No metrô de Santiago

Duas estações seguidas da linha 4 do metrô de Santiago são uma síntese, ainda que incompleta, da história do Chile: Simón Bolívar e Príncipe de Gales. Numa estação, a homenagem a um dos principais Libertadores da América, que, mesmo com defeitos, sonhou e tentou construir a Pátria Grande Latino-americana, e que esteve entre os primeiros a enxergar que os Estados Unidos seriam uma desgraça pros povos latino-americanos (e pros povos do mundo). Na outra, o complexo de vira-latas à moda chilena, a memória-projeto colonial reverenciada. Bolívar lutou pela independência hispano-americana em relação à Coroa espanhola (embora tenha mantido aspectos da hispanidade como um valor), numa época em que o império espanhol, que, junto com Portugal, havia dominado o mundo do século XVI até o século XVIII, embora ainda forte, estava em decadência. O Eldorado latino-americano já tinha passado pra Inglaterra, do Príncipe de Gales. O ouro, a prata e todas as outras riquezas das nossas terras tinham sido drenadas pra Revolução Industrial, que tinha na Inglaterra seu ponto mais avançado. A Inglaterra do império onde o sol nunca se punha e onde o sangue nunca secava. A Inglaterra em relação à qual Bolívar também queria manter a América Latina (incluindo o Brasil) independente. A Inglaterra que, com o Príncipe de Gales regendo grandes capitalistas e (sobretudo) sendo regido por eles, buscava dominar cada vez mais os nossos territórios e os nossos povos, ao mesmo tempo em que cooperava com o imperialismo galopante dos Estados Unidos, com sua Doutrina Monroe (o continente americano pros Estados Unidos). Simón Bolívar e outros Libertadores da América, como o chileno Manuel Rodríguez, defendiam um desenvolvimento próprio latino-americano, enquanto o Príncipe de Gales (e sua versão Tio Sam) defendiam (e continuam defendendo) que os nossos territórios sejam colônias (com diversos disfarces). A sociedade chilena é, em grande medida, ainda hoje, expressa por essas duas estações de metrô.

Essa síntese, como disse, é incompleta. Falta uma expressão mais direta do povão chileno, desde os povos pré-colombianos, dentre os quais os mapuches, até os favelados e os mendigos (mestiços, na maioria). Faltam também, de forma entrelaçada com a anterior, a expressão de um projeto que tem como horizonte o socialismo, que tem como dois de seus emblemas o Salvador Allende e o Víctor Jara. Indiretamente, eles (e muitos outros, com destaque pra crianças) estão representados pela estação Quinta Normal do metrô de Santiago, onde fica uma entrada pro Museu da Memória e dos Direitos Humanos, sobre a ditadura pinochetista imposta com o golpe de 11 de setembro de 1973 contra o Allende e a luta contra essa que foi uma das expressões agudas da ditadura do capital. De qualquer forma, o antagonismo Allende-Pinochet é, de certa maneira, um desdobramento, ainda que não apenas, da oposição Bolívar-Príncipe de Gales. Uma versão atualizada dessa contradição, ainda que com elementos novos.

