O que a exoneração de Ricardo Galvão diz sobre a comunidade científica?

Repórter: Como foi a reunião e o que o senhor tem a dizer pra gente?
Ricardo Galvão: Olha, a reunião foi excelente. Foi uma reunião muito construtiva, o ministro conversou comigo de uma forma muito cortês e o que eu fiquei muito feliz com a conversa com o ministro é a preservação do INPE. Claro com a minha… meu discurso com relação ao presidente, criou um constrangimento. No entanto, eu tinha uma preocupação muito grande que isso fosse respingar no INPE. Não vai acontecer. O ministro, inclusive, nós discutimos em detalhes como vai ser a continuação da administração do INPE. Agora, é claro, mediante do fato da maneira que eu me manifestei com relação ao presidente, criou um constrangimento que é insustentável. Então eu serei exonerado, mas ficará no meu lugar uma pessoa que já me substitui, com grande possibilidade de nós implantarmos, continuarmos o desenvolvimento da minha linha de ação no INPE.
Repórter: Já sabe o substituto?
Ricardo Galvão: Eu fiz sugestão de alguns nomes, de um nome em particular, mas não vou dizer porque é escolha do ministro.
Repórter: O senhor não tinha um mandato ja presidência?
Ricardo Galvão: É assim, todas as unidades de pesquisa do MCT, elas são, os diretores são escolhidos por um comitê de busca, é feita uma lista tríplice e uma vez feita a escolha pelo ministro nós temos em princípio 4 anos de mandato, mas no regimento tá muito bem explícito que ad nutum do ministério, certo. Então o ministro sempre pode, é perfeitamente legal, numa situação de perda de confiança ou qualquer coisa como aconteceu, de substituir, isso é perfeitamente legal.
Repórter: O senhor concorda?
Ricardo Galvão: Concordo.

Essas falas foram transcritas da declaração dada pelo agora ex presidente do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) Ricardo Magnus Osório Galvão, logo após sua reunião com o ministro Marcos Pontes. Já sabemos que o governo é autoritário e não se preocupa com dados científicos, inclusive porque sua eleição foi construída em cima de argumentos anti-racionais, a negação da ciência é um de seus alicerces. Não podemos cobrar racionalidade de alguém que há muito tempo (talvez desde sempre) negue a razão. No entanto, esta declaração diz mais sobre Ricardo Galvão e a comunidade científica do que do governo. Mas por quê?

Tudo começou com a divulgação de dados pelo INPE[1] que mostravam um aumento de 60% do desmatamento da Amazônia em junho desde ano, se comparado com 2018. Os dados também mostraram que o desmatamento de junho é aproximadamente do tamanho da cidade de São Paulo[2]. Após a divulgação dos número, Jair Bolsonaro fez inúmeras declarações, desqualificando a metodologia aplicada, o INPE e o próprio Ricardo Galvão[3]. Como forma de rebater as críticas, Ricardo Galvão disse “Ele tomou uma atitude pusilânime, covarde, de fazer uma declaração em público talvez esperando que peça demissão, mas eu não vou fazer isso. […] Eu sou um senhor de 71 anos, membro da Academia Brasileira de Ciências, não vou aceitar uma ofensa desse tipo. Ele que tenha coragem de, frente a frente, justificar o que ele está fazendo”[4]. Suas palavras foram bastante aplaudidas e comemoradas pelas entidades científicas brasileira, como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC)[5]. No entanto, após ver suas declarações, postada na conta oficial do twitter do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC)[6], algumas coisas chamam atenção.

Onde está a pessoa disposta ao enfrentamento de antes? Improvável que a gente venha a saber o que foi realmente dito pelo ministro durante a reunião, mas as declarações de Ricardo Galvão respaldando sua exoneração são preocupantes. Sua declaração evidência a ausência de democracia na escolha dos nomes para a presidência das Unidades de Pesquisa, uma ausência que não vem deste governo, nem do anterior. Entretanto, o que mais me assusta são suas palavras finais, onde diz à repórter que concorda com a decisão do ministro. Ora, dizer que concorda com sua exoneração significa concordar com as negações, acusações de manipulação e suposto “espancamento” dos dados com um objetivo de atingir o governo, todas palavras de Bolsonaro. Ao dizer publicamente que “mediante do fato da maneiro que eu me manifestei com relação ao presidente, criou um constrangimento que é insustentável” o ex presidente do INPE esvazia qualquer possibilidade de crítica ao governo. Ao dizer que “o ministro sempre pode, é perfeitamente legal, numa situação de perda de confiança ou qualquer coisa como aconteceu, de substituir, isso é perfeitamente legal” Ricardo Galvão fortalece discursivamente Jair Bolsonaro.

Mas, de novo, por que isso diz mais sobre a academia científica? Quem vive no âmbito universitário ou acompanha o noticiário científico, percebe rapidamente que nossa intelectualidade é composta majoritariamente pela elite. Uma elite intelectual que vem observando há tempos o desmonte do aparato público e que só passou a se manifestar mais firmemente quando o desmonte atingiu seus micro poderes. Uma elite intelectual que reproduz práticas anti democráticas, racistas, misóginas e homofóbicas em seus antros de poder. Uma elite intelectual que de fundo não está preocupada com o público, se a população pobre conseguirá ingressar e se formar em universidade públicas ou não. No fundo, temos uma intelectualidade que só almeja alto índice de produtividade na Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que traz maior prestígio acadêmico e, evidentemente, mais dinheiro. Se seus prestígios e poder não viessem dessas instituições, será que estariam preocupados? Eu tenho minhas dúvidas.

Todo o ocorrido apenas reforça a necessidade de nós, filhos e filhas da parcela pobre da população, ocuparmos esses espaços, mas não ocupar para reproduzir o que tem sido feito e até reforçar, implicitamente, o discurso do senso comum do “estudou em escola pública a vida toda e olha onde chegou, basta se esforçar que você consegue”. É preciso que seja construída outra ciência, uma forma de conhecimento que não trate a população pobre como rato de laboratório, uma forma conhecimento onde todos e todas possam não apenas saber o que tem sido feito, mas construir em conjunto, uma forma de conhecimento onde os egos e micro poderes sejam destruídos. Caso contrário, a academia sempre será excludente, elitista, egocêntrica e composta por pessoas que só estão preocupadas com o desmonte porque é de onde sugam dinheiro e de onde vem o prestígio. Isso se eles não forem destruídos pelo governo durante a luta pela manutenção de seus micro poderes.

Este texto foi publicado originalmente em 2 de agosto de 2019 e pode ser acessado aqui.

[1] http://www.inpe.br/noticias/noticia.php?Cod_Noticia=5147
[2] https://g1.globo.com/natureza/noticia/2019/07/03/desmatamento-na-amazonia-em-junho-e-88percent-maior-do-que-no-mesmo-periodo-de-2018.ghtml
[3] https://outline.com/xA7auK
[4] https://brasil.elpais.com/brasil/2019/08/02/politica/1564759880_243772.html
[5] http://portal.sbpcnet.org.br/noticias/assembleia-geral-da-sbpc-reafirma-manifesto-em-defesa-do-inpe/
[6] https://twitter.com/mctic/status/1157321742840467466
 
Rhavel é físico e mestrando em filosofia. É um dos fundadores e editores do Portal Autônomo de Ciências.
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