Dener e o dibre como sonho do povão

No dia 21 de janeiro de 1994, o Vasco da Gama jogou um amistoso com o Newell´s Old Boys em Rosário, na Argentina. A partida terminou 0 x 0, mas foi um bom jogo, que chamou a atenção especialmente, antes mesmo do seu início, pela participação do Maradona no time argentino. Já (con)sagrado com a conquista da Copa de 1986, no México, com uma campanha épica, com muitos lances geniais, como dois dos mais famosos gols da história do futebol, marcados contra a Inglaterra (http://cienciaeautonomia.org/2020/11/como-maradona-contra-os-ingleses/), o La Mano de Dios e o El Gol del Siglo, aquele em que, partindo da altura do meio-de-campo, pela lateral direita, driblou grande parte dos jogadores ingleses, inclusive o goleiro, a atenção em torno do D10s era plenamente previsível. Mas nem os mais brilhantes holofotes seriam capazes de ofuscar a atenção em relação ao Dener Augusto de Sousa, jóia da Portuguesa, que já havia encantado conduzindo com genialidade a Lusa no título invicto da Taça São Paulo de Futebol Júnior, a Copinha (https://www.youtube.com/watch?v=LtMv0tsAczc), por 4 x 0, contra o Grêmio, em 26 de janeiro de 1991, com um golaço, o primeiro da goleada, em que chutou firme após um drible em que, na prática, tabelou involuntariamente com um jogador adversário (https://www.youtube.com/watch?v=K4tpE8Jv2Lg). Outros golaços do Dener o credenciaram como uma das principais esperanças de glória do futebol-arte brasileiro. Por exemplo, o que ele marcou contra a Inter de Limeira https://www.youtube.com/watch?v=IJJoQp-PwfQ), em 14 de novembro de 1991. Ele partiu do meio-de-campo e, em velocidade, driblou grande parte do time adversário, um deles tocando a bola de um lado e passando pelo outro pra pegá-la à frente. Um gol que poderia ser assinado pelo Maradona. Uma espécie de Gol del Siglo inteiramente pelo centro do campo. Até hoje, é o gol mais bonito da história do Canindé. Outro golaço inesquecível do Dener foi na vitória da Portuguesa por 4 x 2 contra o Santos (https://www.youtube.com/shorts/qnEEQW9GeJA), em 1º de maio de 1993, no campeonato paulista. Recebeu a bola, girou com ela como que grudada no pé, deu uma caneta no jogador santista ao seu lado, passou por outro santista e driblou o goleiro, antes de, quase caído, esticar a perna pra colocar a bola na rede.

Foi nesse contexto que o Maradona se encantou com o Dener no jogo entre o Newell´s Old Boys e o Vasco (https://www.youtube.com/shorts/7yr8gr29wEc). Especialmente numa jogada em que o brasileiro, Deus do Drible, pelo lado direito do campo, inicialmente perto da área adversária e depois dentro da área, indo até a pequena área, entortou 5 jogadores do time argentino, fingindo que ia prum lado e partindo pro outro, num zigue-zague estonteante, que só não resultou em golaço porque o goleiro impediu, numa boa defesa. O Maradona balançou a cabeça, sorrindo, admirado, com seu olhar incrédulo de crente no Deus do Drible, como que dizendo “como é possível esse garoto fazer o impossível?!”, como que exclamando “per la Maradona, que cracaço esse Dener, que gênio esse moleque!”. El 10 reconhecendo o novo 10 mágico. Um gênio reconhecendo outro gênio.

“Às vezes eu acho um dibre bonito mais bonito do que um gol”

