Guerra suja apoiada no discurso tecnocrático

24 de marzo é o 1º de maio dos patrões argentinos. O anti-Dia dos Trabalhadores no país do Messi e do Maradona. Em 1976, amplos setores do patronato da terra do Gardel deram um golpe de Estado, junto com amplos setores das Forças Armadas e do clero. Tiraram da cadeira presidencial a María Estela Martínez, viúva do Juan Domingo Perón, também conhecida como Isabel ou Isabelita Perón, mais pelo que ela representava do que pelo que ela estava fazendo, e impuseram em seu lugar uma junta militar encabeçada pelo general Jorge Rafael Videla. No mesmo dia, o Videla fez um pronunciamento em nome dessa junta, no qual apresentou o golpe e a ditadura que estava inaugurando como Proceso de Reorganización Nacional. Uma expressão tecnocrática, que buscava esconder que se tratava de uma guerra contra a esquerda e, de modo mais amplo, contra o povo trabalhador. Uma guerra, que ficou conhecida como guerra suja, em que, de forma metódica, foram utilizadas como ferramentas o sequestro, a prisão, a tortura física e psicológica, o assassinato e o desaparecimento, entre outras violências, como o roubo de bebês de opositoras pra famílias de participantes da ditadura ou próximas. Uma guerra em que os militares argentinos sujaram suas mãos com muito sangue (cerca de 30 mil pessoas foram mortas ou desaparecidas) do próprio povo argentino pra favorecer sobretudo amplos setores das classes dominantes dos países imperialistas contra a Argentina, especialmente os Estados Unidos e a Inglaterra, mas também a França e a Alemanha, por exemplo. Mataram Juan pra favorecer John, Jean, Johann… Mataram María pra favorecer Mary, Marie, Maria… Não qualquer John, Jean, Johann… Não qualquer Mary, Marie, Maria… Os e as das classes dominantes. Executaram pra favorecer executivos. Colocaram o povo como inimigo.

Soco inglês pra nocautear o povão

Outra arma da guerra contra o povo foi o liberalismo econômico. A própria guerra suja teve como um dos objetivos garantir a imposição do liberalismo econômico. Mas o liberalismo foi em si mesmo uma das armas. E essa arma foi especialmente embalada com o discurso tecnocrático. O cifrão é a espada a crucificar o povo. O soco inglês a nocautear cotidianamente o povo. Os óculos escuros da repressão policial-militar. A máscara do monstro.

O monstro se esconde. Mas é impossível se esconder sempre. Seja porque é descoberto, seja porque se descobre movido pelo ímpeto da violência que tenta disfarçar com o discurso tecnocrático. O disfarce faz parte do monstro. A máscara também é o monstro.

Parte importante dos patrões argentinos e dos seus patrões estrangeiros finge hoje em dia que não tem nada a ver com o 24 de marzo. Alguns até apontam criticamente pra ponta do iceberg do monstro tratando a ponta como a totalidade. Mas o 24 de marzo continua sendo seu dia. O porão dos porões da ditadura empresarial-militar que ensanguentou o país de 1976 a 1983 (http://cienciaeautonomia.org/…/la-mano-del-pueblo-x-a…/) é the corporation. O porão dos porões era a oficina, o bureau. A oficina mecânica da Automotores Orletti, transformada em centro clandestino de tortura, era um porão; o the office da empresa era o porão do porão. O coletivo (individualista) de The office é The Corporation. Essa parte do monstro se apresenta, principalmente hoje em dia, como asséptica, como se fosse um laboratório. Técnica. Neutra. Um permanente Proceso de Reorganización (Trans)Nacional. Organogramas bem organizados, planilhas bem feitas, gráficos milimetricamente ajustados, palavras pronunciadas como números… Os próprios laboratórios (e hospitais) terem adotado essa estética, abandonando arquiteturas como pequenos “palácios” ou de salas “bagunçadas”, tem muito a ver com o triunfo da lógica tecnocrática. O horror a estilos complexos como parte do terrorismo de Estado. O golpe de Estado é um golpe de Mercado. O golpe de Estado-Mercado é um discurso em si, muito concentrado, uma arma discursiva, que busca assassinar os discursos diferentes. E o discurso tecnocrático, principalmente naturalizado, é um golpe de Estado na linguagem. Uma linguagem programada pra deletar a linguagem que sempre escapa das programações.

