Uma barricada petroleira contra o bunker quartel-general da tecnocracia

18 de março marca o início da Comuna de Paris, em 1871. Nesse dia, pessoas do povo impediram que o governo “republicano” encabeçado por Adolphe Thiers retomasse canhões que estavam com a Guarda Nacional. Paris estava sitiada pelos alemães (a Guerra Franco-Prussiana iniciada no ano anterior tinha acelerado a unificação alemã, criando o Estado nacional burguês da Alemanha). O governo burguês francês, que utilizava um discurso nacionalista pra que o povo não acreditasse na luta de classes, estava combinando com seu correspondente germânico pra fazerem valer a fórmula “paz entre nós, guerra aos trabalhadores”. Frente à agitação social, ao povo querendo pão e farto das sucessivas ironias do tipo “Não têm pão? Comam brioche.”, os capitalistas franceses escolheram entregar parte do território do país aos alemães e se aliarem a eles pra esmagarem a revolução social. O povo disposto a lutar contra o invasor e o governo burguês, que falava de nacionalismo pra que o povo aceitasse o capitalismo, capitulando e confraternizando com o invasor, provando na prática que, apesar das rivalidades geopolíticas, a burguesia prioriza manter a ordem burguesa. Não que as disputas geopolíticas não contem. Contam muito. Tanto que três décadas depois eclodiria a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), interimperialista, em que a burguesia alemã buscou pelas armas se tornar uma das grandes sócias da grande empresa colonial, que, nessa época, era dominada pela França e, sobretudo, pela Inglaterra. Mas a aliança entre burgueses dos dois lados do Reno evidenciou que contra a transnacional burguesa é fundamental o internacionalismo dos trabalhadores. Contra a lógica “paz entre nós, guerra aos trabalhadores”, é necessária a lógica “paz entre nós, guerra aos senhores”. A Comuna de Paris expressou essa questão de forma nítida.

Thiers-État x Tiers-État

Após perder a batalha dos canhões, o governo de Adolphe Thiers se mudou de Paris pra Versalhes. No esplendoroso palácio de Luís XIV, a burguesia mostrava (de novo) que era o novo Rei Sol. O Estado de Thiers não permitiria que o povão do Tiers-État mantivesse seu próprio governo, que era um passo imenso pruma sociedade sem Estado burguês. O Thiers-État se reorganizou e levou a cabo uma guerra de extermínio contra o povão da Comuna de Paris. Como o império francês (que é império mesmo sendo “república”) fazia com os povos das partes do mundo que colonizava. Thiers-État x Tiers-État = guerra da classe capitalista contra o povão em luta social. O patrão é meu senhor; nada lhe faltará. O povão da Comuna se recusa a dizer amém.

A Comuna de Paris durou 72 dias: de 18 de março a 28 de maio. Na última semana, Versalhes foi especialmente cruel contra os communards. As tropas de Thiers mataram mais de 30 mil pessoas, grande parte executada. Esses dias ficaram conhecidos como Semana Sangrenta.

Mesmo assim, a Comuna de Paris operou diversas importantíssimas mudanças em prol dos trabalhadores (https://www.youtube.com/watch?v=Wlr4joHhOrw…). Escola pública e laica, em que o pensar e o fazer eram costurados como parte da construção de uma nova sociedade; fim da exploração do trabalho, com ênfase em direitos pras mulheres e crianças; igualdade de direitos entre homens e mulheres; fim do exército, substituído pelo povo em armas; entrega das empresas dos patrões fujões aos trabalhadores; não utilização do trabalho noturno; redução da jornada de trabalho; criação de creches públicas; pensões pras viúvas; os eleitos pro governo comunal não poderiam receber mais do que um trabalhador comum, seus mandatos seriam controlados pelo povo, que poderia revogar os mandatos a qualquer momento se os eleitos não cumprissem a vontade popular; o estímulo da arte como uma ação política do povo e dos artistas como parte do povo… O povo no poder transformando-o em poder do povo. Herdeira de uma tradição revolucionária que tem estações como 1789, 1830 e 1848, a Comuna de Paris se tornou uma referência incontornável pra todos os que querem um mundo sem patrões, com liberdade, igualdade e fraternidade conjugadas pelo povo. Um governo do povo, e não apenas em seu nome. Versalhes tentou eclipsar pra sempre a Comuna de Paris, mas essa revolução, mesmo vencida, massacrada, irradia a esperança.