O calculista é inimigo do Homem que Calculava

Essas peças do quebra-cabeças chileno são fundamentais pra avaliarmos o que significou o golpe pinochetista, que também foi um movimento extremamente agressivo do usamericano Kissinger no tabuleiro do xadrez geopolítico, pro qual contribuíram os imperalismos europeus subordinados ao imperialismo estadunidense e a ditadura empresarial-militar que torturava o Brasil desde 31 de março/1º de abril de 1964 e que batia continência pros imperialismos mencionados. O bombardeio do palácio La Moneda, com o presidente Allende dentro, foi feito com aviões ingleses comprados pela Força Aérea chilena. O Estádio Nacional como prisão e centro de tortura logo nos primeiros dias da ditadura pinochetista era o símbolo do Estado Anti-Nacional e anti-povo com camuflagem “nacionalista”. A perseguição implacável contra as pessoas engajadas num projeto de esquerda e contra todos do povão que queriam ter apenas El derecho de vivir en paz foi parte da guerra contra um projeto popular de desenvolvimento do Chile, como parte de um projeto popular de desenvolvimento da Pátria Grande Latino-Americana. Na nova doutrina de segurança nacional, o povo chileno era o inimigo, contra o qual o conjunto das forças armadas estatais chilenas, incluindo os Carabineros (a Polícia Militar local), tinha que se voltar pra escoltar as transnacionais estrangeiras que roubavam o país, com seus cúmplices nazionais. A Colonia Dignidad comandada por um nazista fugitivo onde a indignidade reinava, inclusive com um centro de tortura da ditadura pinochetista, como síntese da perversidade do capital nesse Chile em que o Príncipe de Gales, mais uma vez, saboreava tranqüilamente o seu chá das 5 enquanto acariciava mais notas de libras esterlinas e dólares e brindava com moedas de ouro o mais-lucro obtido com a mais-repressão. O Príncipe de Gales com sua moeda de cobre chileno cujo preço manipula nas bolsas de anti-valores. O Príncipe de Gales, com suas múltiplas máscaras, é poliglota, mas só fala uma língua: a do vil metal da sua cara (ou) coroa. O Príncipe, que, ao se apresentar como Número 1, utiliza o cetro-cassetete do mito da neutralidade da técnica pra impor-“justificar” que as pessoas do povo sejam tratadas como números. O Número como Príncipe do Príncipe. Como o calculista inimigo do Homem que Calculava. O Príncipe. O Número. O Número-Príncipe.

A ditadura pinochetista foi um esquadrão da morte contra todos aqueles que dificultavam a implementação de um novo ciclo de super-acumulação de riqueza em poucas mãos no país e no mundo. Após não conseguirem isso por meio do voto na perspectiva de tempo que planejavam, os representantes do capital, que sabem bem que o que chamam de democracia é um cenário funcional ao capital ou uma miragem, insuflaram o lado Príncipe de Gales da sociedade chilena pra que o golpe fosse feito. A Batalha do Chile foi parte de uma guerra mundial do capital. O esquadrão da morte pinochetista estendeu um tapete de sangue pros Chicago Boys serem os Príncipes do Príncipe, impondo o (neo)liberalismo econômico num laboratório cujo patrono “invisível”, inspirador, poderia ser o nazista Mengele. O Mercado-Mefisto lava as suas mãos (in)visíveis com o sangue das suas cobaias. Tudo com afiado bisturi, jaleco asséptico e muita “neutralidade” técnica. O Pinochet e os Chicago Boys são duas faces da mesma moeda. O Pinochet era a mão-de-ferro da mão “invisível” dos Chicago Boys. O (neo)liberalismo foi a mão-de-ferro econômica da ditadura pinochetista. As duas mãos-de-ferro juntas contra as mãos calejadas do povo trabalhador chileno. Juntas, foram as mãos-de-ferro da Junta (Empresarial)-Militar que quebraram as mãos do Víctor Jara, cantador da alma popular da grandiosa e ao mesmo tempo simplesinha revolução chilena (pra muito além da experiência com Allende), pra quebrar a alma do sonho que o povo dedilhava pra que tudo que produzisse estivesse em suas mãos, pra que pra todos houvesse pão e pra ninguém patrão. O Príncipe contra o Povo.

O povo Galileu

O (neo)liberalismo, que transforma a economia em Princesa contra o Povo, se apresenta como sinônimo de economia, como se todos os outros caminhos econômicos (tanto os já trilhados quanto os ainda só caminhados em teoria e os que ainda podem ser criados) não fossem econômicos. Se apresenta como se fosse o único a compreender a suposta natureza da economia (como se só existisse – e naturalmente só pudesse existir – um caminho geral econômico; em última instância, o capitalismo, mesmo que visto como ponto de chegada de tipos anteriores, pré-capitalistas, de economia) e, assim, se apresenta também como se fosse o caminho natural em termos de política econômica. E o faz de modo tão naturalizante que faz parecer que não é uma política. De modo a parecer que a expressão política econômica não tem a palavra política. O (neo)liberalismo é apresentado assim porque interessa aos ricaços e aos tecnocratas que operam esse tipo de política econômica que ela seja vista pelo povo como a única certa. Just do it ou seja um looser, ameaça a propaganda. Do Príncipe do direito “divino” absolutista ao Príncipe do direito técnico totalitário, o fio condutor é uma “verdade” inventada e imposta com ilusão e força bruta, uma “verdade” que se vende como absoluta, total, neutra, natural. Pra que quem se oponha a essa “verdade” seja de antemão visto como alguém que perturba o que é correto. No passado, Galileu utilizou a ciência pra desmontar o mito do Príncipe do direito “divino”. Hoje, pra destronar o Príncipe, Galileu precisa desmontar também o mito da neutralidade da técnica, precisa libertar a ciência do calabouço onde a tecnocracia a trancafiou pra falar em seu nome. O mito da técnica neutra é anti-científico. Não é o Príncipe que tem que definir os rumos do povo; não é um software; não é a técnica. Nem mesmo a ciência. Mas o próprio povo. Com ciência, consciência… Mas o povo. O próprio povo.

