Física quântica… salto quântico… cura quântica… coach quântico… afinal, o que é quântico?

The Quantum Postulate and the Recent Development of Atomic Theory (O postulado quântico e o recente desenvolvimento da teoria atômica), também chamado Como Lecture[1], é o artigo publicado pelo físico Niels Bohr, em 1927, tido como um dos principais na fundamentação da teoria quântica. Apesar dos quase 100 anos que datam o texto, a mecânica quântica ainda é uma área da física bastante movediça e de difícil compreensão (mesmo entre pesquisadores). Mas afinal, a despeito das ofertas de serviços e procedimentos estéticos que diariamente utilizam o adjetivo quântico como estratégia de validação científica e marketing (caso você queira reprogramar seu DNA usando quântica, infelizmente não poderei ajudar) , o que é a teoria quântica e por que ela é tão polêmica assim ?

A palavra quantum é um termo do latim e que tem significado interrogativo “quanto?”. Na física, a palavra quanta (o plural em latim de quantum) já era utilizada em algumas áreas, mas por volta de 1900 a palavra ganha outro significado. Quanta, de maneira geral, passa a designar a energia mínima que entidades físicas podem ter durante um processo de interação. Este processo é chamado de quantização. Estas formulações marcam a fundação do que hoje chamamos de mecânica quântica, rompendo drasticamente com a física desenvolvida até então – a física clássica (também conhecida como newtoniana). Por que ocorre esse rompimento? Uma das principais bases da física clássica é o que chamamos de causalidade e determinismo que dizem, no geral, que fenômenos naturais podem ser descritos em relações de causa – efeito e que é possível acompanhar sua evolução temporalmente. Por exemplo, se arremessarmos uma bola de papel podemos observar e acompanhar sua trajetória e, sabendo suas condições iniciais, facilmente calcular onde ela irá cair, assim como sua posição e velocidade em cada instante. Na mecânica quântica, além de não ser possível observar diretamente os objetos em estudo (elétrons, nêutrons, fótons, etc), com o processo de quantização, quantidades característica da matéria (como energia e momentum) passam a ter valores fixos específicos, algo inconcebível na física clássica.

Discutir a fundação e o desenvolvimento da mecânica quântica significa também explorar a polêmica sobre a característica da luz, ou seja, se seu comportamento é ondulatório ou corpuscular. Se olharmos a física desenvolvida nos séculos XIX e anteriores veremos uma série de experimentos e desenvolvimentos teóricos que corroboraram as duas hipóteses. A física newtoniana, por exemplo, é uma contribuição de peso par a hipótese corpuscular, enquanto a teoria de Maxwell para o eletromagnetismo reforça a hipótese ondulatória. Com o desenvolvimento dos estudos dos gases, dos primeiros microscópios, etc, uma característica peculiar chamou atenção. Se observamos partículas de poeira suspensa no ar podemos perceber que estas desempenham um movimento “aleatório”, assim como ocorre com diferentes gases. Em 1827, o físico e botânico Robert Brown ao observar grãos de pólen na água, com o auxílio de um microscópio, percebeu que estes se movimentavam também de “forma aleatória” (fato que o levou a pensar que se tratava de uma nova forma de vida). O que os dois exemplos possuem em comum? Justamente esse movimento “aleatório” a que tanto gases como o pólen pareciam estar sujeitos. Estas observações reforçavam a ideia de que a luz (fenômeno que em ambos os casos interagia com o objeto em estudo) se comportaria de forma corpuscular e, ao se chocar com moléculas de gás ou pólen, faria com que estes se movessem dessa forma “aleatória”. Também no século XIX, outro importante experimento feito por Thomas Young contribuiu para reforçar a outra hipótese, a ondulatória. Em um experimento que hoje é denominado interferômetro de Young, a luz do sol era refletida por um espelho, direcionada de forma a passar por uma pequena fenda e projetada em um anteparo. Ao observar a projeção da luz solar no anteparo se observou um padrão característico em comportamentos ondulatórios, chamado padrão de interferência.

