Se os petroleiros boicotassem o Santander

A hierarquia privatista da Petrobras concluiu no dia 13 de junho a privatização de 90% da sua subsidiária Transportadora Associada de Gás (TAG) pra transnacional franco-belga Engie, do ramo de energia, e pro fundo canadense Caisse de Dépôt et de Placement du Québec (CDPQ), também transnacional. Mais precisamente, a composição acionária da TAG passou a ser a seguinte: 58,5% da Engie, 31,5% da CDPQ) e 10% da Petrobras. Esse fato aconteceu poucos dias após o Supremo Tribunal Federal (STF) ter decidido que as subsidiárias de empresas estatais e de economia mista podem ser vendidas sem autorização do congresso nacional e sem licitação (https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/06/06/stf-julgamento-privatizacao-estatais.ghtml). Essa decisão do STF permitiu a conclusão do negócio, que havia sido feito em abril deste ano. É importante ressaltar que essa decisão era infelizmente esperada, tendo em vista que o STF tem feito parte do grande ataque privatista e que a torcida de setores anti-privatistas da categoria petroleira por uma decisão que proibisse a venda de subsidiárias sem concordância do parlamento e sem licitação demonstra que ainda estamos muito aquém da mobilização necessária pra que o tradicional lema “não passarão”, vindo do campo republicano na Guerra Civil Espanhola (1936-1939), deixe de ser uma miragem em relação aos privatistas.

A TAG possui cerca de 4,5 mil km de gasodutos e capacidade de movimentar 74 milhões de metros cúbicos de gás natural por dia. Além de estações de compressão de gás natural e de pontos de entrega. É uma malha de gasodutos gigantesca, que expressa a dimensão continental do Brasil.

A venda da TAG ficou em 8,6 bilhões de dólares (cerca de 33 bilhões de reais, considerando uma taxa de câmbio um pouco inferior a 4 reais por dólar). Mas quanto custou à Petrobras construir a malha de gasodutos que compõe a TAG? E quanto do montante pelo qual está sendo privatizada vai efetivamente ficar com a Petrobras? Quanto a Petrobras vai passar a gastar por ano tendo que pagar aluguel à Engie-CDPQ pra utilizar a TAG? Essas perguntas são muito importantes, ainda mais porque, com a privatização de também 90% da Nova Transportadora do Sudeste (NTS) prum consórcio liderado pelo fundo canadense Brookfield Asset Management, em 2017, a Petrobras recebeu efetivamente 2,4 bilhões de dólares (cerca de 9,15 bilhões de reais, numa taxa de câmbio de pouco menos de 4 reais por dólar) dos 5,2 bilhões de dólares totais da transação, e teve que desembolsar, em menos de seis meses, pouco mais de 1 bilhão de reais, o que equivale a cerca de 263 milhões de dólares na cotação que está sendo utilizada neste texto, em aluguel pra poder utilizar a malha de dutos da NTS, que antes era de sua propriedade (http://www.aepet.org.br/w3/index.php/conteudo-geral/item/2126-nts-tragedia-anunciada-e-responsabilidade
e http://www.aepet.org.br/w3/images/2017/11/docs/rmf-2T17.pdf). Como a Brookfield busca lucro com a NTS, a Petrobras gasta mais pra utilizar a NTS privatizada do que se a mantivesse como uma subsidiária sua. Além disso, o que garante que a Petrobras vai continuar tendo pelo menos prioridade em relação às concorrentes pra utilizar a malha de dutos da NTS? E mais: ainda que a Brookfield tenha contratado a Transpetro pra operar a NTS por 10 anos, quem garante que não vai contratar uma transnacional estrangeira após esse período (ou que a Transpetro não vai ser mais diretamente privatizada, inclusive antes desse prazo)?

Somando os cerca de 2 mil km de malha de dutos da NTS e os cerca de 4,5 mil km da TAG, a Petrobras já privatizou, em dois anos, mais de 6,5 mil km de gasodutos, de um total de 9190 km (http://www.petrobras.com.br/fatos-e-dados/nossa-rede-de-gasodutos-esta-presente-nas-cinco-regioes-do-pais.htm). Provavelmente, a Petrobras vai colocar mais dutos pra serem privatizados. Entre eles, estariam os gasodutos Rota 1 (com aproximadamente 244 km, liga o campo de Lula à Plataforma de Mexilhão e de lá até a Unidade de Tratamento de Gás Monteiro Lobato (UTGCA), em Caraguatatuba, no estado de São Paulo), Rota 2 (com 401 km, liga a Bacia de Santos até o Terminal de Cabiúnas (Tecab), em Macaé, no estado do Rio de Janeiro) e Rota 3 (com 355 km, liga a Bacia de Santos até o Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj), em Itaboraí, no Rio de Janeiro). A Petrobras já teria até contratado o banco Crédit Suisse pra organizar essa privatização (https://oglobo.globo.com/economia/apos-se-desfazer-da-tag-petrobras-quer-levantar-mais-us-3-bi-com-venda-de-gasodutos-23587856). Uma pergunta que precisa ser respondida é: quanto a Petrobras paga pra essa instituição financeira do país que se confunde com um banco (e quanto paga aos demais bancos contratados pra fazer esse tipo de serviço)? E quanto pagou ao banco transnacional espanhol Santander pela assessoria na privatização da TAG?

O Santander, aliás, publicou no Globo, no dia 14 de junho (data da mais recente tentativa de greve geral, na qual houve uma participação petroleira), um anúncio de página inteira, no qual se apresenta como assessor da Petrobras na venda da TAG, e diz que a maior privatização da história da Petrobras é ótima pro Brasil. Essa propaganda soa como uma provocação e um deboche. A privatização da TAG faz parte do desmonte da Petrobras. De uma empresa integrada de energia, indo do poço ao posto (e ao poste, com as termelétricas, e ao plástico, com a petroquímica), está sendo reduzida a uma terceirizada das grandes transnacionais estrangeiras em parte da exploração e produção de petróleo e gás natural. Na contramão, portanto, de todas as grandes empresas de energia do mundo, que buscam cada vez mais integração das suas atividades. A desintegração da Petrobras a enfraquece, num ambiente de negócios dominado por corporações gigantescas e muito poderosas, donas de muitas peças no xadrez geopolítico. A alienação da TAG faz parte do aprofundamento aceleradíssimo da (re)colonização do Brasil, que tem como peça-chave o aprofundamento aceleradíssimo da privatização do sistema Petrobras. Desarticular a cadeia produtiva da Petrobras, principalmente privatizando (não “apenas” os seus ativos, mas também, e sobretudo, a sua lógica de funcionamento, os seus valores, a sua cultura, a sua mentalidade, o seu pensamento), é deixar o Brasil sem soberania energética. A política energética “brasileira” passa a ser formulada pra atender os interesses de outros países, especialmente os chamados países centrais da economia capitalista mundial. A imensa vitória que foi, pro povo brasileiro, a criação da Petrobras, em 1953, como ferramenta pra exercer o (incompleto) monopólio estatal do petróleo, foi insuficiente, pelos seus limites, pra garantir que o povo trabalhador brasileiro decidisse diretamente os rumos da empresa, jóia da coroa do patrimônio estatal e potencialmente público do país, e, assim, decidisse grande parte dos rumos do setor nacional de energia, setor-chave pruma verdadeira independência econômica e política. O povão mesmo sempre foi colocado de lado na hora de decidir mesmo esses rumos. E isso foi um grave problema. Mas, apesar disso, apesar de setores empresariais brasileiros e estrangeiros terem colocado seus interesses muito à frente dos do povão, a força da campanha O petróleo é nosso se fez sentir durante várias décadas, dificultando as sabotagens privatistas externas e internas. Atualmente, embora ainda algum eco do povo nas ruas que criou a Petrobras resista, o privatismo é uma blitzkrieg avassaladora. O Santander faz parte desse feroz ataque, que se disfarça com a capa do mito da neutralidade da técnica. Esse banco, junto com outros, faz parte da submissão da Petrobras ao financismo. Dito de outra maneira, a privatização da Petrobras, que está acontecendo, faz com que o que sobra da empresa exista pra enriquecer ainda mais os já riquíssimos bancos, em vez de pra ser a locomotiva (ou o trenzinho caipira, inspirado no Villa-Lobos) do desenvolvimento social e econômico do povo brasileiro.

O Santander é malandro. Mesmo dando um violentíssimo tapa na cara do trabalhador petroleiro e do povo trabalhador brasileiro de conjunto, utiliza sua comunicação pra parecer que está nos ajudando. Manipula pra parecer que tecnicamente (e gargalha de quase engasgar dos que acreditam que a técnica é neutra) faz o melhor pra Petrobras e pro Brasil, se mostrando ao mesmo tempo um mestre dos números e dos gráficos (evidentemente neutros – kkk) e um bem-humorado e (in)formal assessor do povão. O anúncio de página inteira em que comemora a privatização da TAG e a campanha publicitária do seu micro-crédito com o garoto-propaganda-personagem Rick Prospera (https://exame.abril.com.br/marketing/ex-vendedor-de-agua-que-foi-para-harvard-estrela-campanha-do-santander/) são duas faces da mesma moeda. O banco vende a sua teologia da prosperidade pros ric(k)os e pros pobres, como um poliglota do mercado. Com uma asséptica equação ou com um pega a visão na ponta da língua, a linguagem de fundo é sempre a mesma (mesmo cifrada): cifrão, $.

Há alguns anos, a Transpetro, subsidiária da Petrobras de transporte (logística), passou a depositar as remunerações dos seus empregados no banco Santander. Como resposta ao sarcasmo dessa instituição financeira, que, na prática, está ajudando a preparar o caminho pra demissões em massa na própria Transpetro e no conjunto do Sistema Petrobras, com repercussão em muitas famílias, tanto petroleiras como outras, os petroleiros que têm conta nesse banco e discordam do processo privatista poderiam retirar seu dinheiro de lá e evidenciar o motivo, tanto junto ao banco quanto publicamente. Seria um gesto, entre outros, na luta contra a privatização e o esfacelamento do nosso futuro, como pessoas e, principalmente, como povo.

Este texto foi publicado originalmente em 31 de julho de 2019 e pode ser encontrado aqui.

Antony Devalle é trabalhador da Petrobrás e integrante do grupo autônomo de trabalhadores petroleiros Inimigos do Rei. É um dos fundadores e editores do Portal Autônomo de Ciências.
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