Uma comemoração decidida num diálogo real imaginado

3 anos (e o tempo continua passando)

1º de maio. Dia dos trabalhadores. E aniversário do nosso Portal Autônomo de Ciências (PAC). Escolhemos inaugurar o portal nessa data porque somos trabalhadores, nos dedicamos à construção de uma sociedade sem patrões e consideramos que a ciência deve ser do povo. Não apenas no sentido de ser descida de uma torre de marfim e entregue às pessoas que, na maior parte das vezes, nunca conseguiriam subir na torre, pois a sociedade capitalista, sobretudo em sua vertente liberal em termos econômicos, é extremamente desigual, mas também feita por essas mesmas pessoas. Além disso, não pensamos a ciência como um conhecimento (em construção) e uma atividade neutros. Pelo contrário, o que se costuma chamar de ciência é, como qualquer campo humano, perpassado pelo social, pelo cultural, pelo político. O mito da neutralidade científica já causou terríveis danos aos povos, como a eugenia, como parte de todo o suporte que deu ao colonialismo e ao racismo em geral, e toda a utilização que dele se faz pra apoiar o privatismo. Ou seja, não basta não ter torre de marfim. É
necessário também que a ciência seja feita sem ser pensada como neutra, inclusive pra não ser reduzida a uma técnica sem alma. Isso é ser mais rigoroso em termos metodológicos. Uma sociedade sem patrões precisa
também descolonizar a ciência.

O nosso portal está completando 3 anos. Como nos anos anteriores, pautamos a comemoração. Afinal, como ressaltamos, entendemos que o trabalho que realizamos é importante, e empenhamos bastante da nossa
energia nesse projeto. Merecemos (sem confundirmos com meritocracia) um pedaço do bolo, que, aliás, tem muita ciência nos seus ingredientes. E nosso bolo tem fatias pra todos vocês. Mas nos deparamos, por outro lado,
com um sentimento de que não seria justo comemorarmos em meio a uma pandemia na qual já morreram mais de 3,1 milhão de pessoas no mundo, das quais mais de 400 mil no Brasil. Debatemos e, num exercício de imaginação, convidamos alguns cientistas e outras pessoas pra avaliarmos juntos o que fazer. Seus conselhos nos foram muito úteis. De qualquer forma, eles podem ficar tranquilos que os isentamos de erro de interpretação que porventura tenhamos feito.

Eis o nosso diálogo:

Um de nós: Então, pessoal, o aniversário do PAC está chegando. Que tal fazermos uma laivi com um tom mais de festa?

Todos os demais participantes do PAC: É uma boa. Afinal, não é todo dia que um projeto como esse chega a 3 anos.

Oswaldo Cruz: E vocês estão empenhados, de alguma forma, na luta contra essa pandemia.

Algumas semanas depois…

Um de nós: Estive refletindo. Será que devemos mesmo comemorar? Tanta gente morrendo, um governo que faz de tudo pra que haja mais mortes e ainda zomba dos mortos e das famílias…

Galileu: E, no entanto, ela se move…

Outro de nós: Consigo entender o lugar de resistência dos afetos positivos e acho que temos que sempre tentar nos conectar a eles pra nos dar força pra luta mesmo, mas pensar em celebrações ainda é um pouco difícil pra mim também… Tá difícil alcançar qualquer felicidade compulsória.

Nise da Silveira: A felicidade compulsória é uma farsa mesmo. E muito opressiva. Mas a felicidade, quando verdadeira, é muito importante. Observo isso nos gatos, por exemplo. E as mais lindas imagens do
inconsciente são felizes.

Aldous Huxley: Esse admirável mundo novo é um risco gigantesco. A felicidade depende de construirmos um novo mundo, que seja realmente admirável. Tristeza e felicidade devem se unir na luta.

Mais um de nós: De qualquer forma, não temos conseguido produzir tanto. A tristeza tem nos afetado. A própria lógica de ter que produzir sempre é um problema, que não leva em consideração os problemas das pessoas.

Pierre Verger: Fotografei a felicidade quando retratei pessoas dormindo no banco da praça, beijadas pelo sol, em pleno horário de expediente. Por que você não dormem um pouco ali também?

Outro de nós: Não tenho visto muitos grupos assumindo esse lugar de dificuldade e cansaço, não cedendo ao imperativo à produtividade. Acho importante reconhecermos isso.

Ainda outro de nós: Também fico triste com a pandemia, tanto pelas mortes em geral quanto pela mortes de algumas pessoas próximas. Esfregar felicidade na cara dos outros não é algo bom, mas também temos direito à
felicidade, apesar de tudo. E penso assim até por já ter passado um tempo considerável dos últimos anos bastante triste no dia-a-dia por causa de perseguição no trabalho.

Outro de nós: Importante isso que você está dizendo. Mas não temos produzido tanto.

Einstein: Isso é relativo.

Arquimedes: Eureka!

Ainda outro de nós: Agradeço, mestres. Concordo em criticarmos o produtivismo, naturalizado pelo capitalismo mesmo durante uma pandemia que, sobretudo por causa do capitalismo (especialmente, da sua vertente liberal em termos econômicos), tem causado uma mais-mortandade, com estreita relação com a extração de mais-valia por parte dos patrões. Mas também é importante, a meu ver, ressaltarmos que, mesmo nesse contexto, mesmo apesar desse contexto, temos, sim, produzido, numa lógica que buscamos que seja diferente (e, em grande
medida, conseguimos que seja), e que consideramos essa produção importante justamente pra, entre outras coisas, combater a lógica de produção que produziu a pandemia e o grande número de mortos. No
ano passado, produzimos 30 materiais. Considerando que somos poucos, que dividimos a nossa dedicação ao PAC com muitas outras atividades, tanto laborais quanto familiares (e de lazer, pois também precisamos – mesmo o PAC também podendo ser em parte um bom lazer) e que pra obter nosso pão de cada dia ainda precisamos alugar a nossa força de trabalho pra patrões dos mais diversos, avalio que, sem ceder ao produtivismo, produzimos bem.

Leitora: Realmente, pessoal. Inclusive, os materiais que vocês publicaram têm me ajudado durante essa pandemia. Descansem, vivam seu próprio tempo. Assim: … Mas, quando puderem, publiquem mais. E mais e mais… Sou fã de vocês. Mas não fiquem vaidosos, não, que não idolatro ninguém.

Renato Russo: A humanidade é desumana, mas ainda temos chance. Quando o sol bater na janela do teu quarto, lembra e vê que o caminho é um só.

Todos nós: Não existe caminho neutro, Renato. E são vários caminhos no caminho. Mas é isso mesmo, ainda temos chance. Apesar de tudo, o sol está batendo na janela do nosso quarto. Vamos cantar.

E foi assim, pessoal, que, apesar de todos os pesares, decidimos comemorar o aniversário de 3 anos do PAC. Você, trabalhador, você leitor, você, povo, você é nosso principal convidado. Vamos juntos continuar dando nossos pequenos passos na construção de uma sociedade em que o sol nasça pra todos.

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