O Dener adorava marcar gols. Especialmente golaços. Festejava seus gols efusivamente, como a mais feliz das crianças. Mas ele ressaltava que gostava ainda mais de driblar. “Às vezes eu acho um dibre bonito mais bonito do que um gol”, declarou numa entrevista, falando de dentro do gol, com a rede diante do seu rosto como um véu de linda renda da religião futebol (https://www.youtube.com/shorts/7yr8gr29wEc). A palavra drible já é um mini trava-língua, um tipo de imitação do drible em forma de palavra, uma linguagem que dribla. Mas a palavra dibre, utilizada pelo Dener, é ainda mais genial. Entorta todos os defensores da tecnocracia. Dibre é futebol feitiço. Dibre é português feitiço. Dener, feiticeiro como o Bruxo Ronaldinho Gaúcho. O Dener brincava de jogar futebol. Jogava sorrindo. O Dener sorria futebol. O futebol era seu sorriso. O dibre, brincadeira por excelência, é um sorriso em forma de jogada, um sorriso da linguagem que é o futebol. Com caneta, o Dener escrevia páginas das mais lindas da história do futebol. Dener, com duas sílabas, como dibre. Dener, outro nome do dibre. Dener, seu nome ecoando no alto-falante do estádio na narração emocionada e emocionante do locutor. Dener, Dener, Dener, eco eterno na memória dos amantes do futebol-arte. O Dener jogou na Lusa. Também jogou no Vasco. Reizinho do Canindé, na Lusa ele escreveu lindas jogadas, lindos gols, lindos dibres, lindos campeonatos… Lindíssimas páginas da história do futebol, da arte, do Brasil. O futebol é um dos principais capítulos dos Lusíadas do Brasil. E o Dener escreveu algumas das mais lindas páginas desse Lusíadas, na Lusa e no Vasco, dois tempos dos Lusíadas no Brasil. O dibre é a poesia do futebol. O Dener um dos seus melhores poetas. O Camões tentaria jogar futebol com as palavras se visse o Dener criando palavras com a bola. Diante do gênio do Canindé, o gênio da língua portuguesa ficaria encantado, como o Maradona, balançando a cabeça e com um olhar incrédulo de crente na poesia recitando pra si mesmo “como é possível unir de forma tão bela o mais erudito e o mais popular?!”.

O Dener foi um artista da bola. O artista da bola quer (muitíssimo) ser campeão. Em geral, muito mais do que os demais jogadores. Dá sua vida por isso em campo. Mas o que o artista da bola realmente quer é fazer arte. Suas tabelas são rimas, seus passes são mágica, seus chutes são profecias de felicidade, seus dribles são Dener. O artista da bola, como o artista em geral, utiliza técnica, na maioria das vezes de forma exímia, mas sabe perfeitamente que a mais refinada técnica é incapaz, por si só, de fazer do futebol arte. O artista da bola cria jogadas. Cria futebol. É um fora-de-série. Inimitável. Inigualável. Mesmo que todos queiram imitá-lo, que todos queiram ser como ele. Inspirado, é inspiração pra legiões urbanas e de todos os campos. Trata com carinho a bola (de cristal) na qual antevê jogadas tiradas da cartola. Pensa e intui o jogo. O artista da bola é um repentista. Pode até ensaiar várias jogadas nos treinos, mas cria mesmo enquanto as vai fazendo, enquanto vai jogando. O gol do artista da bola é a arte. Seu objetivo é subjetivo. Ele é ao mesmo tempo anti-parnasiano e amante da arte pela arte. Sua arte é o povão numa de suas mais lindas formas. Sua arte é o sonho popular tornado realidade. É beleza. Sua chuteira é de ouro, como seus pés descalços. Sua bola é do mais valioso ouro. O estádio é o Theatro Municipal do seu jogo. É sempre ao mesmo tempo um templo da sua arte e o tempo da rua onde brincava de ser craque. O artista da bola é, na prática, um anti-CEO. Seus movimentos não cabem em planilhas. Seu pensamento não aceita as grades do cifrão. Os CEOs podem até pagar altas cifras por suas apresentações geniais, mas, querendo transformar tudo em mercadoria, tentam muitas vezes controlar o artista da bola, pra que seja previsível, pra que seja objetivo, pra que seja eficiente. Mas a característica do artista da bola é ser imprevisível, mesmo quando é previsível. É isso que faz dele um fora-de-série. A linguagem anti-literária do CEO é reta. O papo reto do craque é a jogada sinuosa.