Vitórias na luta contra a ditadura

Amplos setores dos que lutaram contra a ditadura empresarial=militar imposta em 1976 conseguiram que, oficialmente, o Estado argentino, a partir de 2002, passasse a tratar o 24 de marzo como Día de la memoria por la verdad y la justicia. As incansáveis Madres y Abuelas de Plaza de Mayo, os muito comprometidos H.I.J.O.S. (Hijos e Hijas por la Identidad y la Justicia contra el Olvido y el Silencio) e outros foram fundamentais pra isso. Sabem bem que manter a memória crítica em relação à ditadura é indispensável pra que o Nunca más seja uma realidade. Sabem também que muito ainda precisa ser descoberto sobre esse período. E que, se os agentes da ditadura não forem punidos, fica mais fácil haver uma nova ditadura mais direta. O Videla, que fez o primeiro discurso da ditadura empresarial-militar e foi seu primeiro presidente-general-gerente, morreu, aos 87 anos, em 2017, na prisão (https://g1.globo.com/…/morre-aos-87-anos-o-ex-ditador…). Diversos outros agentes da ditadura foram presos desde 1983. Alguns recentemente (https://g1.globo.com/…/argentina-prende-ex-militares…). Vários outros estão sendo processados. O veredito de um desses processos foi proferido no dia 26 de março (https://www.facebook.com/100069422190372/posts/pfbid08YH3SrQfvdhqAikTTu79PKNAgvT4LBa49XBzYGcLJmQjNakaPnsZB2qPNNfzeGkdl/?app=fbl e https://web.facebook.com/100069422190372/posts/pfbid037XJcQhkQyytoeB24gKqAVwG3b9vcRDsDVZQmGWa6GxaUSAwdjFReCFdmDhKDKNvzl/?_rdc=1&_rdr). Em 24 de março de 2004, quando era presidente da Argentina, o peronista Néstor Kirchner mandou retirar os quadros dos ditadores Rafael Videla e Reynaldo Bignone da Escola Militar (https://www.youtube.com/watch?v=xTG-pihZ_WQ) e transformou a Escuela de Mecanica de la Armada (Esma), utilizada como centro de tortura na ditadura, em museu sobre a ditadura (https://jornalggn.com.br/…/o-dia-em-que-nestor…/). Em 2005, a luta popular logrou a revogação das leis Obediencia Debida e Punto Final (https://www.youtube.com/watch?v=QSnRstXAS8M), que haviam sido promulgadas (https://www.youtube.com/watch?v=yIRCr5fFS9M) durante o governo do Raúl Alfonsín (1983-1989), o primeiro após a ditadura. Essa revogação permitiu que muitos agentes da ditadura passassem a ser julgados. Outros centros clandestinos de tortura, como o Pozo de Banfield (https://www.comisionporlamemoria.org/…/espacio-para-la…/) e La Perla (https://www.comisionporlamemoria.org/…/espacio-para-la…/) também foram transformados em espaços de memória. Até hoje, o esforço coordenado pelas Abuelas de Plaza de Mayo conseguiu encontrar 137 netos (https://www.facebook.com/reel/1130400551717950/?app=fbl) que, durante a ditadura, haviam sido roubados, a maioria bebês. A presidente das Abuelas, Estela de Carlotto, conseguiu, inclusive, encontrar seu neto (https://www.facebook.com/photo?fbid=804074185089985&set=pcb.804074695089934), Guido, em 2014 (https://www.youtube.com/watch?v=MDC-WXz2GS8). Foi o 114º neto encontrado. O esforço continua. Neste 24 de março, fizeram mais uma passeata, da ex-Esma até a Plaza de Mayo (https://www.youtube.com/watch?v=rKP9tGYqUXY).

Êxitos muito importantes. Que devem ser mantidos e ampliados. Inclusive, porque o fascismo associado ao liberalismo continua empenhado em ocupar o trono político. No dia 20 de março, quatro dias apenas antes do 24 de marzo agora, dois indivíduos que se apresentaram como participantes da coalização liberticida La libertad avanza, que elegeu o atual preseidente da Argentina, Javier Milei, invadiu o domicílio de uma integrante do H.I.J.O.S., a esperaram chegar, amarram-na, bateram nela, ameaçaram-na com armas de fogo e abusaram dela sexuamente (https://www.instagram.com/p/C4xtTpEu-1I/). Não roubaram nada de valor material. Levaram documentos do H.I.J.O.S.. Um atentado político, que é um perigoso sinal (https://www.instagram.com/p/C4yR5z7LIgp/).

