
No dia 5 de fevereiro de 2000, no campeonato espanhol de 1999-2000, uma jogada inesquecível foi criada no jogo entre o La Coruña e o Real Madrid. Uma jogada mágica, que os amantes do futebol guardam como relíquia no coração das suas memórias. Que revivem em câmera lenta, admirando, com a mesma incredulidade crente do Maradona vendo o Dener jogar (http://cienciaeautonomia.org/2025/05/dener-e-o-dibre-como-sonho-do-povao/). Uma jogada genial. Obra-prima tipo gol de placa. O artista? Djalminha. O cracaço Dener dizia “Às vezes eu acho um dibre bonito mais bonito do que um gol”. Essa jogada do Djalminha, um dibre especialmente especial, é uma das muitas provas de que o Dener estava certo. Após um cruzamento do La Coruña, um zagueiro madrilenho afastou de cabeça, a bola ficou com o Djalminha perto da meia-lua, ele se aproximou um pouco mais da entrada da área, observou os jogadores à sua volta e deu um lençol de lambreta (https://www.youtube.com/watch?v=H2rNkzM2Iks), com o qual, surpreendendo todo mundo, fez a bola passar por cima de vários adversários e chegar a um companheiro de time, cujo chute foi interceptado por um adversário. A jogada não resultou em gol, mas com ela o Djalminha marcou muito mais o futebol do que muitíssimos gols. O Djalminha fez um gol nesse jogo. Um golaço de falta na goleada de 5 a 2 do Deportivo La Coruña. E fez muitíssimas jogadas geniais. Mas o melhor lance dele nessa partida, seu momento mais (in)crível, que foi também o melhor do jogo e um dos melhores da história do futebol, foi o dibre-passe lençol de lambreta (https://www.facebook.com/reel/791784885457469?locale=pt_BR). Em qualquer resumo da história do futebol, é incontornável incluir essa jogada. É um passe de mágica. É um dibre de mágica. Mágica do dibre. Criatividade de um cria do futebol, de alguém que foi criado no melhor da cultura do futebol. O Nelson Rodrigues, gênio da crônica esportiva (e da literatura em geral), dizia que sem alma nem se chupa um Chicabom. Sem Djalminha menos ainda.
Efeitos especiais especiais
Nascido em Santos em 1970, quando seu pai, Djalma Dias, zagueiro da Seleção brasileira, jogava no clube do Pelé, o Djalminha cresceu no Rio de Janeiro, onde se formou nas categorias de base do Flamengo, por onde chegou ao profissional. Entre outras equipes, jogou no Guarani, onde foi a principal jóia do Brinco de Ouro da Princesa, no Palmeiras, onde encantou, sendo um dos melhores de um timaço, e no La Coruña, onde foi mago, bruxo antes do Bruxo, rei do futebol pé-de-moleque, do futebol feitiço, se colocando definitivamente no rol dos jogadores mais habilidosos, criativos e geniais da história do futebol. Na Seleção, mesmo tendo feito lindas apresentações, teve, lamentavelmente, poucas oportunidades. Mas, se fizermos uma seleção dos mais impressionantes jogadores do Brasil (e do mundo), o Djalminha terá lugar de destaque (https://www.youtube.com/watch?v=uGd3Hje_Q5M). Foi um ótimo cobrador de faltas e um exímio batedor de pênaltis. No Brasil, nunca perdeu um pênalti. E, em toda a sua carreira profissional, perdeu pouquíssimos. Popularizou a cavadinha (https://www.youtube.com/watch?v=_pjf6fjSTOM), pegando na bola por baixo, sutilmente, de forma a fingir que ia bater de modo convencional, só que fazendo-a percorrer uma parábola, como um apóstolo do milagre do futebol-arte. Era muito comum que a bola entrasse no meio do gol, com o goleiro tendo pulado prum lado poucos instantes antes. A cavadinha é um dibre em jogada de bola parada. O dibre é um recurso de linguagem, um efeito especial sem o qual é muitas vezes impossível expressar o que se quer dizer. Como na cena do filme O Fabuloso Destino de Amélie Poulain em que a personagem principal se derrete depois de, com vergonha, fingir que não é ela quando seu amado lhe pergunta se ela é a moça da foto que recebeu (https://m.youtube.com/watch?v=HpDyFf0we5U). O efeito especial especial é um recurso estilístico necessário e insubstituível. O poeta Mario Quintana escreveu, no poema O Grande Sortilégio, que “A magia das palavras num poeta deve ser tão sutil que a gente esqueça que ele está usando palavras.”. Ele também escreveu, no poema Poesia & Magia, que “A beleza de um verso não está no que diz, mas no poder encantatório das palavras que diz: um verso é uma fórmula mágica.”. Esses dois poemas, que são uma linda rima, uma encantadora tabelinha, são, de certa maneira, outro jeito de expressar o que o Dener disse: “Às vezes eu acho um dibre bonito mais bonito do que um gol”. É interessante lermos um texto pela primeira vez. Irmos descobrindo o enredo, por exemplo, aos poucos, com as surpresas sendo reveladas conforme avançamos na leitura. Isso vale sobretudo, de modo mais direto, pra livros como os da Agatha Christie, mas vale também de forma mais geral. Mesmo sabendo toda a história, mesmo não restando mais “nenhum” mistério, a leitura pode permanecer encantadora, devido à sua beleza. Eis o mistério da palavra. A beleza do jogo do Djalminha está na forma dele jogar. No como ele joga muito mais do que no que ele joga ou no que ele ganha. Seus dibres, suas jogadas mágicas, a felicidade de jogar de forma mágica e de encantar jogando assim, esses são seus principais troféus. O Dener e o Djalminha são craques em campo e no pensamento sobre futebol. Neles, as duas dimensões se entrelaçam. São, em si, um lindo e genial dibre nos que erguem um muro entre a inteligência intelectual e a inteligência corporal, que, em geral, nem consideram inteligência. Um dibre, como um verso, é uma fórmula mágica. Não importa que já conheçamos todas as jogadas geniais do Djalminha. Revê-las continua sendo encantador. São versos (às vezes, poemas inteiros) no clássico estilo pé-de-moleque.
A tecnocracia quer quebrar o dibre
Com a bola, o Djalminha encontrava caminhos secretos no campo como os poetas encontram com as palavras na folha em branco. A bola é a musa do poeta Djalminha. A bola é sua palavra. Passe com as costas, toque por cobertura, gol de trivela, passe de letra (alguns parecendo jogada de sinuca), escanteio colocando a bola onde quer, esconder a bola, toque de calcanhar, tocar prum lado fingindo que vai tocar pro outro, lançamentos tirados da cartola, dibre curto que quebra a espinha do marcador… A lista de jogadas de efeito do Djalminha são mil e uma maneiras de (se) encantar (com) o futebol. Num jogo do La Coruña contra o Barcelona na temporada 1997/1998 do campeonato espanhol, o Djalminha criou mais uma jogada de suas muitas jogadas inesquecíveis. Com a bola vindo pelo alto, fingiu que ia pegá-la e deixou-a passar (https://www.youtube.com/watch?v=x7XVpxgDT_M), enganando, com uma finta, com um dibre de corpo, o jogador adversário que estava disputando a bola com ele. Dibrou sem bola. Como o poeta que transforma o silêncio em palavra. A bola como brinquedo e instrumento de trabalho ao mesmo tempo. A bola é seu mundo. Metáfora do seu estilo de jogo. O Djalminha é um dos gênios do time que enfrenta a tecnocracia com a beleza. A tecnocracia quer enquadrá-lo. Ele finta a tecnocracia, com um desconcertante dibre de corpo. A tecnocracia quer roubar a bola dele. Ele finge que vai tocá-la prum lado e a toca pra outro. A tecnocracia vai tentar lhe dar um pontapé. Ele desvia com um dibre que deixa a tecnocracia perdida. A tecnocracia manda uma tropa de choque contra ele. Ele aplica um lençol de lambreta que confunde completamente os tecnocratas. Vários deles o aplaudiram com imenso entusiasmo, hipnotizados pela beleza do lance. O software da tecnocracia os alerta e param de aplaudir. Mesmo assim, uma parte começa a questionar a tecnocracia. Se a tecnocracia é tão boa, se ela está tão correta, se o mundo deve ser por ela governado, por que ela não consegue não ser dibrada pelo Djalminha? Por que ela não tem poesia, magia, beleza-encantamento? Por que não enche seus corações de felicidade, de sonhos de beleza? Por que não enche seus corações de alma?
A tecnocracia, mesmo quando finge ter alma, busca desalmar. O futebol-arte é parte da alma do futebol brasileiro, (que é) parte da alma do povo brasileiro. Tecnocratizar o futebol brasileiro é desalmá-lo. Esse processo passa por colocar uma alma postiça, “europeia”, no futebol brasileiro. Ou seja, colonizá-lo. Fazer com que deixe de ser brasileiro. Uma tradição do futebol brasileiro, assim como da cultura brasileira em geral, é o que o escritor modernista Oswald de Andrade chamou de antropofagia. Aproveita o que vem de fora, mas o transforma em brasileiro, não o copia. O Brasil, tradicionalmente, recriou o futebol, pra torná-lo brasileiro. De modo antropofágico, transformou o football em futebol. Sambando com a bola no pé. Uma tradição do futebol brasileiro é jogadores serem chamados oficialmente por diminutivos ou apelidos e epítetos. Pelé, Garrincha, Didi, Zizinho, Vavá, Canhoteiro, Viola, Capitão, Jairzinho, Alfinete, Zico, Cafuringa, Pepe, Marcelinho Carioca, Juninho Pernambucano, Juninho Paulista, Cafu, Bebeto, Adriano (o Imperador), Romário (o Baixinho), Jô, Palhinha, Índio, Ronaldo (o Fenômeno), Luisinho, Gilmar Fubá, Catê, Kaká, Tostão, Bujica, Robinho, Nelinho, Dodô, Leônidas (o Diamante Negro), Tupãzinho, Ronaldinho Gaúcho… Djalminha. A alma do futebol brasileiro é uma Djalminha. Nossa alminha, nossa Djalminha, que trata a bola com carinho, que tem profunda intimidade com ela, que namora a bola. Que, em diversos ritmos, faz canções de ninar pra bola, que dorme no pé numa matada do Romário. Que adormece no peito do povo, que a recebe de um lançamento com todo o carinho. É a alminha do povão. Jogar com fé eu vou que a fé não costuma faiá, recita o povão. E leva a bola pro baile, da valsa ao pancadão do funk, do samba ao frevo, do xote ao roque-Legião, sempre com rythm and poetry, numa história narrada pelos melhores locutores famosos e anônimos.
Nosso “destino” é criar
Embora a tradição seja fortíssima, também é muito forte o ataque a essa tradição. O complexo de pedrigree leva a que não acreditemos que é maravilhoso ser vira-lata. Nos faz crer que a tática é superior à genialidade, que a tática é a verdadeira genialidade, que a tática é só técnica aplicada, que não conjugamos genialidade e tática e que não somos capazes de elaborar táticas de mais alto nível. O complexo de pedigree nos faz crer que nosso destino é, na melhor das hipóteses, ter talentos que devem ser lapidados pela técnica (e pelos técnicos) estrangeiros, sermos fornecedores de matéria-prima pra importarmos serviço de valor agregado, mesmo que a matéria-prima seja de muito maior qualidade do que o serviço importado. O complexo de pedigree nos faz crer que o nosso destino é copiar. Nos faz esquecer que o nosso “destino” é criar.
O Djalminha disse, numa entrevista (https://www.youtube.com/watch?v=_JIked77YIY&t=2152s) no programa Entre Aspas, de interessante nome, que, ainda criança, amou o futebol por causa da magia de lances de beleza pé-de-moleque. Como torcedor, o que ele gostava (e continua gostando) é de ver canetas, escrevendo o melhor futebol. Esse encantamento de torcedor diante da beleza, da beleza da brincadeira, o Djalminha levou pro campo quando jogou bola, tanto nas categorias de base como no profissional. Ele continuava sendo um torcedor. Do futebol-arte. Do seu próprio futebol(-arte). “Eu fui torcedor. Eu ia lá, eu adorava ver uma caneta, um lençol. Uuuuhhh. A gente gritava quando o cara tomava. Isso que me fez gostar de futebol. Drible, toda hora. Agora não pode mais driblar. O ponta só toca pra trás. O meia não pensa, que ele tenta correr que nem um louco, box to box. Não é meu futebol. Não é meu futebol. E eles acham que tem que copiar de lá e botar isso na cabeça dos nossos jogadores. Tem que deixar lá na base aflorar o cognitivo. Vamos pensar, galera, vamos pensar. Faz o que vocês quiserem. […] Essa garotada, essa galera que vem, [precisa] buscar um pouco mais das origens do futebol brasileiro. Porque eu penso que pra vencer não é nada disso eu tão falando. Não é nada da tática. É voltar à nossa essência.”, explicou o craque.
O craque é um pensador
O Djalminha critica a ideologia dominante no futebol hoje. Avalia que a formação nas categorias de base deveria voltar a valorizar especialmente as características que fizeram do futebol brasileiro o melhor do mundo disparado, em vez de colocar no pedestal modelos importados. Nesse contexto, enfatiza que a valorização excessiva e colonizada da tática tem dificultado a formação de craques e prejudicado o futebol brasileiro. “Por que tem mais gente que corre? Porque faltam os que pensam. Porque, se tiver um monte que pensa, os que correm vão se atrasar. Eles vão se atrasar, porque eles não conseguem acompanhar o raciocínio. O raciocínio é muito mais rápido do que a velocidade corporal. […] Por que que não tem? Porque não forma. Não forma.”, ressaltou o gênio.
Futebol pé-de-moleque como um estilo do futebol-arte
O Messi já entregou sua camisa pro Djalminha (https://www.youtube.com/shorts/nKH2gKgwK8o), num gesto de homenagem de um gênio a outro, numa atitude de valorização do futebol-arte e da importância de memória pra que o futebol-arte possa ser sempre valorizado. O Djalminha, em que o Ronaldinho Gaúcho, tão importante pro início do Messi no profissional, se inspirou, tempos atrás, havia brincado com o Messi, “criticando-o” por só dibrar pra frente, só dar caneta pra frente, só dar lençol pra frente (https://www.youtube.com/shorts/NbwR1jCFZYE). Essa “crítica” do Djalminha, que é fã do Messi, pode ser lida como uma defesa do futebol pé-de-moleque. Porque não existe apenas um estilo de futebol-arte. Assim como numa crítica ao pensamento único, o Djalminha valoriza que não haja uma arte única, um futebol-arte único. Até porque, se a arte é sobretudo criação, não pode ser só repetição, mesmo que de obras-primas. Se inspirar é fundamental; apenas copiar, não. Na arte, mesmo quando se faz tudo igual, deve se fazer sempre diferente. Em francês, caneta é stylo. No futebol brasileiro, é estilo próprio. E o estilo é a alma da arte. A Djalminha é a alma do futebol(-arte) brasileiro.
Djalminha 10 x 0 Príncipe de Gale$
Esse ensinamento pode ser aproveitado em geral, não “apenas” no futebol. Na economia, quem domina o Brasil teima em copiar modelos importados, quase sempre da Zorópa e dos Istêitis. A energia é um eixo central da economia. E a Petrobras é um eixo central desse eixo central no nosso país. É importante ela estar aberta a boas idéias e experiências estrangeiras, mas deve se pautar pela construção de uma política econômica e energética brasileira e popular, que seja uma política-arte, como o nosso futebol-arte. CEOs tiraram o acento do siglema Petrobrás. Alegaram que a empresa tinha que ser um player global, que o inglês é a língua internacional do business e que em inglês não tem acento. Interessante que uma das maiores trannacionais do mundo, a suíça Nestlé, não retirou o acento, característico da língua francesa, pra se adaptar à língua inglesa padrão ouro do business internacional, e o acento não a impediu de ser uma das maiores transnacionais do mundo. Depois, CEOs tentaram mudar o nome da maior e mais estratégica empresa brasileira pra PetroBrax, alegando que o sufixo bras do siglema Petrobras poderia ser confundido com sutiã em inglês. Um x da questão é a colonização cultural prejudicando muitíssimo a (potencial) Petrobrás e todo o projeto de soberania energética do Brasil, que deveria ser também soberania popular. Com a colonização cultural, privatismo e desnacionalização andam de mãos dadas. O x, utilizado como símbolo de uma técnica ao mesmo tempo arrojada e neutra, como expressão da tecnocracia, é o CEO em forma de letra. O CEO é o Príncipe de Gales (http://cienciaeautonomia.org/2020/10/no-metro-de-santiago/) mais diretamente vestido de business, mais diretamente vestido com terno tecnocrata. O x é o Príncipe de Gales em forma de letra. Ficou Petrobras, disfarce de Petrobra$. Príncipe de Gale$. O x é a esfinge tecnocrata. Ou é decifrado ou devora o povão. Ou é decifrado ou devora a alma de uma possível economia popular brasileira. O antídoto? Djalminha. Nosso. Nossa. Ou a alma da Petrobrás será Djalminha ou o terreno vai continuar ultra-fértil pra tecnocracia desalmar a (potencial) Petrobrás.
Antony Devalle é trabalhador da Petrobrás e integrante do grupo autônomo de trabalhadores petroleiros Inimigos do Rei. É um dos fundadores e editores do Portal Autônomo de Ciências.