Lutas sociais em um mundo de selfies

Publicado em 04/06/2020

Uma semana depois do brutal assassinato de George Floyd, manifestações cada vez maiores eclodem nos EUA, incendiando (literalmente) um país que mascara em diversas camadas suas profundas desigualdades. Se décadas atrás a imagem vendida pelo imperialismo estadunidense era o conhecido “sonho americano”, hoje a face supremacista que se esconde por debaixo desse sonho é exposta e posta em chamas pelas ruas do país. Evidentemente que mobilizações como estas no centro do capital global influenciam todo o mundo e, dias após os inícios dos protestos na terra do genocida Sam, atos começam a surgir em países europeus e na periferia do capitalismo, como é o caso do Brasil.

Neste último domingo, dia 31 de maio de 2020, as ruas de capitais brasileiras que até então vinham sendo ocupadas pelo rascunho tropical da grotesca direita alternativa estadunidense (lê-se bolsomions), passam a ser disputadas por setores da esquerda. Combinações que até então seriam tidas como impossíveis brotam nas ruas da capital paulista e torcidas organizadas corintianas e palmeirenses se juntam, em defesa da democracia. No Rio de Janeiro, muito inspirado pelas manifestações antirracistas dos EUA, atos são convocados e uma parcela da população, que até então se via quarentenada e sufocada pelas crescentes vítimas de Covid-19 (somadas ao ininterrupto genocídio da população preta e pobre), voltam às ruas. Ao fim deste mesmo domingo, atos em diversos estados do Brasil são convocados e a maior parcela do país, que até então vinha calada e imersa ao som do choro daqueles que diariamente perdem seus familiares e amigos (seja pelo vírus, seja pela violência do Estado), se somam às ruas e redes sociais, dando corpo ao grito desesperado por igualdade racial. 

Uma mobilização que há muito tempo não se via toma o âmbito virtual, convocações se espalham por todo o país e o debate público é dominado por termos como antifascistas e antirracistas. Os rostos que estampavam os perfis individuais dão lugar à bandeiras que inicialmente eram vermelha e preta, mas que aos poucos abrangem todas as combinações do espectro luminoso. Diante do turbilhão de informações, emerge uma intensa disputa de narrativas e as emoções (já bastante retalhadas pelos últimos meses) tomam conta. Diante da possível convulsão social que aproxima no Brasil é importante refletirmos. Refletir para conseguirmos operar um processo em movimento. Refletir para não fazermos paralelos diretos com a luta em curso nos EUA. Apesar da inspiração ser muito bem-vinda, é importante termos em mente o seguinte fato: o Brasil é a terra onde os filhos e filhas choram e as mães não veem .

Antifa: de onde vem esse movimento?

Antes de entrarmos nos acontecimentos recentes no Brasil, é importante pontuar o que é o movimento antifascista, suas raízes históricas e tendência ideológica. Em linhas gerais, pode-se dizer que o movimento antifascista (ou antifa) existe desde o surgimento do fascismo. Mais precisamente, com a chega ao poder na Itália de Benito Mussolini, tendências comunistas e anarquistas se juntaram para fazer frente à violência política de Estado que se alastrava no país. Na década de 1930, uma organização ligada ao Partido Comunista da Alemanha, intitulado Antifaschistiche Aktion (Ação Antifascista) adota o logotipo que até hoje é utilizado: as bandeiras de cores preto e vermelha que tremulam para a esquerda.  Atualmente, de acordo Acácio Augusto[1] o antifascismo pode ser definido como um método político, espalhado por vários países, composto por correntes anarquistas, comunistas e socialistas que se opõem aos movimentos fascistas, como vemos ocorrer ao redor do mundo. Estes grupos (antifas), no geral são movimentos urbanos, autônomos, antiautoritários e, em sua maioria, anarquistas (com apoio de comunistas, mas em menor quantidade[2]). Um caso emblemático da ação antifa no Brasil, foi o ocorrido na Praça da Sé, São Paulo, em 1934, quando frentes antifa ligadas a Aliança Nacional Libertadora (ANL) dissolveram violentamente um evento público organizado pela Ação Integralista Brasileira (AIB)[3], que ficou conhecido como “revoada das galinhas-verdes”, em referência às camisas verdes utilizadas pelos membros integralistas.

De forma sintética, o caráter antiautoritário dos movimentos antifas e sua intensa oposição à violência política do Estado, os fazem, necessariamente, um movimento anticapitalista. Incorporando e se somando, portanto, as lutas contra qualquer tipo de violência e preconceito de raça, gênero e sexualidade. O que nos leva diretamente à participação destes movimentos nos atos contra o genocídio do povo preto ocorridos neste fim de semana no Brasil e que vêm acontecendo no mundo.

