Texto publicado originalmente no dia 26/10/2018, às vésperas do segundo turno das eleições presidenciais por Antony Devalle no grupo de Facebook do Inimigos do Rei
Independentemente do candidato que vencer a eleição pra presidente do Brasil, quem vai continuar no cerne do poder político vai ser quem detém mais poder econômico, ou seja, grandes capitalistas. Os novos quartéis são as transnacionais, com suas prisões de códigos de barras e com seu cifrão, a suástica do capitalismo, especialmente da sua versão liberal. O discurso de naturalização desse sistema é muito forte e pode ser sintetizado pelo lema que acompanha uma outra suástica da ideologia liberal capitalista, o slogan Just do it (Apenas faça isso), junto com o símbolo de correto (o swoosh da Nike). O Just do it é um Compre batom transnacional. O privado destruindo o público.
Mas há diferenças entre os candidatos a presidente do país.
O Bolsonaro, além de todo o grave menosprezo aos negros, aos índios, às mulheres, aos não heterossexuais e, sobretudo, aos críticos (especialmente os críticos que põem em prática a sua crítica) pela esquerda, e a todo o reforço de um ambiente em que os chamados bolsominions têm se sentido cada vez mais à vontade pra agir de modo agressivo, tanto verbalmente (inclusive, com ameaças) quanto fisicamente, ferindo e até matando pessoas que enquadram como inferiores (https://apublica.org/2018/10/apoiadores-de-bolsonaro-realizaram-pelo-menos-50-ataques-em-todo-o-pais/), se aliou aos ultra-liberais em termos econômicos. Embora ele diga, de vez em quando, que pretende manter como estatais (totalmente ou no formato de empresas de economia mista) algumas poucas empresas especialmente estratégicas, tem comentado que acha interessante a idéia do golden share, ou seja de privatizar a empresa, só que mantendo uma ação de “ouro”, que dá ao Estado direito de veto sobre algumas decisões estratégicas. Os ultra-liberais preferem privatizações sem golden share, mas a mídia mais diretamente mercantil tem dito que eles têm aceitado essa tática como uma carta na manga, se for necessário pra desfazer alguma resistência à privatização por parte de setores que apóiam o Bolsonaro. Além disso, a tônica geral do discurso do candidato do PSL é privatista. Em parte, por causa de um oportunismo dele, que aceitou a coleira do ultra-liberalismo porque tem a ambição de se tornar presidente e percebeu que um critério básico pra não ser submetido a um sistemático ataque da mídia mais diretamente mercantil é aderir ao liberalismo. Oportunismo também de amplos setores do liberalismo, que, percebendo o crescimento político do Bolsonaro (e, de modo mais amplo, do bolsonarismo), buscaram fazer dele um soldado “bandeirante” desse projeto, que inclui a mercantilização de tudo. Com ele, portanto, o terreno prum avanço ainda mais avassalador do liberalismo do que o já avalassador terreno de que dispõe tende a aumentar. O Bolsonaro já assumiu que não entende de economia e que, na prática, vai terceirizar o coração do governo ao Paulo Guedes, um dos seus principais assessores, que é chamado por ele de seu Posto Ipiranga pra assuntos de economia. O Paulo Guedes era colunista do jornal O Globo, onde escrevia regularmente pela privatização completa da Petrobras. Ele tem insistido num discurso de privatizar literalmente tudo, como o partido que, de forma hipócrita e oportunista, se chama de Novo, que também cresceu muito nesta eleição, tende a continuar crescendo e é uma espécie de bolsonarismo “sem” fuzil (as aspas mostram que é só até a página 5: https://www.brasildefato.com.br/2018/08/17/candidato-do-partido-novo-incita-violencia-contra-sem-terra-em-redes-sociais/).
