Pandemia, trauma e terapia psicodélica

A pandemia chegou como uma surpresa para a grande maioria de nós. Não podemos falar assim para todos, afinal, epidemio e infectologistas[1] já alertam para o risco de um evento desse tipo há muitos anos (até mesmo Bill Gates já falou sobre isso)[2]. Sem falar nos autores de ficções científicas[3], e “preppers”, ou sobrevivencialistas[4]. De repente, nos vimos em cenários dignos de filmes apocalípticos, de parábolas, de sonhos (ou pesadelos)… Nas últimas semanas, vivemos como que num outro estado de consciência.

Mas não só esses citados têm expertise e preparo para lidar com os efeitos de cenários como os que estamos vivendo agora; muitos são os campos de conhecimento que produziram materiais que podem ser aproveitados nesse momento: o ramo da Psicologia que lida com Desastres e Emergências vêm produzindo materiais importantes, atualizando seus saberes, para pensar práticas possíveis nesse momento, em que o contato e a proximidade pode ser também um risco. Em desastres mais recentes (como os que tivemos, em Brumadinho[5], Mariana e Belo Monte[6]) o deslocamento de equipes inteiras para essas regiões foi requisitado, e fundamental para o processo de recuperação mínima dessas comunidades, através de acolhimento e acompanhamento psicológico para essas pessoas enlutadas e vivendo em grande grau de sofrimento.

Os Conselhos Regionais e Federal de Psicologia[7] e outras entidades de saúde pública, como a Fiocruz[8], vêm se esforçando nos últimos tempos para promover debates e produzir conteúdo para orientar tecnicamente a categoria de psicólogas na atuação em tal cenário, de prevenção ao COVID-19 e manejo de crise.

Sabemos que boa parte da população que passa por experiências desse tipo guarda em seus corpos e psique essas experiência no formato de traumas, configurando muitas vezes o chamado Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT, ou PTSD, na sigla em inglês para Posttraumatic Stress Disorder), descrito na 10ª versão do nosso Código Internacional de Doenças (CID-10)[9], no código F43.10, como “uma resposta retardada ou protraída a uma situação ou evento estressante (de curta ou longa duração), de natureza excepcionalmente ameaçadora ou catastrófica, e que provocaria sintomas evidentes de perturbação na maioria dos indivíduos”. Já no que seria a versão americana desse Código (da Associação Americana de Psiquiatria, mais especificamente), o DSM-5 (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais)[10], o transtorno está descrito no código 309.81 como “o desenvolvimento de sintomas característicos após a exposição a um ou mais eventos traumáticos”.

As pessoas que convivem com esse transtorno têm todas as esferas da sua vida afetadas pelos seus sintomas, que vão desde sonhos e pesadelos revivendo a situação, a flashbacks vívidos, pânico, embotamento emocional, retraimento social, entre outros. Os tratamentos mais comuns são de acompanhamento psicoterapêutico (para alguns casos parece ser mais indicado a Terapia Cognitivo Comportamental) e psiquiátrico, que conseguem promover uma melhora na qualidade de vida dessas pessoas, mas de forma lenta e paliativa, na maioria dos casos.

Enquanto estas terapêuticas apresentam uma média de 20% de melhora em casos de TEPT, testes clínicos realizados com MDMA apresentam um resultado radicalmente superior, com uma média de melhora de 60%[11]. Esses resultados têm sido encontrados em pesquisas de grupos como a MAPS (Multidisciplinary Association for Psychedelic Studies – “Associação Multidisciplinar para Estudos de Psicodélicos”)[12], e da Universidade de Johns Hopkins[13], que vêm contribuindo para elaboração de protocolos e práticas clínicas que parecem iniciar um novo momento da história da Saúde Mental, através da Psicoterapia Assistida por Psicodélicos também conhecida como Terapia Psicodélica (com substâncias como a psilocibina, MDMA, LSD, ayahuasca, etc).

Nos EUA, a população mais atingida por esse tipo de transtorno são os veteranos de guerra[14]: pessoas que vivenciaram a morte de perto e agora têm que retornar para uma rotina comum. Esses veteranos já vêm se beneficiando enormemente dos atuais tratamentos associados a cannabis e MDMA[15]. Aqui no Brasil não vivemos uma guerra declarada há muito tempo, porém, sabemos que em muitos territórios, a presença de organizações criminosas, milícias e Estado (na figura dos agentes de repressão) gera tanto ou mais mortes que muitas guerras[16]. Nunca é demais ressaltar que a maioria das vítimas são pessoas pretas e pobres, e os conflitos se dão normalmente em favelas e comunidades marginalizadas (além dos próprios policiais). Recentemente a guerra às drogas, matou a menina Agatha no Rio, e tantas outras crianças já tiveram o mesmo fim[17].