A privatização pinochetista da Petrobras

A privatização da Petrobras que está violentamente acontecendo pelas mãos-de-ferro do (neo)liberalismo utiliza o mito da técnica neutra pra disfarçar que se trata de uma escolha, de uma política, a favor dos ricaços e dos office-boys (de Chicago ou daqui, inclusive os daqui que estiveram em Chicago) e das office-girls desses ricaços, que recebem (e roubam) fortunas pra serem gerentes dessa guerra suja contra o povo trabalhador brasileiro. O Príncipe de Gales contra o Abreu e Lima, que lutou junto com o Bolívar e que é homenageado como nome de uma refinaria da Petrobras, que está à venda na privatização pra enriquecer ainda mais o Príncipe de Gales em várias de suas versões, não apenas em termos de dinheiro, mas também em termos de poder geopolítico. A Petrobras foi criada em 1953, a partir da campanha O petróleo é nosso, pra pelo menos ser a principal ferramenta de uma independência econômica do Brasil, condição insuficiente mas indispensável pruma independência política do país, ou seja, pra que o Brasil não seja uma colônia. A sua privatização, que vem sendo feita pelos defensores da campanha O petróleo é Esso desde a criação da empresa (passar de Petrobrás pra Petrobras foi parte da privatização), está extremamente acelerada. Uma privatização que é também um esquartejamento (com a venda da empresa em fatias, cada vez mais fatias) e uma desnacionalização e significa a destruição do principal instrumento pruma independência do Brasil. Dito de outra forma, uma privatização que significa o aprofundamento da (re)colonização do Brasil e que dificulta muitíssimo a construção da Pátria Grande Latino-americana. Uma privatização que não começou agora, mas que encontra no pinochetismo made in Brazil dos Mercados Unidos que é o bolsonarismo uma tropa de choque que pisa cada vez mais fundo no acelerador privatista. O ministro da economia Paulo Guedes é o mais tirano de um governo de ditadores. Ele e o Roberto Castello Branco, que ele colocou na presidência da Petrobras, são Chicago Boys, sendo que o Paulo Guedes inclusive esteve no Chile pinochetista apoiando a ditadura de lá. A tortura psicológica tem sido muito utilizada pela hierarquia privatista da Petrobras contra trabalhadores concretamente engajados na luta contra a privatização, contra a tecnocracia e por uma Petrobrás em que o povo trabalhador mande. Também é muito utilizada contra os demais trabalhadores “incômodos”, ou seja aqueles que a hierarquia tem difculdade em gerenciar. O sofrimento psicológico decorrente dessa política é grande. Aumentam os casos de depressão e outras situações do tipo e até mesmo suicídios entre petroleiros.

Pra tentar suportar essa tortura psicológica, busco me manter firme no combate ao privatismo e ouço o Víctor Jara: Cuando voy al trabajo, pienso en ti… Pienso en ti, compañera de mis días y del porvenir… De las horas amargas y la dicha de poder vivir… Laborando el comienzo de una historia sin saber el fin… E me empenho pra que essa caminhada seja coletiva.

Antony Devalle é trabalhador da Petrobrás e integrante do grupo autônomo de trabalhadores petroleiros Inimigos do Rei. É um dos fundadores e editores do Portal Autônomo de Ciências.

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