Por uma política de preços de derivados popular e anti-privatista

A paralisação de caminhoneiros, de 21 de maio a 31 de maio, marcou parte do cotidiano em muitas partes do Brasil, com filas extensas de caminhões em várias rodovias, bloqueios em alguns pontos, desabastecimento parcial de muitos itens, inclusive alimentos (o que dificultou muito a chegada de ingrediantes pra preparação da merenda nas escolas municipais do Rio de Janeiro e acarretou a suspensão das aulas nesses estabelecimentos, por exemplo). O debate sobre a caracterização desse movimento é importante. Mas seja uma greve, seja um locaute (uma paralisação orquestrada por patrões), seja um pouco de cada, em maior ou menor grau pra cada lado, colocou como uma pauta de destaque, de modo bem direto, a atual política (notemos bem: política) de preços de combustíveis, que a hierarquia da Petrobras apresenta como técnica (notemos bem que a intenção é fazer parecer que não é política), e, de modo indireto (mas um indireto bastante direto), a relação entre essa política de preços e a privatização da Petrobras (mais precisamente, o aprofundamento aceleradíssimo dessa privatização, pois ela não começou agora). A greve parcial dos petroleiros, de 30 de maio a parte do dia 1º de junho (o momento de saída da greve não foi o mesmo em todos os locais), teve um papel de destaque na politização (no bom sentido da palavra) da pauta dos preços dos combustíveis, ao relacionar didaticamente a política de preços dos combustíveis (e não apenas do diesel e da gasolina, mas também do gás de cozinha, por exemplo) com a privatização da Petrobras, especialmente das refinarias, e até com a transformação da Petrobras de uma empresa integrada de energia pruma exportadora de óleo cru. Ambas as paralisações foram também, tendo sido ou não a intenção dos seus autores (ou pelo menos de parte deles), uma aula prática sobre como a logística e o petróleo (e, de modo mais amplo, a energia) são especialmente estratégicas. Dito de outra forma, que a vida das pessoas, principalmente do povão, depende muito das políticas em torno da logística e da energia.

Em outubro de 2016, como pode ser lido numa notícia publicada no blogue Fatos e Dados (notemos que se trata de um nome tecnocrático) da Petrobras a hierarquia da Petrobras adotou uma nova política de preços pros combustíveis, atrelando-os ao mercado internacional, levando em conta, entre outros fatores, a cotação internacional do petróleo, que, em função da força geopolítica dos Estados Unidos, ainda é em dólar. Essa mudança ocorreu depois das manobras que tiraram a Dilma da presidência do Brasil e que aceleraram muito a já então muito acelerada privatização mais a fundo da Petrobras. Não foi uma novidade completa, na medida em que, já em 2014, com a Graça Foster como presidente da Petrobras, a hierarquia da empresa já declarava que buscava uma convergência dos preços dos combustíveis no Brasil com a cotação internacional da matéria-prima. Isso pode ser lido aqui e aqui. Mas, mesmo sem ser uma completa novidade, a mudança realizada em 2016 e aprofundada em 2017, representou uma inflexão bastante significativa. Antes, a lógica geral da política de preços dos combustíveis da Petrobras, mesmo com os preparativos de transição, era de um repasse muito mais espaçado da cotação do petróleo no chamado mercado internacional (especialmente, a bolsa de Londres, nesse caso). Esse espaçamento tinha como um dos seus principais objetivos ser um instrumento de tentativa de controle pelo menos parcial da inflação.