Figura 1: padrão de interferência “claro – escuro” característico em fenômenos ondulatórios

                Ou seja, diversos experimentos mostravam que a luz se comportava tanto de forma corpuscular quanto ondulatória, algo impensável para a física da época, pois não havia registro de fenômenos naturais que se comportassem como onda e partícula ao mesmo tempo. Voltando para o início do século XX e já considerando os primeiros estudos dos fenômenos quânticos e a verificação da existência de partículas atômicas, uma versão moderna do experimento de Young foi realizado, hoje conhecido como experimento da dupla fenda. Neste experimento, uma fonte fazia com que a luz passasse por duas fendas inicialmente abertas. Caso a luz fosse de fato corpuscular, um padrão como o mostrado na Fig. 2 deveria ser encontrado:

Figura 2: marcas de mais ou menos o tamanho da fenda por onde as partículas passaram deveriam ficar marcadas na chapa

            No entanto, o encontrado foi novamente o padrão de ondulatório (como na Fig. 1) e exemplificados nas Fig. 3 e 4 a seguir:

Figura 3: padrão “claro – escuro” típico em fenômenos ondulatórios.
Figura 4: luz solar utilizada no experimento da dupla fenda

            Porém, ao fecharmos uma das fendas neste mesmo experimento algo curioso acontece: o padrão ondulatório desaparece e temos um comportamento corpuscular da luz (Fig. 2). Tal resultado foi um choque no meio físico, pois nenhuma teoria clássica podia explicar este resultado da luz se comportando como onda e como partícula, a depender do modelo experimental. No caso da dupla fenda essa “estranheza” foi mais profunda pois o simples ato de fechar a fenda 1 (mantendo inalterada a outra) foi suficiente para mudar o padrão do que ocorreria na fenda 2. Experimentos nos mais diversos arranjos foram realizados, no entanto o resultado continuava sendo que a luz possuía comportamento ondulatório e corpuscular. Problema que foi denominada dualidade onda-partícula. Na época, uma das hipóteses levantadas foi que o comportamento da luz poderia ter alguma ligação com o arranjo experimental, de forma que era necessário saber qual o formato dele para poder então dizer se a luz era uma onda ou partícula. Algo que até então completamente inconciliável com a física clássica.

            Retornamos então ao início do texto, trazendo de volta o físico dinamarquês Niels Bohr, que década de 1920 já possuía bastante prestígio internacionalmente. O Institut for Teoretisk Fysik (Copenhague – Dinamarca), fundado em 3 de março de 1921 por Bohr e dirigido por ele rapidamente atraiu jovens intelectuais vindos da Europa, EUA e partes da Ásia. Sob a direção de Bohr, a chamada Escola de Copenhague se tornou praticamente sinônimo de sucesso profissional na área de física teórica, onde aqueles pertencentes a ela estariam entre os melhores de suas áreas. Com um grupo de físicos que contava com nomes como Werner Heisenberg, Max Born, Paul Dirac, Wolfgang Pauli, Léon Rosenfeld, entre outros, Bohr e seu círculo se lançaram na tentativa de não apenas explicar essas estranhezas do mundo quântico, mas também deixar a marca da Escola de Copenhague na história do conhecimento. Em 1928, Bohr lança seu marcante artigo The Quantum Postulate and the Recent Development of Atomic Theory, apresentando uma das hipóteses mais importantes da teoria quântica do modelo padrão, a Complementaridade (que ao longo dos anos se tornou uma espécie de lei universal sacrossanta). Nela, Bohr indica a interferência do observador (interferência do aparelho de medição) como um dos princípios invioláveis em sua teoria. Para o físico, diferente de como ocorre no mundo clássico (macro), ao tentarmos medir a posição ou velocidade de uma partícula, essa partícula ganharia ou perderia energia e mudaria de posição, impossibilitando assim que uma boa medição fosse feita. Desta forma, de acordo com o físico, a única forma de obter algum tipo de descrição do comportamento de uma partícula seria através de valores probabilísticos que variam de acordo com o arranjo experimental (utilizando a matemática construída por Heisenberg). Ou seja, para Bohr tudo que podemos fazer é dizer que uma partícula x tem 30% de chance de estar no estado y, por exemplo. Como essa partícula foi parar no estado y e o que ocorreu durante esse processo é impossível saber, não faz sentido querer saber. Tais colocações podem ser encontradas no próprio artigo de 1928, eu cito:

De acordo com o postulado quântico, qualquer observação com respeito ao comportamento de um elétron no átomo será acompanhada de uma mudança no estado do átomo. [….] Uma descrição da “órbita” do elétron no átomo com auxílio de observações subsequentes é, portanto, impossível. […] (BOHR, 1928, p. 587).