Estamos saindo há poucos anos de um grande abismo de tempo, onde a ciência foi afetada pelo proibicionismo e a autorização de pesquisas com esse tipo de substância era muito dificultada. Hoje, aos poucos, as coisas vem mudando e crescendo: estamos reafirmando vários dos resultados já encontrados nas décadas de 50 e 60 (era “pré-proibicionismo”), ampliando outros campos de pesquisa e aumentando o rigor científico das metodologias e coleta de resultados. Aqui no Brasil, o primeiro estudo clínico com MDMA teve início somente em 2018, através da iniciativa do Instituto Plantando Consciência[18][19]. Celebramos os avanços, mas de forma ainda insuficiente para demanda que se apresenta, e a atual pandemia do COVID-19 nos convoca a repensarmos a priorização e tempo das coisas.

O número de afetados direta ou indiretamente pelo coronavírus ainda está em crescente no Brasil e no mundo. Alguns países já deflagraram colapso sanitário[20]; covas coletivas[21] e corpos recolhidos nas casa e nas ruas[22] já são uma realidade. Todos os que estamos vivos hoje e que sobreviverem à pandemia, estarão passando por um processo de luto: individualmente, por seus familiares e projetos pessoais; coletivamente, pelas milhares de vidas perdidas e relações sociais alteradas; e também do atual projeto civilizatório[23]. Precisamos imediatamente repensar os projetos de financiamento e estrutura do Sistema Único de Saúde (SUS) e seus profissionais[24], e planejar ações para dar suporte aos diferentes tipos de vítimas que a pandemia deixará.

Promissora como vêm se revelando, as diferentes formas de Terapia Psicodélica parecem ser uma ferramenta muito apropriada e preparada para essa demanda que surge. Os terapeutas que trabalham nessa perspectiva, estão acostumados a lidar com fortes experiência afetivas, de catarse e ab-reação (liberação emocional através do corpo) e a ajudar o paciente a atravessar esses sentimentos, com respeito e acolhimento. Nenhuma fase da preparação e da sessão psicodélica deve ser negligenciada, e uma delas vêm após as sessões: a integração[25], isto é, o trabalho de trazer para a consciência e cotidiano ordinários da pessoa os materiais, insights e aprendizados surgidos durante a sessão. Na psicologia analítica junguiana, o conceito de integração passa pela ideia de uma quebra de dicotomias extremadas entre consciente e inconsciente.

Se estamos vivendo esse momento como se em um estado alterado de consciência (como disse o psicanalista e professor da USP Christian Dunker[26]), a integração (ou o “pós crise”, se quisermos nos aproximar do campo psicanalítico) também deverá acontecer a nível individual e global. Após a pandemia, passaremos por uma fase de readaptação ao mundo “ordinário”, integrando mortos e perdas econômicas, para dar seguimento à vida, com os aprendizados possíveis e sem negligenciar ou ignorar todo sofrimento vivido.

Nos EUA já surgem algumas iniciativas[27] propondo a aceleração dos processos de legalização ou regularização dessas substâncias para uso clínico, ao menos a nível provisório, com fim de dar suporte e promover saúde mental às vítimas da pandemia. Aqui no Brasil, ainda estamos alguns passos atrás, mas o caminho é o mesmo. Precisamos antes de tudo compreender que o debate dos psicodélicos não é somente para os “doidões” da Nova Era, a esquerda espiritualista ou os burgueses transcendentalistas. Dentro do campo científico e clínico, esse deve ser um debate, antes de tudo, sanitarista e social.

Se olharmos para a proposição da Associação Psicodélica do Brasil[28] e a equipe que compõe o TRIP (Terapeutas em Rede pela Integração Psicodélica, da qual sou membro)[29], reconheceremos com facilidade que não há uma lacuna na capacidade técnica, mas sim uma falta de ética e sabedoria, que persiste nas decisões de governantes e legisladores. Essa é a chave que precisamos girar para avançar tanto no campo da terapia psicodélica, quanto nas medidas para contenção e mitigação dos efeitos da pandemia no Brasil.

POST SCRIPTUM: Este texto foi finalizado no mesmo dia em que, 77 anos atrás, na data de 19/04/1943, Albert Hoffman, descobre os efeitos psicoativos do LSD, substância que havia inventado 5 anos antes, ao experimentar 250ug dela em seu laboratório. Esse dia ficou conhecido como Dia da Bicicleta, por conta do relato feito por ele mesmo, descrevendo sua viagem psicodélica em cima de uma bicicleta na volta para casal[30]. Feliz Dia da Bicicleta!

Esse texto foi publicado originalmente em 21 de abril de 2020 e pode ser encontrado aqui.