Cabe reforçar que os atos que estão sendo convocados não são atos antifas, mas antirracistas que contam com o apoio de movimentos antifas. Essa distinção (apesar de sutil e parecer ter caráter menor) é importante para refletirmos o que vem acontecendo nos últimos dias.

Redes virtuais e a transformação de bandeiras antifas e antirracistas em selfies

Quem acessou as redes virtuais nos últimos dias dificilmente deixou de notar as inúmeras correntes que foram puxadas com as mais variadas tags. Tal mobilização virtual e a pressão pela adesão dos ditos influenciadores (pessoas que possuem grande número de seguidores e patrocínio, o que, dentro da lógica de funcionamento dos algoritmos destas redes, os dão grande visibilidade e capacidade de compartilhamento) não pode ser encarado como algo menor ou até mesmo rejeitado, como ocorreu com setores da esquerda. Entretanto, não podemos esquecer que no mundo do capital tudo, rigorosamente tudo, tem potencial para virar mercadoria. Este processo de mercantilização da pauta é justamente o que vem ocorrendo e é ele que devemos também combater, mas como? Como vem ocorrendo este processo? Qual o recorte para o Brasil?

Desde o dia 1º de junho de 2020 as redes virtuais são inundadas de bandeiras antifas. Inicialmente as típicas preta e vermelha com a palavra “antifa”, mas que pouco a pouco foram mudando de cor e ganhando outros dizeres. Bandeiras com a estrutura [alguma profissão] /antifa e [característica individual] /antifa (por exemplo nerd, gorda, carioca, cearense, flamenguista, etc) foram aparecendo e massivamente publicadas nas redes virtuais. Basicamente o que se viu foi a caracterização individual em forma de bandeira antifa. O ocorrido foi suficiente para despontar uma série de narrativas sobre o assunto. Foi possível perceber desde aqueles que embarcaram na moda virtual do uso liberal do símbolo e aqueles que foram na direção da defesa do uso conservador das cores originais, com o argumento de esvaziamento de significado. No dia seguinte, 2 de junho de 2020, quem acessou as redes virtuais se deparou com a inúmeras telas pretas seguidas da tag #blackouttuesday. O movimento, de caráter global, convocou as pessoas a postarem telas pretas em suas redes, com o objetivo de dar visibilidade as lutas antirracistas. Artistas, intelectuais, influenciadores, famosos, empresas e até mesmo pessoas que respondem a processos por injúria racial se somaram ao movimento, levantando a tag. Entretanto, o resultado foi o apagão das lutas antirracistas em curso no mundo. Ao realizar uma busca usando as tags #blackouttuesday (terça de apagão), #VidasNegrasImportam, etc, o que aparecia era telas pretas.

Ambas ocorrências são faces do mesmo processo: a individualização e mercantilização de lutas coletivas. Podemos pensar a utilização das bandeiras antifas como selfie (deslocando o debate do eixo “certo ou errado”), mas da seguinte forma: em um país com mais de 12 milhões de pessoas desempregadas e com a taxa de informalidade no mercado na casa dos 40%, faz sentido tentarmos buscar uma identidade popular com a profissão que ocupamos? Indo um pouco mais além, numa luta anti-sistêmica (pois o racismo é um dos pilares do capitalismo) faz sentido nos definirmos nos moldes daquilo que é um marco do sistema atual, lê-se o trabalho? Outro questionamento é de que forma a exclusiva afirmação de nossas individualistas contribui para um processo que deve ser coletivo? Na mesma chave podemos refletir sobre e efeito do #blackouttuesday: até que ponto empresas e personalidades que lucram com a lógica do sistema atual podem ser nossas aliadas? Eles, supostamente, estão conosco agora, mas será que querem a mesma coisa? Estarão dispostos a somar na luta anti-sistêmica?

Quem viveu as manifestações de 2013 muito dificilmente não sentirá semelhanças com o que estamos vivendo agora. Logo, não podemos esquecer que movimentos liberais (que, como de costume, quando precisam flertam com o fascismo) tomaram forma e se fortaleceram justamente nesse processo liberalizante de lutas coletivas. Palavras de ordem como “meu corpo, minhas regras”, apesar de terem um sentido político forte, adquirem outro sentido num momento onde meu corpo passa a ser um agente de infecção coletiva. Não se trata do meu e ninguém constrói uma mudança estrutural e coletiva gritando meu. É passada a hora de, como nos traz Ailton Krenak[4], nos espelharmos mais em cosmovisões indígenas onde o “Eu” não faz sentido sem o “Nós”, onde a relação sujeito e natureza não pressupõe propriedade e produção. De maneira geral, setores da esquerda estão acostumados a pensarem processos de transformações sob a forma de produção e propriedade. Não seria a hora de rompermos com esse pensamento?