Como também no artigo do Heisenberg onde ele lança seu famoso Princípio da Incerteza e arquitetura matemática para a teoria quântica, publicado em 1927:

Quando alguém deseja ser claro sobre o que quer dizer com as palavras “posição de um objeto”, por exemplo do elétron, ele deve especificar os experimentos com os quais pretende medir tal posição; do contrário essas palavras não terão significado (HEISENBERG, 1928, p. 64).

            Juntas essas ideias formam o que é chamado de indeterminismo do mundo quântico. Em outras palavras, se no mundo clássico, o nosso mundo, podemos observar e descrever a todo instante um fenômeno (seja a olho nu ou usando algum aparelho de medida), no regime quântico isto é impossível. Tudo que podemos fazer é estipular previsões probabilísticas do que pode acontecer, não havendo motivos para discutir ou analisar o processo, pois na teoria ortodoxa este processo sequer existe. Previsões em porcentagens, sujeitas a altas e quedas sob as quais não temos controle e que podemos apenas medir seus valores finais faz você lembrar de algo? Essas formulações desagradaram diversos físicos, como Albert Einstein, David Bohm, Erwin Schrödinger, que achavam absurda a ideia de descartar, de forma a priori, a possibilidade de descrições onde a causalidade e o determinismo sejam relevantes. Inclusive, é importante dizer que Bohr e seus paladinos eram categóricos ao afirmar que a única, repito, a única forma de descrever o mundo quântico é através de suas formulações, das ideias da famosa Escola de Copenhague (Espírito de Copenhague – Kopenhagener Geist[2] -, como diziam). Bohr e seu círculo direcionavam fortes críticas e desqualificações a nível pessoal a seus “opositores”, caracterizando suas colocações como desnecessárias, pois a física de Copenhague estava completa e funcionava experimentalmente. Mesmo assim, o início da década de 1930 marca o início da hegemonia de Copenhague ou, para melhor dizer, da Monocracia de Copenhague. De umas das teorias quânticas em desenvolvimento, a construída por Bohr e seu círculo (que não era homogênea internamente, haviam discordâncias e até enormes contradições nas formulações de seus integrantes) se tornou a única “oficial” autorizada e aceitável.

            Por fim, é importante ressaltar que durante o processo de consolidação da Monocracia de Copenhague, teorias alternativas que eram consistentes em sua lógica, hipóteses físicas e chegavam nos mesmos resultados da ortodoxa, sem apelar para suas “impossibilidades”, foram construídas. A consolidação da teoria de Copenhague envolveu muita jogada política, movimentações institucionais e estratégias de propaganda em massa (até hoje maioria dos livros, documentários, canais de divulgação científica, etc., apresentam a teoria quântica ortodoxa sem apresentar suas contradições internas e como única existente). Como assim? Quer dizer que teorias, numa área das ciências “exatas” tão “dura” como a física, foram aceitas como corretas e invioláveis mesmo havendo conflitos internos? Como isso ocorreu? Onde fica a racionalidade e exatidão do método científico? Por que isso não é dito nos livros e recursos multimídias? Quer dizer que mesmo uma área como a mecânica quântica não é tão neutra assim, como defendem seus paladinos? Como, onde e por que são justamente os principais questionamentos que a teoria ortodoxa ainda recusa responder, odeia que sejam sequer pronunciados. Por isso a urgência de um pensamento plural, libertário e crítico. Um pensamento que não tenha medo de explorar a criatividade humana, que não se acorrente nos ditos “limites da sociedade e conhecimento” e pregue a inexistência do outro. Trazer à tona o como, onde e por que é fundamental, mas esse é um papo que ficará para uma outra hora.

Rafael Velloso é físico e mestrando em filosofia. É um dos fundadores e editores do Portal Autônomo de Ciências.

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[1]Devido a apresentação do artigo nos Atti del Congresso Internazionale dei Fisici (Anais do Congresso Internacional de Física), em Como – Itália, em setembro de 1927.

[2] A palavra Geist tem seu significado diferente de espírito no português. Enquanto em nossa língua espírito possui significado místico, no alemão quer dizer algo como a cultura ou conjunto de ideias de determinada época ou lugar.

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