Em foco: as crianças

Há pouco mais de um ano, escrevi um texto aqui para o portal intitulado “Educação Infantil: breve histórico e reflexões”. A ideia inicial desse texto era tratar da questão da autonomia na Educação Infantil, porém acabei sendo levada para outro caminho. Na época, lembro de ter ficado satisfeita com o que tinha produzido, mas com uma sensação que poderia ter aprofundado mais algumas questões. Hoje, relendo o que escrevi, a sensação de que coisas importantes ficaram de fora tomou conta de mim. Depois de um tempo pensando nisso comecei a me indagar: o que seriam essas “coisas importantes”? Alguma questão sobre Educação Infantil é mais importante que outras? Acho que não. Cá estou, com a missão de escrever um novo texto para o portal, e me vejo com a mesma dificuldade de antes: sobre o que escrever? Tudo sobre Educação Infantil me parece tão importante, interessante, necessário que nem sei por onde começar.

Olhando para a folha em branco, comecei a pensar nas crianças e em como elas são compreendidas pelos adultos que convivem com elas diariamente nas instituições de Educação Infantil: a criança é uma folha em branco que precisa ser preenchida? É um adulto em miniatura? É um “vir a ser”, um potencial não realizado, um adulto em espera? O que é ser criança? Você que está lendo esse texto: qual a sua concepção de criança? É por esse caminho que vamos trilhar esse texto.

Durante um longo período, as crianças foram compreendidas como seres humanos em miniatura, sendo valido estudá-las somente por sua “incompletude”. Esse entendimento da criança como um “vir a ser” é comum entre os adultos, que olham para as crianças e pensam no que se tornarão e não em quem elas já são de fato. Ainda nos dias atuais, as demandas infantis são causa de preocupação, como problemas sociais a serem resolvidos. Além disso, a sociedade limitou as crianças ao espaço privado: cuidados da família e instituições sociais. Dessa forma, devido a sua posição inferior nas sociedades, as crianças foram, durante muito tempo, não apenas ignoradas, como de alguma forma marginalizadas nos estudos sociológicos. Segundo Sarmento (2008):

As crianças não sendo consideradas como seres sociais plenos, são percepcionadas como estando em vias de o ser, por efeito da ação adulta sobre novas gerações, se as crianças são o ‘ainda não’, o ‘em vias de ser’, não adquirem um estatuto ontológico social pleno, no sentido em que são verdadeiros entes sociais, completamente reconhecíveis em todas as suas características, interativos, racionais, dotados de vontade e com capacidade de opção entre valores distintos, nem se constituem, como um objeto epistemologicamente válido, na medida em que são sempre a expressão de uma transição, incompletude e dependência. (p.20).

Em meados e fins do século XX, novas formas de conceber as crianças surgiram, fazendo-as emergir no contexto social como cidadãs. Diante disso, as legislações passaram a afirmar uma nova concepção de criança, que deixa de ser, simplesmente, filha de cidadão, para ser assumida como sujeito de direito (TIRIBA, 2001). A sociologia da infância, a partir desse novo contexto, buscou colocar as crianças no centro da cena, entendendo que suas culturas e relações sociais devem ser estudadas em si mesmas, no presente, e a partir do que elas dizem e não apenas do que os adultos dizem sobre elas.

Para Ferreira (2002), uma das principais preocupações da sociologia da infância é evidenciar que o modo como nós, adultos, vemos as crianças interfere na forma como nos relacionamos com elas. A autora defende ainda a ideia de que as crianças são atores sociais dotados de pensamento crítico e reflexivo. Reconhecer a criança enquanto ator social significa, também, ter a consciência de que há desigualdade entre grupos etários, classe social, gênero, raça, ou seja, não é a mesma coisa ser menino ou menina, ser pertencente à classe média ou morador de favela, ser branco ou negro.

Dessa forma, é possível compreender que a criança é um indivíduo social inserido em sua classe: “as crianças não constituem nenhuma comunidade isolada, mas antes fazem parte do povo e da classe a que pertencem.” (BENJAMIN, 2002, p.94). As crianças participam coletivamente na sociedade e são dela sujeitos ativos e não meramente passivos, porque interagem com as pessoas, com as instituições, reagem frente aos adultos e desenvolvem estratégias de luta para participar no mundo social. A criança deve ser entendida por si própria, como um ser social e histórico, produtor de cultura e participante ativo das decisões no âmbito das instituições educacionais nas quais estão inseridas. Pensando assim, as crianças, nas instituições, não estão sendo preparadas para viver em sociedade porque elas já vivem em sociedade.

Partindo do pressuposto de que as crianças são constituídas por experiências sociais e culturais distintas, que produz cultura e é nela produzida, ela brinca, aprende, sente, cria e se modifica, sendo constituídas a partir de sua classe social, etnia e gênero (KRAMER e MOTTA, 2010). Sendo assim, como pensar a prática pedagógica nas instituições de Educação Infantil? Como acolher a criança nessa sua complexidade? Mas esse é um tema para um próximo texto.

Este texto foi publicado originalmente em 20 de agosto de 2019 e pode ser acessado aqui

Referências Bibliográficas

BENJAMIN, W. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. São Paulo: Duas Cidades, Ed. 34, 2002.

FERREIRA, M. Criança tem voz própria (pelo menos para a Sociologia da Infância). A página da educação. n.117. Ano 11. Nov./2002. Disponível em: , acesso em 27 de janeiro de 2015.

KRAMER, S.; MOTTA, F.M.N. Criança. In: OLIVEIRA, D.A.; DUARTE, A.M.C.; VIEIRA, L.M.F. DICIONÁRIO: trabalho, profissão e condição docente. Belo Horizonte: UFMG/Faculdade de Educação, 2010. CDROM.

SARMENTO, M. (org.); GOUVEA, M. C. S. de. (org.). Estudos da infância: educação e práticas sociais. Petrópolis: Vozes, 2008.

 
Aline Ricci é pedagoga, professora de educação infantil da rede municipal, especialista em educação infantil e mestre em educação.
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