O aprofundamento da nova política de preços dos combustíveis resultou, pouco tempo antes da paralisação de caminhoneiros, numa série de aumentos em poucos dias, inclusive com mais de um aumento no mesmo dia. O diesel sendo o principal combustível pro transporte de mercadorias no Brasil, que é muito rodoviário, há uma tendência de encarecimento dos produtos em geral, a começar pelos alimentos, o que é grave. A “saída” que o governo do conspirador Temer praticou pra “resolver” a paralisação de caminhoneiros, de cortar nos impostos que incidem sobre os combustíveis (Cide, PIS/PASEP, Cofins e ICMS), é ruim por pelo menos três motivos: 1) retira (mais) recursos financeiros que, pelo menos na teoria, vão pra saúde, pra educação e pra previdência, fundamentais pro conjunto do povo trabalhador, ao mesmo tempo em que vai tomar esses mesmos recursos em outros impostos; 2) não mexe no cerne do problema, que é a nova política de preços dos combustíveis praticada pela Petrobras; e 3) ao agir assim, busca reforçar o discurso neoliberal de que o problema pro povo são, em si, os impostos, fazendo o pato da Fiesp dar gargalhadas. Antes mesmo, no dia 23 de maio, o então presidente da Petrobras, Pedro Parente (pediu demissão no dia 1º de junho), havia declarado que a empresa diminuiria em 10% o preço do diesel nas refinarias durante 15 dias e ressaltou que essa medida não significava uma intervenção (termo utilizado pelo discurso tecnocrata) do governo na política de preços da empresa, que, ele também ressaltou, deveria ser mantida. Ele disse ainda que havia tomado essa decisão a partir de informações sobre o risco concreto de “paralisação geral dos transportes, com graves impactos na economia [e porque] grandes empresas [haviam entrado] em contato com a Petrobras relatando que já estavam sob o risco de até mesmo ficarem sem combustível para as operações”, como está aqui. Uma parte da fala dele chama especialmente a atenção: “Não sou dogmático. E, se fosse para agir indiferente ao que está acontecendo, então se poderia colocar um robô para dirigir a companhia. E não é esse o caso”. Com essa fala, ele tenta disfarçar que a utopia tecnocrática (na verdade, uma distopia) é justamente a de que a Petrobras (e o mundo) seja gerida por um softiuere com inteligência artificial capaz de decidir com parâmetros técnicos pra tomar decisões políticas tecnicamente e levando em consideração, também tecnicamente, aspectos emocionais conscientes e inconscientes das pessoas envolvidas, em maior ou em menor grau. Mostra (ainda que sem querer mostrar, ainda que tentando esconder) que os mais inteligentes dos tecnocratas sabem que, na prática, não existe técnica neutra, que o discurso da neutralidade da técnica é pra tecnocrata ver, que, na prática, o que existe é tecno-política, que as decisões ditas técnicas são eivadas de política (no sentido marco, no sentido de decisão sobre o que fazer, como fazer e por que fazer). No discurso dos tecnocratas neoliberais, o chamado mercado é uma divindidade, sinônimo de técnica quando se trata de economia, mas é também humano, tem humores. Sua sacrossanta mão “invisível” é quase um softiuere com inteligência emocional artificial. Ao dizer que não é dogmático, ele buscou humanizar o discurso tecnocrático, pra que seja mais eficiente. Pra que o próprio discurso seja parte do softiuere. Pra que o softiuere seja disfarçado de pessoa. Pra que, ao olharem o robô, pensem que é uma pessoa. Pra que as pessoas ajam como se fossem robôs “animadas” por um softiuere de inteligência emocional artificial. E pra que isso seja tão naturalizado que todos pensem que é o único e evidente caminho. É um tecnocrata malandro.

O Pedro Parente enfatizou desde o início que estava fora de questão tanto uma mudança no coração da política de preços (o máximo aceitável pra ele seria um ajuste fino, como os reajustes passarem a ser mensais, em vez de muitas vezes diários) quanto a Petrobras bancar, pra além dos 15 dias iniciais, qualquer redução do preço do diesel nas refinarias e terminais. No dia 30 de maio, o governo publicou a medida provisória 838 e o decreto 9392, estabelecendo o Programa Temporário de Subvenção ao Preço do Diesel. Além da Petrobras, que publicou aqui sua participação nesse programa, a subvenção é válida pras refinarias privadas no país e pras importadoras de derivados. Na prática, o povo vai pagar pela manutenção da taxa de lucro desses agentes econômicos. No caso das importadoras, inclusive, é importante destacar que um dos principais motivos pelos quais elas cresceram é o aprofundamento aceleradíssimo da privatização da Petrobras, notadamente, nesse caso, com a hierarquia da Petrobras aumentando o percentual de ociosidade das refinarias da empresa e, em paralelo, praticando a política de preços de alinhamento ao mercado internacional. A ex-diretora-geral da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), Magda Chambriard, já havia alertado, em 2015, como está aqui, que, se o país não aumentasse a sua capacidade de refino, espcialmente construindo novas refinarias, a importação de derivados iria aumentar. Por mais que possamos considerar esse alerta dela dentro de uma política mais geral de apoio à privatização da Petrobras, tendo em vista o histórico da ANP, serve pra mostrar que o problema representado por não utilizar a capacidade completa das refinarias da Petrobras já estava colocado então. Como está analisado num artigo escrito pelo pesquisador do Grupo de Estudos Estratégicos e Propostas da Federação Única dos Petroleiros (GEEP-FUP) William Nozaki publicado aqui, a Petrobras, nos últimos anos, “capitaneou […] a política de substituição “por” importações, onde se abre mão de produzir nacionalmente para se intensificar a dependência das importações”. Considerando que, como a própria Petrobras diz, o Brasil é o 6º maior consumidor de derivados do mundo, não é difícil perceber que há muitos interesses envolvidos nisso.

A Petrobras preparou um material pra explicar a composição dos preços da gasolina e do diesel. Está em https://duvidasgasolina.hotsitespetrobras.com.br/ . Tem aspectos interessantes e, por um lado, pode até ser, em alguma medida, utilizado pra defender a Petrobras dos que dizem que os combustíveis são caros no Brasil porque a Petrobras é estatal e que, pros combustíveis serem baratos quando chegam pros consumidores finais, tem que privatizar a Petrobras. Porém, na minha avaliação, o principal objetivo da hierarquia da empresa com esse material é, nas entrelinhas (e nas entre-imagens), defender a política de preços que facilita a privatização mais a fundo da Petrobras de conjunto e das suas refinarias, de modo mais direto. O truque consiste em colocar o foco do problema nos impostos e em naturalizar o atrelamento dos preços no Brasil à dolarização do mercado internacional de petróleo e derivados.

O novo presidente da Petrobras, Ivan Monteiro, que era o diretor financeiro da empresa, cargo que, por enquanto, vai acumular com a presidência, assim como o Pedro Parente, é um fiel escudeiro da nova política de preços. O mais provável é que ele não mude o coração dessa política, mesmo que amplie os ajustes finos.

Essa nova política de preços dos combustíveis está diretamente ligada ao aprofundamento aceleradíssimo da privatização da Petrobras, que é parte do aprofundamento aceleradíssimo da (re)colonização do Brasil. Além de ser voltada pra garantir a maximização dos lucros dos acionistas privados, facilita a privatização da Petrobras como um todo e, especialmente, das suas refinarias. Afinal, essa política prioriza uma grande margem de lucro no refino, em detrimento da missão de abastecer o país em petróleo e derivados ao menor custo social possível, uma das razões pelas quais a Petrobrás foi criada (a retirada do acento do brás é parte do longo processo de privatização, que está numa fase muito acelerada desde 2014 e, mais ainda, desde o segundo semestre de 2016). Qualquer um que critique essa nova política de preços a partir da ótica social é rotulado pelos neoliberais como populista, num sentido pejorativo, como expressa o editorial do Globo de 1º de junho. Todos os que ousam dizer que o caminho neoliberal é ruim (ou mesmo simplesmente que não é o único), todos os que se atrevem a dizer que que não existe uma escolha natural, que a chamada técnica não é neutra e que todas as decisões, de forma consciente ou não, são políticas, em maior ou menor grau, todos os que criticam o neoliberalismo tecnocrático, todos os que se recusam a ver o chamado mercado como único (ou mesmo como principal) parâmetro pra economia e pra vida, de um modo mais amplo, são carimbados pelos neoliberais tecnocratas como populistas, e, nesse carimbo, o termo significa, no mínimo, irresponsáveis. Outro editorial do Globo, de 23 de maio, reforça essa linha discursiva, utilizando a palavra insanidade pra classificar, em última instância, quem não se submete à lógica supostamente natural e pura do mercado, independentemente da alternativa defendida. Nesse editorial, está escrito o seguinte: “Manter esta política é essencial para atrair interessados na BR distribuidora e investidores em refinarias, por exemplo. Não está em questão, portanto, apenas uma política de preços, mas o futuro da própria estatal”. É uma confissão dos verdadeiros interesses por trás dessa política de preços. E notemos bem: os setores financistas que O Globo representa não desistiram de privatizar mais a BR, que, após idas e vindas, que incluíram decisões judiciais desfavoráveis ao projeto de venda do seu controle acionário e uma greve de parte de seus empregados, apoiados por parte dos empregados da Petrobras controladora, teve 30% do seu capital aberto numa oferta inicial de ações (IPO na sigla em inglês, como é mais conhecida essa operação; pode-se ler um pouco sobre esse IPO aqui.

No dia 27 de abril, a Petrobras divulgou em seu blogue a notícia de que está colocando à venda 4 refinarias, junto com outros ativos. Como pode ser lido aqui , que a hierarquia da Petrobras contratou o estadunidense Citigroup Global Markets Assessoria Ltda. (Citi) como seu assessor financeiro exclusivo pra essa potencial transação e que o modelo consiste em agrupar ativos em dois pacotes, chamados de clusters, transformar cada um desses clusters numa empresa e vender 60% de cada uma dessas duas empresas. O cluster Nordeste é formado pelas refinarias Landulpho Alves (RLAM) e Abreu e Lima (RNEST), 770 km de oleodutos locais e pelos terminais de Candeias, Itabuna, Jequié, Madre de Deus e Suape. O cluster Sul é formado pelas refinarias Alberto Pasqualini (Refap) e Presidente Getúlio Vargas (Repar), 736 km de oleodutos locais e pelos terminais de Paranaguá, São Francisco do Sul, Guaramirim, Iatajaí, Biguaçu, Niterói e Tramandaí. Como está descrito aqui, é o projeto Poetas. O cluster Nordeste está sendo chamado de Manuel Bandeira e o cluster Sul está sendo chamado de Mario Quintana. Mais um sarcasmo dos tecnocratas privatistas.

O processo de venda desses dois clusters vai ser um ensaio geral pra colocação de mais ativos à venda nesse modelo de pacote. Esse modelo foi, em grande medida, demandado por interessados em adquirir pedaços da Petrobras. Por exemplo, em 2015, quando as termelétricas, que, desde então, nunca saíram da mira privatista da hierarquia da Petrobras, estavam mais presentes na mídia no contexto da eufemisticamente cahamada venda de ativos, o que se ouvia dizer e se lia era que os interessados não queriam “apenas” uma ou mais termelétricas, mas adquirí-las com garantias relativas ao fornecimento do gás natural em condições vantajosas. Várias formas estavam sendo pensadas na época, passando por um subsídio ao gás pras termelétricas e pelas termelétricas serem vendidas em pacotes que incluíssem terminais, malhas de dutos e refinarias. Esse tipo de conversa também acontecia desde então em relação às próprias refinarias, notadamente quando se falava sobre a possibilidade de vender a Refinaria Duque de Caxias (Reduc).

Como uma cereja envenenada desse bolo, basicamente, já foi dito aos trabalhadores desses ativos que eles têm duas opções: 1) entregam o crachá da Petrobras e deixam, portanto, de ser empregados da Petrobras, e entram na empresa do respectivo cluster (e depois só o Deus Mercado sabe); ou 2) se não quiser sair da Petrobras, fica em disponibilidade, o que significa que vai ter que procurar uma vaga em outro lugar da Petrobras. Mas, como são vários ativos já vendidos, sendo vendidos e a ser vendidos, e, ao mesmo tempo, como existe o Plafort (Plnajemanto da Força de Trabalho), que estabeleceu que, na imensa maioria dos setores, tem que ter menos gente do que tem hoje, o resultado dessa equação é simples: não vai ter vaga pra todo mundo. E, diferentemente do que a empresa fez em outras épocas, em que pessoas ficaram em disponibilidade por anos a fio (um ex-marítimo que trabalhou no meu antigo setor tinha ficado cerca de 8 anos em disponibilidade, dos quais cerca de 6 em casa), hoje duvido que a empresa vá fazer isso. Sendo muito otimista, vai, imagino, dar um prazo de 1 ano. Depois, se a pessoa não encontrar uma vaga (além da dificuldade que já mencionei, tem a perseguição mesmo), vai ser dito a ela que tecnicamente (ah, tem que ter o tecnicamente) não tem vaga e que, então, é rua. Isso é um problema não apenas pro trabalhadores petroleiros, mas também pro país, na medida em que vai aumentar o desemprego e, principalmente, tende a fazer com que mais trabalhadores petroleiros, com medo, se alinhem, na prática, ao que a hierarquia tecnocrática mandar, dificultando, assim, a luta por uma Petrobrás pública e democrática, a serviço do povo trabalhador brasileiro, ainda que, contraditoriamente, possa servir, previamente, como um impulso pra luta pelo menos pra estancar a privatização do sistema Petrobras.

A nova política (neoliberal) de preços abarca também, ainda que com algumas diferenças, o gás liquefeito de petróleo (GLP), mais conhecido como gás de cozinha, do famoso botijão de até 13 kg. A paridade internacional, nesse caso, é com o butano e o propano comercializados no mercado europeu, como está descrito aqui. A Petrobras preparou uma explicação sobre a composição do preço do gás de cozinha, na qual é possível ver que a parte das distribuidoras e dos revendedores no preço pro consumidor é alta (49%). É importante ressaltar que o mercado de GLP é bastante marcado por fortes oligopólios privados, notadamente a Ultragaz (do grupo Ultra, cujo presidente na época da ditadura de 1964, Henning Boilesen, ajudou a financiar o golpe e a ditadura, e participava até de sessões de tortura), que detém cerca de 24% do mercado brasileiro de GLP, considerando o fornecimento pra residências e comercial/industrial. A hierarquia da Petrobras está tentando vender a Liquigás, sua distribuidora de GLP, que ocupa a segunda posição geral no mercado nacional, com cerca de 22%. A venda pra Ultragaz, cujos primeiros passos chegaram a ser dados, foi vetada pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), especialmente porque resultaria numa concentração privada muito grande no mercado de GLP no país. Não me surpreenderia que seja feito algo como um IPO da Liquigás, como um primeiro passo mais direto, nesse cenário, pra sua privatização. Uma privatização da Liquigás tende a pressionar o preço do gás de cozinha ainda mais pra cima. Isso agravaria a já grave situação em que, em função da alta do preço do botijão de gás, muitas famílias, principalmente em partes do interior do país, estão sendo obrigadas a utilizar carvão ou lenha pra cozinhar, como está relatado nessa e nessa matérias, ambas do Brasil de Fato. Um exemplo prático de como uma política de preços dolarizada, junto com uma grande margem de lucro de distribuidores e revendedores, que são parte de um oligopólio privado e de uma privatização em curso, prejudicam a vida do povo no dia-a-dia.

Parte considerável dos que defendem a atual política de preços dos combustíveis argumenta que a política anterior, em que a Petrobras espaçava bastante os reajustes, gerou um prejuízo muito significativo na área de refino da empresa e que isso é ruim pra empresa. Em relação a isso, é importante dizer que uma das grandes forças da Petrobras ao longo dos seus quase 65 anos de existência foi ser uma empresa integrada de energia, na lógica de ir do poço ao posto (e até ao poste e ao plástico, com as termelétricas e a petroquímica, respectivamente), entre outros segmentos. Isso permitiu não apenas uma grande força logística, mas também uma situação em que um eventual prejuízo num dos segmentos não representava propriamente um problema, na medida em que era compensado por excedentes financeiros em outros segmentos de atuação. Não que não seja interessante que se consiga excedentes financeiros em todos os segmentos da empresa integrada. Mas a estratégia geral pra que a Petrobras seja o melhor instrumento possível prum desenvolvimento sócio-econômico, além de político, cultural e espiritual, num sentido amplo da palavra, do Brasil e, sobretudo, do povo trabalhador brasileiro, de preferência em solidariedade com outros povos, deve prevalecer e, nessa lógica, o lucro não é um objetivo macro de um empreendimento econômico como a Petrobras. Ela deve servir, sobretudo, pra garantir que o nosso povo controle a logística e a energia locais, a fim de não ser refém de outros povos (mas também sem buscar dominar nenhum povo). Ela deve servir, principalmente, pra que alcancemos uma verdadeira independência material, condição indispensável, ainda que insuficiente, pruma verdadeira independência política.

