A Distopia Dataísta

De volta à realidade, 20 anos depois do lançamento da série, num mundo superconectado por bolhas sociais e realidades paralelas que surgem na forma de memes e se materializam como “zonas autônomas nem-tão-temporárias-assim” [1], o entrelaçamento entre o real e o virtual parece ter ido além dos desenhos japoneses. E aqui entra o Capital pautando o controle e a detenção desses grandes meios de reprodução de informação e produção de capital-consenso. A internet, antes vista como um campo aberto, experimental e anárquico, foi se fechando cada vez mais em torno de serviços, que por sua vez se consolidaram em corporações ao passo que ampliavam seus tentáculos na rede. “Estamos perdendo”, anunciavam em caps lock os piratas digitais em meados dos anos 2000 em alguns canais de IRC. “Perdemos”, anunciavam outros pouco mais de uma década depois [2].

 

Surgiu o dataísmo [3], esse niilismo tecnocrata que eleva os dados, metadados, e informações extraídas do intercruzamento entre um e outro à nível de religião. Um ceticismo crente tonteado pelas instantaneidades informacionais que, agora podendo ser exploradas pela capacidade da manipulação de big datas e a efetivação de seus planejamentos, exploram padrões para apontar as soluções desejáveis para este ou aquele empreendimento, mirando este ou aquele público. As bolas de cristal do século XXI são forjadas em R e Python [4].

 

Os “vilões da nossa realidade cyberpunk” [5], estão se aproveitando bem do que a tecnologia tem a oferecer. E vem se aproveitando mais ainda das tecnologias de descentralização, de distribuição, que nada mais são do que máscaras para uma ultra-centralização que fundamenta a fabricação de consensos e o estabelecimento de confiança, organizados de maneira vertical e, ao mesmo tempo, tão difusos que nos fornece uma ilusão de escolha e horizontalidade nas decisões. Os participantes dessas redes não são ‘nós’ [6], participantes ativos e construtivos da rede, mas correias de transmissão dessa ou daquela ideia. As indústrias das fake news criaram um campo onde fatos e opiniões se confundem, sendo reduzidos a meros fluxos de informações difusos cuja validade se estabelece não em relação ao conteúdo, mas sim à quantidade e direcionamento correto. É aqui onde a máxima de Goebbels [7] se faz valer e se consolida transvestida de senso crítico e resistência ao “status quo”. Quanto maior a circulação, mais validade é conferida à informação. A veracidade, aqui, não é nada mais nada menos do que a capacidade de tal ou qual informação se consolidar enquanto fato irremediável à nível macro mesmo que solapando a factualidade, materializando-se nas já famosas pós-verdades. É o caos dentro da própria ordem, para subverter aquela máxima anarquista já bastante conhecida [8].

 

A Cambridge Analytica representa hoje um reduto dataísta a nível corporativo, com foco na fabricação de consenso de forma distribuída por meio da mineração de dados e tratamento de informações para que se tornem mais palatáveis aos consumidores dos conteúdos, ou seja, os mesmo que tem seus dados coletados e processados pela empresa. A internet, e principalmente o que ficou conhecido como web 2.0 com as redes sociais, capacitou os usuários a serem tanto consumidores como produtores. Assim, os navegantes do oceano de informações do século XXI forjam as bolhas às quais se aprisionam e fornecem todos os elementos para intensificar esse isolamento, ao mesmo tempo que entregam à algorítmos informações suficientes para serem mapeados individualmente e padronizados em grupos, para então receber essa ou aquela informação minuciosamente moldada de forma a ser melhor digerida para a sua personalidade.

 

A CA [9] surgiu como uma subsidiária americana da SLC (Strategic Communication Laboratories) Group [10], que anuncia em seu site ter conduzido programas de “mudanças comportamentais” em mais de 60 países, fornecendo dados, análises e estratégias para governos e organizações militares por todo o mundo. Na sessão de projetos do site da empresa, alguns chamam bastante atenção, como a “Mudança de comportamento anti-social insurgente no Nepal” [11].

 

“Uma campanha para reduzir e, em última instância, impedir que o grande número de insurgentes maoístas no Nepal invadisse casas em áreas remotas para roubar comida, perseguir os proprietários e causar perturbações. Depois de analisar as razões subjacentes para o comportamento anti-social, a intervenção recomendada foi fornecer comida para os insurgentes fora das casas em um local de encontro público. Os insurgentes estavam agora muito felizes em pegar sua comida sem ter que invadir as casas das pessoas. A fome foi a principal motivação para o seu comportamento anti-social.”