D10s-Deus do Dibre x CEO

A crítica mais profunda do Maradona à ditadura empresarial-civil-militar inaugurada mais diretamente na Argentina com o golpe de 24 de março de 1976 foi dentro de campo. Foi seu estilo de jogo, seu futebol-arte, sua magia com a bola (http://cienciaeautonomia.org/2021/03/obra-prima-do-povao-na-luta-contra-a-privatizacao/). A ditadura argentina, autodenominada Processo de Reorganização Nacional, adotou, desde a própria autodenominação, uma violenta linguagem tecnocrática. Utilizada pra tentar encobrir o sangue da violência mais direta, era o sangue “invisível” da ditadura, que andava de mãos dadas com a mão “invisível” do mercado. A sanguinária ditadura tecnocrática do Videla e (da) CIA podia até manipular a seu favor a imagem do Maradona, mas era incapaz de evitar completamente que o contraste entre a sua linguagem e a do futebol do D10s revelasse o caráter profundamente antipopular da ditadura. O Dener, com seu futebol e com sua fala sobre o dibre (fala que, no fundo, é parte do seu futebol, que é seu futebol em palavras), foi (e continua sendo, in memorian) um dos maiores críticos da tecnocracia no Brasil. D10s-Deus do Dibre: união do povão, rima do futebol.

A lógica do CEO é a do técnico. O técnico como domador do craque. O técnico é diferente do treinador. O técnico se coloca (e é colocado por muitos) como a principal figura do time. Como alguém que estuda e que sabe as técnicas mais adequadas, as táticas mais eficientes, a estratégia mais correta pro time vencer. Como cérebro. Ele se coloca como aquele que sabe o que o craque tem que fazer, como o craque tem que jogar. Mesmo quando diz que o craque tem liberdade pra jogar no seu próprio estilo, tenta limitar essa liberdade encaixando-a no seu esquema tático. Pra ele, seu esquema é o principal. O futebol é um esporte coletivo, e boas táticas e boas estratégias podem ajudar o craque e são muito importantes, mas não é a tecnocracia que faz o craque. É uma cultura anti-tecnocrática. Um jogo que demonstra isso de modo especial é o Brasil 2 x 0 URSS na Copa de 1958 (https://www.youtube.com/watch?v=rGR_3oxHVY8). A URSS se apresentava como futebol científico, com o jogo muito bem pensado, muito bem organizado, com estratégia e tática muito bem articuladas. Tudo muito bem calculado. Tinha até um jogo interessante e de qualidade, com o goleiro Lev Yashin, um dos melhores da história, como destaque, como craque mesmo. Apesar de máquina, a URSS levantava, em sua camisa, com o CCCP estampado no peito, a bandeira do socialismo, ainda que muitos socialistas tivessem sido massacrados pela URSS. No sonho de muitos, ali estava um símbolo do socialismo. Isso talvez tenha ajudado a dar uma alma ao time. Apesar disso, uma máquina. Uma técnico-lógica. O Brasil, com a lógica da arte, venceu a tecno-lógica. Logo no início do jogo, especialmente com o Garrincha, artista genial, o Brasil desmontou toda a lógica tecnocrática da URSS, que não sabia mais o que fazer pra tentar fazer valer a tecno-lógica.

O artista da bola dibra o CEO

A tecnocracia no futebol é uma expressão da tecnocracia na sociedade em geral. Numa de suas linhas, utiliza o craque e até, em alguns casos, relativamente raros, o deixa ser craque do seu próprio jeito. Concessão pragmática, por um lado, e, por outro, operação pra dificultar a identificação da lógica tecnocrática como um problema pro futebol. Setores da tecnocracia colocam a arte na sua programação. Fazem um softiuere complexo, no qual a arte do craque figura no código (de barras). Na interface gráfica desse softiuere, o CEO, Príncipe de Gales da tecnocracia, coloca a ilusão de que o craque, no futebol atual, só consegue exercer a sua arte porque está num esquema de lógica técnica, só porque está orientado pelo CEO. O maior temor do CEO é que o craque seja um Banksy que autodestrua sua obra de arte (https://www.youtube.com/watch?v=ynHl7bU_aPU) logo depois que o CEO a exibir como prova de que o futebol precisa dele, CEO, de sua tecno-lógica, e que, após a autodestruir, como um mágico que é, a faça reaparecer no telão do estádio onde aparece aplaudido por vários craques da história do futebol e pelo povo, mostrando o CEO tentando derrubá-lo de todas as formas, com carrinho, puxando a camisa, dando pontapé, xingando, ameaçando… E o craque deixando o CEO no chão, dibrando a programação do softiuere do CEO.