O fascismo brasileiro na época de Bolsonaro

É fato que o fascismo brasileiro não é algo que vem de agora e, como diz a historiadora Virgínia Fontes, o fascismo pode ter sido derrotado militarmente em determinada época, mas suas ideias continuaram por aí, sobrevivendo nos esgotos da sociedade e aparecendo de forma brutal eventualmente. O indígena Galdino de Jesus dos Santos foi queimado vivo por uma ação fascista no final dos anos 90, Diego Vieira Machado, um jovem negro e gay estudante da UFRJ foi assassinado por uma ação fascista em 2016, o assassinato de Marielle Franco foi uma ação fascista e o menino de apenas 14 anos João Pedro Mattos foi assassinado durante operação da instituição do Estado com profundas marcas fascista, a Polícia Militar. No Brasil onde o próprio presidente flerta e faz sinais para a parcela fascista da sociedade, precisamos, mais do que nunca, nos protegermos. Recentemente tem circulado o argumento de que somos 70% contra os 30% bolsonarista. Diante disto faço a seguinte pergunta: que outra pessoa no Brasil possui um apoio desse tamanho expresso em sua figura? Esse chamado 30% não são os que apoiam o governo de maneira geral e sua política, são os que apoiam Bolsonaro de forma cega e irrestrita. Quem no Brasil de hoje canaliza em si tamanho apoio? Como que um governo que entregou absolutamente nada e pode se resumir a pura morte e espoliação tem ainda assim 30% de apoio? Isso não é menor. Nem de longe. Vivemos num país que a estrutura do Estado permite a existência de aberrações como a PM, a polícia que mais mata no mundo. Deste mesmo Estado surge um poder paralelo como a milícia do Rio de Janeiro, que cada vez controla mais territórios e se mistura com as estruturas do poder, elegendo vereadores, prefeitos, deputados estudais, federais, senador e, há quem diga, até presidente.

Se uma das prerrogativas de existência do Estado é o poder de matar, o Brasil executa isso com excelência. Por isso precisamos ter cuidado, precisamos formar redes de apoio mútuo, criar táticas de defesa, de proteção virtual e propagar a solidariedade. Uma sociedade que assiste apática mais de 30 mil mortes ocorrerem por conta de uma doença não é uma sociedade. Se a longo prazo temos todo um sistema para destruir, a curto e médio prazo temos duas crises para lidar: a pandemia com todo seu sistema de administração da morte, controle e vigilância; Bolsonaro e seus 30%.

Rafael Velloso é físico e mestrando em filosofia. É um dos fundadores e editores do Portal Autônomo de Ciências.


[1] Acácio Augusto é doutor em Ciências Sociais pela PUC – SP e professor no curso de Relações Internacionais na Universidade Federal de são Paulo (UNIFESP)

[2] Apesar do movimento antifa ter surgido de uma ligação forte com o Partido Comunista da Alemanha, no pós-guerra, estes movimentos se desassociaram, de certa maneira, dos socialistas e comunistas, que passaram a se organizar mais fortemente na lógica dos partidos políticos.

[3] A AIB foi um partido político de cunho ultra-nacionalista, inspirado no movimento fascista italiano, fundado pelo escritor e jornalista Plínio Salgado. O fundado da AIB, anos mais tarde criou o Partido de Representação Popular (PRP), também de cunho conservador e, principalmente, anticomunista, chegando a concorrer como presidente nas eleições de 1955, onde obteve os significativos 8,28% dos votos. Após a instauração do golpe militar em 1964 e a extinção dos partidos políticos, Plínio Salgado se juntou à Aliança Renovadora Nacional (ARENA).

[4] Ailton Krenak é escritor, ambientalista e liderança indígena brasileiro. Pertence a etnia krenak, também conhecidos como aimorés. Seu território original era a Mata Atlântica no Baixo Recôncavo Baiano, tendo sido expulsos do litoral pelos Tupi, quando passaram a ocupar a faixa de floresta paralela, localizada entre a Mata Atlântica e o rebordo do Planalto. Depois do século XIX deslocaram-se para o sul, atingindo o rio Doce em Minas Gerais e Espírito Santo.

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