 

Outro projeto que chamou atenção foi a “Estratégia de engajamento de jovens no Paquistão” [12].

 

“A SCL Social foi contratada para avaliar como a tecnologia poderia ser usada para fornecer um fórum para os jovens se engajarem nas discussões sobre governança democrática no Paquistão. A SCL Social avaliou o papel que a Internet e as tecnologias de telefonia celular desempenham no processo de radicalização em Peshawar, a fim de fornecer recomendações baseadas em dados sobre como reduzir o uso de tais tecnologias para fins extremistas violentos. As recomendações incluíram o desenvolvimento de um plano estratégico de comunicação prático e baseado em dados, incluindo o empoderamento de mulheres mais velhas, campanhas de educação e maiores oportunidades de investimento local. Estratégia de engajamento da Juventude no Paquistão.”

 

É claro que as táticas mudam devido às idiossincrasias regionais [13]. A Cambridge Analytica surge com foco na mudança de comportamento do eleitorado estadunidense, e é aí que aparece chamando bastante atenção após os escândalos nos Estados Unidos em torno da campanha Trump e no Reino Unido com o Brexit. Voltando pro Brasil da “Lava Zap” [14], miras foram apontadas à Steve Bannon, um dos fundadores e ex-vice-presidente da Cambridge Analytica, bem como estrategista-chefe da campanha Trump. Poucos, no entanto, prestaram a mesma atenção nos brasileiros que já apontavam para uma “tropicalização da metodologia” [15] da empresa americana. Em entrevista para o El Pais em 2017, o marqueteiro André Torretta apontou bem o que pautaria a campanha política no ano seguinte, onde os usuários de redes sociais converteram-se em verdadeiros cabos eleitorais virtuais e se engajaram muito mais em um sentido militante para seu candidato. Fundador da consultoria Ponte Estratégia, que mantinha parceria com a Cambridge Analytica, o marqueteiro disse que decidiu pela suspensão com os laços após o escândalo de vazamento de dados do Facebook nos Estados Unidos e no Reino Unido [16]. Reconhecedor da “expertise de milícia digital” do MBL, para Touretta o trabalho eficaz com a propaganda na era da Big Data precisa de reconhecimento territorial. Isso porque os bancos de dados públicos brasileiros são menores do que os americanos. Junta-se isso o fato de, ao contrário dos EUA onde o Facebook é a rede social por excelência, ”a grande rede social no Brasil é o Whatsapp”.

 

Mas a distopia dataísta não deveria abalar aqueles que carregam em si a vontade de mudar as condições à que são submetidos. Muito pelo contrário. Se hoje vemos uma escalada desse populismo de direita é porque esses setores souberam potencializar o trabalho jogado de lado pela esquerda hegemônica, o famoso “trabalho de base”. Esses setores souberam se aproveitar bem de suas “antenas” [17], experimentando com as tecnologias mais recentes para potencializar seus alcances e, assim, explorar de forma mais fácil as vulnerabilidades, os anseios e aspirações daqueles a quem almejavam atingir. Na realidade, souberam se apropriar bastante das táticas da esquerda, utilizando todo o capital a sua disposição.

 

Os revolucionários podem não ter o capital à disposição para disparar milhões de mensagens, nem organizar milhões de bots para ampliar os seus discursos na rede, mas podem ter à disposição o contato real que só uma perspectiva de classe fornece àqueles que lutam por essa subversão. Se, por um lado, a direita se potencializou com a crítica e apropriação de certas táticas, é através da análise minuciosa e do entendimento dos limites da tática que esses setores levam a cabo que podemos avançar. Como pólos antinômicos que superam a si mesmos em um confronto intermitente, é nesse acirramento que está colocada a perspectiva de ruptura.

 

Sem querer resumir ou esgotar a capacidade experimental que deve guiar esse processo de reformulação tática e estratégica, alguns pontos me parecem interessantes, como uma perspectiva sístole-diastólica dos problemas gerais aos específicos de tal categoria. Do inter-cruzamento dessas informações localizadas, específicas do local de trabalho. Das especificações às generalizações e vice-e-versa. Das análises estatísticas, da criação de canais de comunicação e troca de informações, de questionários levados a cabo pelos próprios trabalhadores em seus locais de trabalho e criação de nós inter(ou extra)setoriais [18]. É necessários se aproveitar das tecnologias informacionais, das ferramentas open-source disponíveis para pesquisas rápidas, dos alertas de notícias [19] e dos mapeamentos de redes sociais [20] integrados à essas ferramentas. É importante também a capacidade de se criar suas próprias ferramentas, agregando muito do que já está disponível pelas redes com código aberto e que não demandam uma infraestrutura robusta e corporativa. É também muito importante aliar todas essas iniciativas à uma perspectiva de redes e nós, onde haja uma troca constante entre os usuários, os colegas de trabalho e militância, de forma que isso possa de fato potencializar as atividades de organização e tragam novos ares de disposição para a construção das lutas.