Os capitalistas que mataram a Comuna se empenharam pra pintar os communards como selvagens. No final dos combates, communards atearam fogo em diversos lugares símbolos do capitalismo anti-povo. Em parte por questões táticas da batalha, pra impedir que os versalheses atirassem nas barricadas do alto dos prédios, em parte como mensagem política em forma de arte-vingança. Bombardeios versalheses também causaram incêndios em edificações, ainda que sem essa intenção. O poder burguês estraçalhou também com palavras os incêndios provocados por communards. Chamou de petroleiras as mulheres que participaram dessa ação. Fizeram de tudo pra sujar a memória delas, enquanto lavam incessantemente suas mãos (in)visíveis do Estado-Mercado sujas de sangue. Valorizemos a memória dessas mulheres.

É preciso queimar o filme da tecnocracia

No filme Bastardos Inglórios, a personagem Shoshanna (depois com a identidade clandestina Emmanuelle Mimieux, interpretada pela atriz Mélanie Laurent), francesa dona de um cinema na Paris sob ocupação nazista, incendeia, com ajuda de um amigo negro, seu próprio cinema durante a exibição forçada de um filme de exaltação aos nazistas tendo um monte de nazistas, inclusive de alta patente, como o ministro da propaganda Goebbels e o próprio Hitler, na platéia (https://www.youtube.com/watch?v=DYYYAeSWOlI). Ficção que sonhamos como realidade. Obra de arte dentro da obra de arte. Petroleiras são como essa personagem. Incendeiam a barbárie, que se apresenta como civilizada enquanto massacra os que rotula como bárbaros.

Na Petrobras cuja lógica de funcionamento já é Petrobrax, a hierarquia privatista e todos os seus agentes e admiradores fora da hierarquia chamam civilização de técnica. O mito da técnica como algo neutro é o x da questão que não permite questionamento. O termo civilização também beijou o mito da neutralidade da técnica, mas vestia um terno visivelmente político. O termo técnica coloca mais facilmente sobre os interesses inconfessos a capa da invisibilidade. A quem critica as decisões do privatismo, a tecnocracia afirma: “vocês opinam, nós decidimos tecnicamente; por isso, devemos blindar nossas decisões das opiniões de vocês.”. Quem tenta furar a blindagem é recebido com blindados que atiram técnica. Em termos simbólicos, a tecnocracia trata os que a combatem (não me refiro aos que fingem combatê-la) como Versalhes tratou os communards. Como selvagens inimigos da civlização. O partido da ordem é o partido da técnica. A técnica é a nova ordem. A ser obedecida. Como o civilizado Thiers, a tecnocracia privatista na Petrobras entrega territórios e se junta aos alemão contra o Tiers-État dos petroleiros. Assim, essa parcela dos petroleiros tem diante de si uma decisão a tomar: se render ou se organizar e lutar. Uma Comuna Petroleira é necessária. Uma barricada contra o bunker quartel-general da tecnocracia. Pra isso, os petroleiros precisam se fazer povo. Precisam se tornar communards. Os petroleiros precisam ser petroleiras. Como a Louise Michel. Como a Shoshanna-Emmanuelle Mimieux a ser petroleira na tela e na rua a incendiar o filme da tecnocracia. Uma Comuna Petroleira tem que lutar pra vencer. Pra isso, os petroleiros precisam se olhar no espelho e se verem como parte do povo. Precisam ver isso com convicção. Pra que não se iludam com espelhos de Versalhes. E precisam agir pra que outros setores do povo assim os vejam. Não há chance de vitória sem luta. E, mesmo que não vença, uma Comuna Petroleira poderia ser uma nova esperança a brilhar no coração do povo por séculos.

Antony Devalle é trabalhador da Petrobrás e integrante do grupo autônomo de trabalhadores petroleiros Inimigos do Rei. É um dos fundadores e editores do Portal Autônomo de Ciências.

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