Precisamos de uma Petrobrás-Dener

A Petrobras, além de maior e mais estratégica empresa do Brasil, é uma instituição que, de certa maneira, integra o país, assim como, de modo muito mais direto, o futebol. Ambas as instituições já integraram mais, num sentido mais completo, quando eram a pátria de chuteiras e a busca de independência econômica em forma de empresa, quando o privatismo mais direto ainda não tinha colocado em marcha sua blitzkrieg e, pior ainda, se instalado, junto com o liberalismo econômico, como naturalizados no cotidiano. Ainda assim, integram o país. E, também de forma até certo ponto semelhante, também sofrem com a tecnocracia. O Brasil recriou o futebol, imprimindo nele o seu jeito, a sua cultura popular. Os craques eram eruditos da cultura popular brasileira, com uma erudição popular, acessível aos moleques do campo e das periferias urbanas. Hoje, o futebol no Brasil busca copiar a Europa. Está subordinado à lógica CEO. Não busca mais tanto ser brasileiro. Busca menos bruxaria, menos arte. A Petrobras, mesmo quando Petrobrás, nunca foi o trenzinho caipira da economia brasileira. Foi locomotiva, mas nunca trenzinho caipira (http://cienciaeautonomia.org/2020/06/o-trenzinho-caipira-e-outros-trens-do-povao/). Embora tivesse (sobretudo) e, apesar de tudo, ainda tenha potencial pra ser. No entanto, esse potencial sempre foi travado, e mesmo ofuscado e até despercebido por muitíssimos, devido ao discurso tecnocrático em torno da Petrobras. A Petrobras é o Brasil que deu certo: essa frase, geralmente acompanhada de dados econométricos e de engenharia, de imagens com estética tecnocrática, como a do asséptico Edifício Senado (Edisen), prédio que a Petrobras utiliza no Centro do Rio de Janeiro e cuja estética busca passar a idéia de neutralidade da técnica, tudo sempre embalado com falas sobre a qualidade técnica da empresa, enfatizando, inclusive, a expressão corpo técnico pra se referir aos seus trabalhadores, resume o cerne de como, mesmo entre defensores de uma Petrobras a serviço da justiça social, a visão tecnocrática exerce imensa influência. Os trilhos dessa lógica expulsam (e escondem que expulsam) o trenzinho caipira, uma das obras-primas do Brasil, o Brasil como obra-prima. O doce de leite é o Brasil que deu certo, o carinhoso sufixo inho é o Brasil que deu certo, o futebol-arte é o Brasil que deu certo, o samba é o Brasil que deu certo, o catira é o Brasil que deu certo (https://www.youtube.com/watch?v=2DUD5io9ayM), a congada é o Brasil que deu certo (https://www.youtube.com/watch?v=oEk6AjCNzKg), a poesia do Mário Quintana é o Brasil que deu certo, o trenzinho caipira é o Brasil que deu certo… Ser feliz mesmo em meio a tantas dificuldades e seguir na luta é o Brasil que deu certo. O Brasil que deu certo é o Brasil que não faz ctrl c ctrl v no que é de fora, mesmo que se construa também com o que vem de outros lugares, como o rock (do gênio Renato Russo), o rap (do genial Racionais), o funk (como cantava o Príncipe do Funk MC Marcinho, “Diz pra mim o que seria de mim se não fosse o funk” – https://www.youtube.com/watch?v=QpV_Eg63KZg)… Nossa mátria é o mundo inteiro. Mas somos nós, é nóis. Precisamos de uma Petrobrás trenzinho caipira do Brasil. Precisamos de uma Petrobrás que seja um Dener na economia brasileira. Precisamos de uma política econômica menos cópia do Guardiola e mais Ronaldinho Gaúcho. Menos CEO, mais Bruxo. Que o Dener e outros artistas da bola nos inspirem.

Antony Devalle é trabalhador da Petrobrás e integrante do grupo autônomo de trabalhadores petroleiros Inimigos do Rei. É um dos fundadores e editores do Portal Autônomo de Ciências.

Tags , , , , .Adicionar aos favoritos o Link permanente.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado.