidez das plataformas, onde trabalhadores não usam apenas um serviço, mas intercalam entre 2, 3 e às vezes até 4 aplicativos diferentes para prestar o mesmo serviço.
Mas não é só dos motoristas de carro que vivem as redes de apoio mútuo dos trabalhadores de aplicativo. Entregadores da Rappi, UberEats, Loggi e iFood (entre as mais famosas), também vem se articulando e se apoiando mutuamente pelas redes. Em novembro do ano passado, motoboys e ciclistas da Rappi trancaram a Paulista numa manifestação pelo aumento na remuneração das corridas. Em Maio deste ano, motoboys do Loggi fizeram uma manifestação pela Presidente Vargas, no Rio de Janeiro. E os grupos de whatsapp e facebook pipocam com o compartilhamento de dicas, sugestões, memes e “guias de uso” para os novatos. As contradições, por outro lado, parecem ser maiores que entre os motoristas de carro.
Em alguns grupos que acompanhei, à respeito da greve dos motoboys do Loggi, enquanto alguns olhavam aquela movimentação com bons olhos, uma espécie de horizonte de luta, outros pareciam mais céticos e botavam ênfase nas divisões. “Eles são motoboys, a gente é ciclista. A coisa é outra, eles ganham mais que a gente. Os problemas são diferentes, não tem como se juntar”, dizia um ciclista que não via a movimentação com bons olhos em um dos grupos. “Não tem essa, a luta é uma só. Tem é que criticar o chefe, que é o aplicativo. Aumentar pra motoboy é aumentar pra gente também. Tá todo mundo nessa”, dizia outro. No final, o consenso geral depois de todos os debates naquele grupo em específico foi que tava todo mundo na mesma, mas era difícil se organizar para lutar pelos direitos “ainda mais trabalhando para aplicativo”.
A “economia gig”, para uns mais otimistas, ou a “uberização do trabalho”, para os mais realistas, já mostrou a que veio. É só mais um reflexo do desenvolvimento das condições de exploração da força de trabalho do trabalhador precarizado do século XXI. Essa “economia do compartilhamento” que nada mais significa do que o limite da lógica de acumulação material e a criação da alternativa através de uma lógica de “compartilhamento”. Se na Guerra Fria era de se espantar com as propagandas dos defensores do capitalismo dizendo que o comunismo faria com que todos tivessem que dividir suas casas, seus carros e bens materiais com estranhos, hoje não nos espantamos tanto assim com o surgimento de empresas como a Airbnb e o Uber, que proporciona serviços que dariam inveja no esteriótipo dos “comunistas malvadões”.
Frente à um cenário de desilusão com as formas tradicionais de luta da classe trabalhadora, afinal “trabalhador de aplicativo não tem sindicato”, algumas iniciativas conseguem se sobrepor e apontar para um horizonte de luta internacionalista (e até mesmo revolucionária!). A greve internacional dos motoristas de Uber é um bom exemplo dessa perspectiva internacionalista. Mas o que certamente se sobressai aos olhos de um militante revolucionário é o caso do Transnational Courier Federation[7], que envolve 34 coletivos e sindicatos revolucionários de 12 países e que tem se articulado para a organização de greves de entregadores de aplicativo em escala internacional para se contrapor à extrema fragmentação de classe que o modelo proporciona. É interessante notar que aqueles grupos que sempre sustentaram a necessidade da auto-organização dos trabalhadores e apostaram nas ferramentas surgidas nos processos de luta, muito mais do que das estruturas institucionais de mediação de conflito, estejam de certa forma na vanguarda desses processos, sabendo interpretar e explorar essas ferramentas forjadas no seio da própria auto organização dos trabalhadores, como os exemplos dos grupos de mensagem instantânea e da utilização de outras ferramentas de auto-defesa e segurança.
A IWW Couriers Network[8] vem fazendo um trabalho extremamente importante e interessante no sentido da organização dos entregadores. Souberam interpretar bem a dinâmica das redes informativas que os próprios trabalhadores criaram e organizaram suas redes que se interligam à IWW, um sindicato revolucionário. Nesse sentido, além de uma rede comunicacional e de apoio mútuo, que oferece maior capacidade de se organizar greves e paralisações, a IWW também passou a auxiliar nas necessidades materiais dos entregadores. Bicicletas e power banks foram comprados para servir de empréstimo aos filiados da IWW, uma perspectiva que nos parece subverter a ideia das bicicletas do Itaú que vimos frequentemente nas ruas do Brasil sendo usada por esses entregadores que não tem suas próprias bicicletas.
É certo que a dinâmica dos trabalhos de aplicativo trazem consigo toda uma necessidade de se repensar o trabalho no capitalismo do século XXI para, então, pensarmos em formas de organização capazes de dar conta das necessidades que surgem com essas novas formas. Mas é mais interessante ainda se pensar que os trabalhadores JÁ ESTÃO respondendo à isso, com suas próprias formas de auto-organização e apoio mútuo. Ao mesmo tempo, essas empresas transnacionais criam as condições para redes de solidariedade também transnacionais. O jogo não está perdido. A luta avança à cada nova investida do Capital. Cabe aos militantes e trabalhadores tornarem suas ferramentas e redes mais fortes para que a resistência também se fortaleça. Com ou sem sindicato, os trabalhadores já estão dando sinais de sua disposição para a organização e mostrando-se vanguarda na luta contra as próprias formas de exploração à que se submetem. As questões que me parecem mais fundamentais são: de que forma podemos articular essas redes que já existem mas encontram-se desconexas entre si? As formas tradicionais de organização dos trabalhadores, como por exemplo o sindicato (e mais especificamente nos moldes do sindicalismo brasileiro), tem capacidade de oferecer algum horizonte para essa organização? Se sim, como? Se não, qual a alternativa? Essas respostas, acredito, só podem ser dadas depois de muita experimentação e o que me parece mais importante nesse momento é deixar esse campo aberto para as experiências. Não capitular e nem se deixar ser capitulado, mas avançar numa construção coletiva, respeitando as formas organizativas que já surgem no enfrentamento à uberização do trabalho e trabalhar com elas.
Esse texto foi publicado originalmente em 18 de junho de 2019 e pode ser encontrado aqui.
↑[1]- Relato de uma motorista da Uber
↑[2] – Relato de um motorista da Uber
↑[3] – A greve convocada por alguns sindicatos, como por exemplo a IWGB da Grã-Bretanha foi chamada para o dia 8 de maio e batizada de Uber-Off. No Brasil, a greve foi puxada pelos próprios motoristas em seus grupos de Whatsapp
↑[4] – No Brasil o Whatsapp é amplamente utilizado, porém, em outros lugares do mundo, trabalhadores se organizam por outros aplicativos como por exemplo o Telegram
↑[5] – https://canaltech.com.br/seguranca/com-aumento-de-crimes-motoristas-do-uber-criam-tati cas-de-seguranca-em-sp-82187/
↑[6] – https://www.acritica.com/channels/manaus/news/motoristas-da-uber-criam-rede-de-monito ramento-para-se-defender-de-assaltos
↑[7] – Mais informações sobre essa rede pode ser encontrada em https://notesfrombelow.org/issue/the-transnational-courier-federation
↑[8] – https://iww.org.uk/iww-couriers-network/
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