O liberalismo capitalista é uma fábrica de Mileis

Os amplos setores dos que lutaram contra a ditadura e que conseguiram êxitos muito importantes como esses não puderam impedir que alguém como o Javier Milei se tornasse presidente da Argentina, no ano passado. Milei que é fã da ditadura do Videla e CIA. Milei que é muito bem definido pelo escritor Gilberto Felisberto Vasconcellos (https://gilbertofelisbertovasconcellos.blogspot.com/…) como um psicopata, um liberticida, um vende-pátria, um michê pornô-pop do capital videofinanceiro, uma mistura de Fernando Collor com Jair Bolsonaro, um cambalacho anal-liberticida predatório prenunciado pelo cineasta Stanley Kubrick por meio do personagem principal do filme Laranja Mecânica, um porradeiro, misógeno, violento e fascista, com o mesmo olhar pop, sádico, cruel, desalmado do presidente da Argentina, alguém que é e não é uma cópia do Jair Bolsonaro, que descarta o sócio burguês nacional, colocando o capital estrangeiro como dono de tudo, espiroqueta que lembra a gestuália nazi-fascista nos filmes de Luchino Visconti, um produto boçal de show de rock punk funk, um produto da indústria cultural, uma expressão de uma Argentina tiktok epilética… Um replay tragicômico do tragicômico Menem, o Collor de costeletas. O grotesco showbiz em formato pré-fabricado de “presidente”. Um golpe de Estado(s) Unidos em formato de programa de auditório imbecilizante. O Milei goza com o dólar. Como diz o Gilberto Felizberto Vasconcellos, “a Argentina deveria voltar para o tango de Gardel”.

Esses amplos setores, que, em parte, conseguiram transformar o 24 de marzo numa fecha também sua, também do povo trabalhador, com as divisas Memoria, Verdade y Justicia, Nunca Más y Ni Olvido ni Perdón, ao mesmo tempo em que, como parte dessa parcial transformação, souberam manter a lembrança de que o 24 de marzo é o dia dos patrões, justamente pra que nunca se esqueça, esbarram num limite que tem impedido sepultar “completamente” o fantasma da ditadura (mais direta): o liberalismo econômico. Entre outros aspectos, é a degradação da vida do povo e de todo o tecido social argentino operada pelo liberalismo que dificulta pruma parcela do povo, inclusive do povão, ter certeza de que a ditadura (mais direta) tem que ser impedida pra sempre. Se o que é chamado de democracia não garante o pão, a casa e o ganha-pão, pra que serve a democracia? Especialmente, pro povão, que costuma ser alvo da polícia no dia-a-dia, seja na democracia, seja na ditadura. A democracia política é importante, mas, sem democracia social, é uma versão da ditadura do capital. Se o liberalismo não for derrotado, fascismos estarão sempre como parte do cotidiano, em maior ou menor grau, e sempre a postos pra tocar seu Clarín de vitória. O liberalismo é uma forma do capitalismo. Assim, pra além do liberalismo, o capitalismo é o sobrenome do fascismo. A suástica do capitalismo é o cifrão.

Lutar contra a privatização e por uma integração energética com soberania popular

O Milei quer privatizar a Yacimientos Petrolíferos Fiscales (YPF), a Petrobras argentina. O Menem a privatizou nos anos 1990 (https://sites.usp.br/portalatinoamericano/espanol-ypf). Em 2012, a Critina Kirchner retomou o controle (51% das ações com direito a voto) da YPF pro Estado argentino. A luta contra a privatização da YPF, assim como por sua profunda democratização, deve ser uma luta também dos petroleiros brasileiros. Afinal, se a privatização da YPF for adiante, ficará mais fácil pra privatizar de modo mais completo a Petrobras. O atual governo brasileiro, encabeçado pelo Lula, puxou o freio do privatismo, e isso é muito importante, mas o Sistema Petrobras está muito privatizado, sequer se fala da retomada da maioria dos ativos privatizados, alguns ativos ainda não foram retirados do rol de privatizações (por mais que tenham sido colocados nesse rol no governo do Bolsonaro) e o cerne da lógica de funcionamento da Petrobras e das suas subsidiárias continua privatizado. A mídia mais diretamente mercantil ecoa diariamente a parcela dos privatistas e liberais em geral que quer que a Petrobras sirva exclusivamente aos seus interesses. Nesse sentido, ataca o que chama de intervencionismo do governo na Petrobras. Mais um ataque tecnocrático, que busca reforçar a idéia de que empresas só devem servir a aumentar cada vez mais as fortunas dos grandes acionistas privados. Que busca reforçar a idéia de que a gestão privada é a única correta numa empresa. O Estado brasileiro (muito controlado por agentes privados, mas com algum grau de lógica de país) detém a maior parte das ações com direito a voto da Petrobras, por mais que seja apenas pouco mais de 50% dessas ações e que a maior parte das ações em geral da maior e mais estratégica empresa do Brasil estejam em mãos privadas, sendo grande parte em mãos estrangeiras. O Estado brasileiro definir (um pouco, muito pouco, e sem passar realmente pelo povo) os rumos da Petrobras é o acionista majoritário os definindo. Se o acionista majoritário fosse privado, o chamado mercado não caracterizaria como intervencionismo. Trataria como algo natural. Em vez de tentar privatizar a YPF, o governo argentino deveria torná-la pelo menos realmente pública, com ampla participação popular, e se empenhar na integração energética latino-americana numa lógica de soberania popular.

Antony Devalle é trabalhador da Petrobrás e integrante do grupo autônomo de trabalhadores petroleiros Inimigos do Rei. É um dos fundadores e editores do Portal Autônomo de Ciências.

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