Muita gente tem chamado o Bolsonaro de fascista e até é verdade que ele apresenta vários aspectos dessa linha ideológica. Declarações como as de que vai fuzilar a petralhada (diga-se de passagem que essa expressão engloba o conjunto da esquerda, inclusive a parcela crítica ao PT) e de que os “marginais vermelhos” vão ser banidos do país são exemplos disso (https://exame.abril.com.br/brasil/vamos-fuzilar-a-petralhada-diz-bolsonaro-em-campanha-no-acre/ e https://br.reuters.com/article/topNews/idBRKCN1MW017-OBRTP). Também é importante considerarmos que, ao mesmo tempo em que é necessário não banalizarmos o conceito de fascismo, que se refere inicialmente a alguns tipos de autoritarismo dos anos 1920/1940, são interessantes algumas ampliações/atualizações, como a feita por Marcuse na crítica ao fascismo tecnocrático (https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2609199915.htm). Ainda assim, há diferenças consideráveis entre o bolsonarismo e o fascismo clássico, por mais que não seja absurdo utilizar o termo em relação a ele. Uma diferença fundamental é justamente a adoção do liberalismo pelo bolsonarismo. Os fascismos das décadas de 1920 a 1940 foram monstruosos. Geraram a Segunda Guerra Mundial. Mas, por serem anti-liberais, ainda que muito capitalistas, ao mesmo tempo em que massacraram seus opositores, asseguraram, ainda que de modo ilusório, na medida, sobretudo, em que se baseava numa economia de guerra, uma muito significativa melhoria da vida material cotidiana de amplas parcelas do povo. O bolsonarismo, por ser uma tropa de choque do ultra-liberalismo, vai, além do autoritarismo mais diretamente percebido como tal, piorar (in)sensivelmente a vida material cotidiana da maioria do povo brasileiro. Essa diferença crucial mostra que, embora possamos chamar o bolsonarismo de (neo)fascismo, ele pode ser caracterizado de modo mais preciso como um pinochetismo made in Brazil dos Mercados Unidos. Aliás, o Chicago Boy Paulo Guedes trabalhou pra ditadura empresarial-militar do Pinochet, no Chile (https://www.revistaforum.com.br/paulo-guedes-o-chicago-boy-de-bolsonaro-e-seus-vinculos-com-a-ditadura-pinochet/). Foi professor de economia na Universidade do Chile, num contexto em que a ditadura havia eliminado seus professores e estudantes críticos pra transformá-la numa difusora local de neoliberalismo (a ditadura pinochetista foi um dos primeiros laboratórios do neoliberalismo no mundo). No caso do Paulo Guedes, Chicago Boy tem duplo sentido: ter sido formado na linha neoliberal na estadunidense Universidade de Chicago (e ser um arauto dessa ideologia) e ser um office-boy, um serviçal, ainda que muito bem remunerado, do Tio Sam. Se nos países centrais da economia capitalista mundial o neoliberalismo já é um grave problema, nos países da periferia desse sistema o estrago é ainda maior, rasgando completamente o tecido social. Na periferia do sistema, o neoliberalismo é colonizado.
Os fascismos são Frankensteins do liberalismo capitalista. São produzidos por ele pra garantir a maximização dos lucros patronais, especialmente em momentos de crise. O que deixou o Bolsonaro realmente com chance de ser presidente é ele ter aceitado a coleira do ultra-liberalismo. Num contexto de muita manipulação feita pelos liberais e de um terreno fértil regado pelo oportunismo de grande parcela da esquerda, que estimulou muito a naturalização da lógica liberal e tecnocrática, o autoritarismo da sociedade brasileira foi canalizado pelo bolsonarismo.
Só é possível derrotar mesmo o bolsonarismo se derrotarmos o liberalismo.
O Haddad (ou Andrade, na voz do povão), por sua vez, diz que não é contra a idéia de privatização, mas que não vai privatizar (mais) empresas espcialmente estratégicas, como a Caixa Econômica Federal, o Banco do Brasil, os Correios, a Infraero, a Eletrobras e a Petrobras. Especificamente sobre a petroleira, ele acrescenta que vai restaurar a sua lógica de empresa integrada de energia e de agente estratégico do desenvolvimento brasileiro, inclusive aumentando a sua capacidade de refino (https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2018/noticia/2018/10/19/saiba-mais-sobre-as-propostas-de-bolsonaro-e-haddad-sobre-estatais-e-privatizacoes.ghtml).