 

Frente à distopia dataísta é necessário um contraponto orgânico, realmente distribuído e sem regulação central, que integre os participantes e os considere como ‘nós’ indispensáveis no processo de criação das lutas, e não que os encare apenas como informação a ser explorada e descartada. O último ponto de vista pode até apresentar soluções a curto prazo, como nos casos apresentados pela SLC Group e pela Cambridge Analytica, mas a longo prazo, em um projeto de transformação das relações de produção e ruptura com o sistema capitalista, definitivamente não apresentará solução alguma.

 

Esse texto foi publicado originalmente em 6 de novembro de 2018 e pode ser encontrado aqui.

[1] – Pra brincar um pouco com as chamadas TAZ (Temporary Autonomous Zone)

[2] – https://www.tecmundo.com.br/seguranca/120378-perdemos-internet-capitalistas-diz-cofundador-pirate-bay.htm

[3] – https://readandlaugh.files.wordpress.com/2018/04/homo_deus_a_brief_history_of_tomorrow_pdf.pdf#page=214

[4] – R e Python são linguagens de programação bastante utilizadas por cientistas de dados, estatísticos e matemáticos

[5] – Essa frase foi surrupiada de uma camarada ao tratar de Steve Bannon e do seu “Movimento”

[6] – ‘Nó’ em computação é um registro que consiste em um ou mais campos ligados a outros nós, formando uma estrutura de dados. Aqui, busquei reforçar a característica autônoma dos nós, sem qualquer hierarquia entre os outros nós participantes da rede, tal como ocorre na Blockchain.

[7] – “Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”

[8] – “Anarquismo é ordem”

[9] – A Cambridge Analytica faliu após os escândalos de utilização dos dados no Facebook na campanha Trump e no Brexit, que diminuiu os negócios da empresa. Após a “falência legal”, a empresa se dividiu em CA Political e CA Commercial. Mais informações em https://cambridgeanalytica.org/

[10] – A SCL group também anunciou que fecharia as portas após os escândalos em torno dos dados do Facebook, no entanto o site continua operando normalmente. Mais informações em sclgroup.cc.

[11] – https://sclgroup.cc/projects/nepal/

[12] – https://sclgroup.cc/projects/pakistan/

[13] – A aba de projetos da SCL Group fala um pouco sobre cada projeto levado a cabo em diferentes lugares do mundo. Mais em https://sclgroup.cc/projects/

[14] – Com viés humorístico, o nome surgiu após os escândalos de compra de disparos no Whatsapp para espalhar FakeNews pela campanha de Bolsonaro, uma referência à Lava Jato

[15] – https://brasil.elpais.com/brasil/2017/10/11/politica/1507723607_646140.html

[16] – http://www.meioemensagem.com.br/home/comunicacao/2018/03/20/nenhum-servico-da-ponte-sera-interrompido.html

[17] – Esse é o termo que o marqueteiro Andre Touretta utiliza para denominar os contatos que adquiriu ao longo dos anos ao tentar entender o padrão de consumo em comunidades mais pobres

[18] – Alguns militantes e trabalhadores já começaram a desenvolver projetos para auxiliar a agitação e organização nos locais de trabalho, como por exemplo o aplicativo Wobbly. Mais informações em https://notesfrombelow.org/article/an-introduction-to-wobbly

[19] – O Google Alerts pode ser bastante útil para se manter por dentro de notícias de grandes portais que geram boa repercussão, mas você pode optar por outras soluções que possam ser mais úteis na análise de sites, blogs e/ou páginas que te sejam mais relevantes

[20] – Sobre o uso do Twitter para levantamento de dados https://www.cambridge.org/core/elements/twitter-as-data/27B3DE20C22E12E162BFB173C5EB2592/core-reader

 

 

Grogue é estudante de ciência da computação. É um dos fundadores e editores do Portal Autônomo de Ciências.

 

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