No contexto desse pensamento, é necessário que seja pensada uma política de preços capaz de conjugar um esforço pra que a Petrobras preferencialmente não tenha prejuízo na área de refino (e esteja mais forte num cenário de grande cobiça por seus ativos) e um esforço pra que o custo seja o menor possível pro povão. Isso não tem condições de ser feito dentro de uma lógica tecnocrática. É preciso ser amplamente debatido, numa lógica tecno-política. E a possibilidade disso acontecer passa por uma democratização da Petrobras, uma democratização que ande de mãos dadas com a luta contra a privatização da Petrobras. Passa pela luta por uma Petrobrás pública e democrática, do povo, pro povo e com o povo. Como contribuição pra essa luta, o grupo do qual faço parte na categoria petroleira, o Inimigos do Rei, preparou, entre outros materiais, uma eleição simulada virtual pra presidente da Petrobras, que está nesse linque. E, como contribuição pro debate em busca de uma política de preços na lógica que defendi, apresento um brevíssimo esboço, muito incompleto, reconheço, mas, ainda assim, uma contribuição. Avalio que, enquanto o diesel for o principal combustível pra grandes distâncias rodoviárias no nosso país, é importante que o seu preço não seja tão elevado, a fim de não encarecer os alimentos (entre muitos outros produtos que precisam de frete). Detalhando, acho que poderia ser pensada uma diferenciação de preço (mais barato) pra cooperativas de trabalhadores organizadas pelo menos na lógica da economia solidária. O gás de cozinha também precisa ser barato enquanto for a maior parte do povo não tiver gás encanado ou outro insumo, mais eficiente e menos poluente, pra cozinhar. A gasolina não deve ser tão barata, pois se destina principalmente ao transporte individual ou de poucas pessoas, e acho importante desestimular sua utilização como meio de transporte cotidiano. Em paralelo, devem ser estimulados tanto os ciclistas quanto os pedestres, por um lado, com boas estruturas nas cidades (e entre as cidades), e, por outro lado, transportes coletivos de massa com qualidade. O transporte ferroviário, tanto de cargas quanto de pessoas, deve ser reorganizado. O transporte aquaviário também. Um país continental como o nosso não deve se estruturar basicamente em torno de um modal, muito menos o rodoviário. Pode ser interessante criar um fundo pra isso (ou uma rubrica pra esse fim num fundo mais geral, que deve estar sob controle popular). A Petrobras poderia dar uma contribuição mais direta pra isso, a partir do que arrecadasse com o excedente de preço na venda de gasolina, por exemplo. Além disso, a empresa poderia ela própria também utilizar mais ferrovias. O excedente financeiro advindo da venda de derivados deveria ser canalizado também, de forma planejada, prum desenvolvimento da possibilidade concreta de utilização massiva de forças motrizes o menos poluentes possível. Enfim, como ressaltei, trata-se apenas de um início de reflexão, a ser aprofundada tanto individualmente como coletivamente. O cerne, repito, é que pensemos essa política fazendo com que seja do povo, pro povo e com o povo e com que seja parte da construção de uma Petrobrás também nessa lógica.

Esse texto foi publicado originalmente em 6 de junho de 2018 e pode ser lido aqui.

 
Antony Devalle é trabalhador da Petrobras e integrante do grupo autônomo de trabalhadores petroleiros Inimigos do Rei. É um dos fundadores e editores do Portal Autônomo de Ciências.

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