É difícil acreditar. Afinal, apesar de zigue-zagues e de uma pisada no freio (durante os governos do Lula), os governos encabeçados pelo PT, com o Lula e a Dilma, não cumpriram a maioria das promessas que o PT fazia sobre a empresa e o setor. Fizeram, pelo contrário, muito do que o FHC fazia e o partido criticava. Continuaram os leilões do petróleo e do gás, mantiveram e ampliaram as ações na bolsa de Nova Iorque, mantiveram o Petrobras sem acento, continuaram aprofundando a privatização da lógica de funcionamento da empresa… Por mais que uma mudança substancial dessa política esbarrasse em poderosos obstáculos geopolíticos (a pressão de grandes transnacionais da energia, notadamente usamericanas e européias, apoiadas pelos seus Estados, é imensa), os governos que tiveram o PT à frente não se empenharam, mesmo se considerarmos a chamada política externa ativa e altiva do Celso Amorim e do Samuel Pinheiro Guimarães, na construção de uma alternativa geopolítica (não utilizar o Banco dos Brics no contexto da “crise” da Petrobras é um exemplo disso) e, mais do que isso, se dedicaram a continuar fazendo avançar a privatização da cultura da empresa. Numa aula de um curso complementar a um curso de formação pra novos empregados, um professor de finanças que se identificava, de modo orgulhoso, como petista, defendia que a única razão de ser de uma empresa é maximizar o lucros dos acionistas. Fazer um produto de qualidade, prestar um bom serviço, garantir a soberania energética do país (parte da missão da Petrobras quando foi criada)…? Não, nada disso. O que tem que orientar a ação cotidiana de cada trabalhador(a) da Petrobras é, segundo esse professor petista de finanças, maximizar o lucro dos acionistas (lembremos da bolsa de Nova Iorque). Num seminário do programa Memória Petrobras no auge do governo do Lula, foi dito, em tom elogioso, que a hierarquia da empresa estava deliberadamente atuando pruma mudança de valores corporativos, tendo como uma grande ênfase a mudança de incentivar os trabalhadores a se verem como construtores do Brasil como nação (valor visto como antiquado) pra passarem a valorizar a concorrência e o mercado (valor visto como moderno). Pra justificar, foi dito que a identificação com o destino do povo brasileiro (mesmo com todas as contradições, pois o povo nunca foi priorizado), prejudicava a Petrobras. Buscar a soberania popular atrapalha o mercado, e o mercado tem que ser o grande soberano. Esse discurso, ainda que disfarçado (no seminário, foi dito que a hierarquia queria fazer essa mudança de forma que os trabalhadores não percebessem ou que a vissem como algo natural, a fim de diminuir a resistência), perpassou o dia-a-dia na empresa nos governos liderados pelo PT.
Além disso, o acento de Eletrobrás, que era parte da simbologia de ser uma empresa brasileira, voltada pros interesses do país, foi retirado em 2010 (https://oglobo.globo.com/economia/para-ser-global-eletrobras-muda-marca-retira-acento-do-nome-3035766), durante o segundo governo do Lula, com a mesma lógica da justificativa dada no governo do FHC pra retirada do acento de Petrobrás, a de que essa retirada é necessária pra empresa se tornar um grande player global (porque em inglês não tem acento). Pra além da importância de questionarmos o projeto de fazer dessas empresas grandes players globais, num sentido, sobretudo, de tentativa (sub)imperialista e de naturalização do globalitarismo, é necessário ressaltar uma evidência: o acento da suíça Nestlé não foi um empecilho pra que ela se tornasse uma das maiores empresas do mundo. Enquanto a Nestlé não apagou o sinal característico não apenas do sobrenome do seu criador, mas, principalmente, da língua francesa (o sobrenome do seu criador tem esse acento porque é em francês), os dirigentes das duas maiores empresas de energia do Brasil, de modo colonizado, preferiram agradar (e continuar agradando) seus ídolos estrangeiros. É bem verdade que o PT manteve a coerência ao não retomar a marca PetroBrax, criada quando o presidente da empresa era o Henri Philippe Reichstul. Essa marca acabou tendo vida curtíssima (de um dia, basicamente), porque houve uma reação mais forte do que era esperado (se tivessem tido mais paciência, talvez conseguissem, haja visto que um lubrificante símbolo da empresa é o Lubrax, que estampou durante muitos anos a camisa do Flamengo, time com a maior torcida no Brasil). Mas, em grande medida, o PT ajudou a fazer da Petrobrás uma PetroBrax, e não utilizar esse nome, mas Petrobras, facilitou o seu trabalho.