[1] “Emergency Preparedness and Responde”, CDC: https://emergency.cdc.gov/
[2] “Bill Gates warned of a deadly pandemic for years”, CBS News, 19/03/2020: https://www.cbsnews.com/news/coronavirus-bill-gates-epidemic-warning-readiness/
[3] ”Um apocalipse suave: os escritores e artistas que adivinharam a pandemia”, El País, 07/04/2020: https://brasil.elpais.com/babelia/2020-04-07/um-apocalipse-suave-os-escritores-e-artistas-que-adivinharam-a-pandemia.html?ssm=FB_CC&fbclid=IwAR1vnYxGxHoT7YhaoOHix4ahtgW70HubujFa-Cfdw-gBCbPpWQECdQxd0qg
[4] “Sobrevivencialismo”, Wikipédia: https://pt.wikipedia.org/wiki/Sobrevivencialismo
[5] “Psicologia Presente em Brumadinho”, CFP: https://site.cfp.org.br/psicologia-presente-em-brumadinho/
[6] “Refugiados de Belo Monte”, Psicanalistas pela Democracia, 11/09/2016: https://psicanalisedemocracia.com.br/2016/09/refugiados-de-belo-monte-por-ilana-katz-eliane-brum-e-christian-dunker/
[7] “Coronavírus / Informações do CFP”, CFP: https://site.cfp.org.br/coronavirus/1-inicio/
[8] “Covid-19 / Informações para pesquisadores”, Fiocruz: https://portal.fiocruz.br/coronavirus-2019-ncov-informacoes-para-pesquisadores
[9] CID-10: http://www.cid-10.org/
[10] “Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, Fifth Edition”, Psychiatry Online: https://dsm.psychiatryonline.org/doi/book/10.1176/appi.books.9780890425596
[11] “How MDMA is being used to treat PTSD”, The Economist, YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=8K5sJuTbQvY
[12] “MDMA-Assisted Psychotherapy”, MAPS: https://maps.org/research/mdma
[13] Johns Hopkins Center for Psychedelic & Consciousness Research: https://hopkinspsychedelic.org/
[14] “National Center for PTSD” / US Department of Veterans Affairs: https://www.ptsd.va.gov/index.asp/
[15] “Marijuana Use and PTSD among Veterans” / US Department of Veterans Affairs: https://www.ptsd.va.gov/professional/treat/cooccurring/marijuana_ptsd_vets.asp
[16] “A violência no Brasil mata mais que a Guerra na Síria”, El País, 11/12/2017: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/12/11/politica/1513002815_459310.html
[17] “Como a guerra as contra as drogas mata as crianças”, Época, 23/09/2019: https://epoca.globo.com/coluna-como-guerra-contra-as-drogas-mata-as-criancas-23968568
[18] Instituto Plantando Consciência: http://plantandoconsciencia.org/pb
[19] Instituto Plantando Consciência: https://www.medicinapsicodelica.org.br/
[20] “Novo coronavírus leva Equados a colapso sanitário”, Isto É Dinheiro, 13/04/2020: https://www.istoedinheiro.com.br/novo-coronavirus-leva-equador-a-colapso-sanitario
[21] “Prefeito de NY diz que covas coletivas não são só para vítimas da covid-19”, Uol, 10/04/2020: https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/04/10/prefeito-de-ny-diz-que-covas-coletivas-nao-sao-so-para-vitimas-da-covid-19.htm
[22] “Mortos em casa e cadáveres nas ruas: colapso funerário causado pelo coronavírus no Equador”, Terra, 01/04/2020: https://www.terra.com.br/noticias/coronavirus/mortos-em-casa-e-cadaveres-nas-ruas-o-colapso-funerario-causado-pelo-coronavirus-no-equador,cead5c8fc0485242d989076f2e24bd51yhrlggdy.html
[23] “IMF economists put ‘neoliberalism’ under the spotlight”, Financial Times: https://www.ft.com/content/4b98c052-238a-11e6-9d4d-c11776a5124d
[24] Mais do que palmas: https://www.maisdoquepalmas.com.br/
[25] “Integration: The Upside of Coming Down – Debriefing, Disrupting & Dark Journeys”, Chacruna Institute for Psychedelic Plant Medicina, 06/04/2020: https://chacruna.net/integration-the-upside-of-coming-down-part-two-debriefing-disrupting-dark-journeys/
[26] “Coronavírus: alguns sentem tanto medo que precisam negar o que está acontecendo, diz psicanalista”, BBC News Brasil, 04/04/2020: https://www.bbc.com/portuguese/geral-52160230?fbclid=IwAR1dIwJt5l7MfWV5qQazLo5A2CMMAsmzmFXWxQB5Joc9IOu9aIVyUykd-rs
[27] “Can psychedelic therapy reduce the mental health impacts of the coronavirus pandemic?”, The Sacramento Bee, 02/04/2020: https://www.sacbee.com/opinion/california-forum/article241689776.html
[28] Associação Psicodélica do Brasil: https://associacaopsicodelica.org/
[29] TRIP, Associação Psicodélica do Brasil: https://associacaopsicodelica.org/trip/
[30] “A bicycle trip”, Vimeo, 2007: https://vimeo.com/7198391


A imagem, por Alex Grey, chama-se “Caring”, e foi retirada daqui.
 
Iago Lôbo é psicólogo clínico e social, graduado pela UFBa e pós graduado em Psicologia Analítica pelo Instituto Junguiano da Bahia (IJBA); está em formação no Grof Transpersonal Training (GTT) e é membro do Terapeutas em Rede pela Integração Psicodélica, da Associação Psicodélica do Brasil (TRIP/APB).
Contato: ialobosr@gmail.com
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