Pra piorar, foi no governo da Dilma que começou (e de forma muito acelerada) a atual política de venda de ativos, eufemismo pra privatização. É verdade que, como era previsível, pisaram ainda mais no acelerador no governo do conspirador Temer, mas ela começou com a Dilma.
Outro ponto a ser destacado é que a preparação pra demitir de modo corriqueiro e muito mais amplo trabalhadores petroleiros, como parte daquele plano deliberado de mudança de cultura corporativa mencionado no seminário do programa Memória Petrobras, foi impulsionado ao longo dos governos do PT, com destaque pro período da Dilma, o que facilitou que esteja agora numa fase muito avançada. Com a capa “mágica” da dita meritocracia (uma das faces da tecnocracia), a hierarquia da empresa está empenhada em mudar radicalmente o perfil de seus trabalhadores, eliminando todos os que lhe dão trabalho, desde os que sofrem de doenças crônicas e todos os que trazem “muito” atestado médico até as pessoas que participam da luta sindical, passando por quem os chefes consideram chato ou com quem não vão com a cara, quem atua com visão crítica na sua profissão e quem, no cotidiano do trabalho, atua de forma crítica de forma mais ampla, inclusive sobre as decisões e os rumos da empresa. Qualquer semelhança, ainda que guardadas as diferenças, entre o que a ditadura do Pinochet fez na Universidade do Chile e esse plano na Petrobras não é mera coincidência. O PT ajudou a naturalizar que a única forma de gestão é a privada. E isso é péssimo pro povo.
A velocidade e a forma nas quais a vida vai piorar pra consideráveis parcelas dos trabalhadores petroleiros e do povo trabalhador brasileiro, de um modo mais amplo, varia entre os dois candidatos. Com o Bolsonaro, vai ser pior, muito pior. Mas, com o Haddad, vai ser ruim também. Podemos até, do ponto de vista tático, votar no Haddad. Mas, em termos estratégicos, o (neo)fascismo só pode ser realmente derrotado (e uma democracia realmente digna desse nome só pode ser realmente conquistada) se nós, povo trabalhador brasileiro, construirmos no dia-a-dia uma sociedade com liberdade, igualdade e fraternidade pra valer, em cada espaço (no bairro/na favela/no campo…, no local de trabalho, de estudo, no lazer…). Passa por tecermos juntos o tecido social, que o liberalismo esfarrapou. Passa por (re)construirmos propriamente o nosso povo, por nos tornarmos novamente um povo, e não um amontoado de indivíduos. Passa pelo que o Mano Brown disse esses dias (https://www.revistaforum.com.br/no-rio-mano-brown-faz-discurso-historico-pra-mudar-nao-so-a-eleicao-mas-o-pt/?fbclid=IwAR3IBcnKUpLju5X59-_qEyyJ4B12C_Wgx7tXtrdjUUk3N4IMEKPYOrctyhw): ouvirmos o povo, sermos povo. A tarefa não é nada fácil. Mas é necessária.
Esse texto foi publicado originalmente em 23 de novembro de 2018 e pode ser encontrado aqui.
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