O Pântano legal da privatização da ciência, tecnologia e inovação

E se eu te dissesse que funcionários públicos em dedicação exclusiva estão usando um quinto de sua carga horária para trabalhar para empresas privadas, sem diminuição de salário nem perda de benefícios? E se prédios e infraestrutura públicos forem cedidos sem contrapartidas financeiras para empresas privadas, não só nacionais e sem fins lucrativos, mas multinacionais? E se todo trabalho de cientistas brasileiros, financiado por dinheiro público, for orientado e vendido para conglomerados estrangeiros aumentarem seus lucros? Bom, tudo isso já pode ser realidade. O atual Marco Legal da Ciência, Tecnologia e Inovação (CTI) é uma marca sem precedente da privatização da CTI, das universidades e centros de pesquisa brasileiros.

A Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência (SBPC) não só comemorou a aprovação do Marco, como foi um dos principais atores no lobby durante os anos de tramitação do projeto no Congresso Nacional e para a derrubada dos vetos impostos pela presidente Dilma na época[1]. A presidência da Associação Nacional de Pós-graduandos (ANPG), Tamara Naiz (PCdoB) defendeu e destacou a importância do marco, porque ele “esclarece, melhora e impõe regras para a relação público-privada.” [2]. Contraditoriamente, de certa forma, entende que “[…] o lado da nossa ciência deve ser a busca da soberania nacional e do desenvolvimento do nosso povo”. Talvez a única grande organização a se posicionar fortemente contra o Marco seja o Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (ANDES-SN) [3].

 

Pântano legal

O Marco Legal da CTI , lei de número 13.243 de 2016[4], é um conjunto de normas que incide sobre outras oito leis e altera principalmente a Lei da Inovação, de 2004[5]. Recentemente, o Marco foi regulamentado pelo governo Temer por meio do decreto Nº 9.283, de 7 de fevereiro de 2018[6]. O projeto de lei que deu origem ao marco legal passou a tramitar em 2011 como PL 2.177 e tinha como proponentes os deputados federais Bruno Araújo (PSDB/PE), Antonio Imbassahy (PSBD/BA), Ariosto Holanda (PSB/CE), Carlinhos Almeida (PT/SP), entre outros[7]. Em 2015, a livre relação dos Institutos de Ciência e Tecnologia (ICT) com as empresas privadas da forma como preconizada no marco legal deixou de ser inconstitucional com a promulgação da Emenda Constitucional (EC) 85[8]. A EC 85 foi proposta pela deputada do PT/MG, Margarida Salomão, ex-diretora da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (ANDIFES) no período de 1998 a 2006. Após ser discutido e aprovado pela câmara, o marco legal passou sem alterações pelo senado. A presidente Dilma, pouco antes do golpe que a depôs, vetou parte da lei sob justificativa que algumas medidas de isenção fiscal sobre bolsas e sobre importações simplificadas iriam diminuir a arrecadação da União e prejudicar o equilíbrio fiscal. Ela também vetou parcialmente a flexibilização para as ICT contratarem empresas privadas sem licitação[9]. É importante destacar aqui que o mesmo congresso-mais-conservador-da-história-recente que aprovou a EC 95/16, impondo contingenciamento aos investimentos em CTI por 20 anos, é aquele que aprovou o Marco Legal da CTI para “modernizar” a ciência nacional. É no mínimo para se desconfiar de um projeto em comum.

A lei 13.243/16 é ampla e complexa. Parte dela simplifica os processos de importação de insumos para a pesquisa, processo burocrático que gerava reclamações generalizadas entre os cientistas de laboratório. Talvez por esse aspecto a lei tenha ganhado popularidade na comunidade científica. Mas no pântano das simplificações e flexibilizações o crocodilo neoliberal abocanha a autonomia da CTI nacional. Para listar alguns de seus efeitos, a lei permite que compras para CTI de até 300 mil reais não tenham licitação, coloca a CTI no rol de atividades incluídas no Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC); permite que empresas privadas com atividades de inovação tenham benefícios de isenção de importação; permite que professores universitários em dedicação supostamente exclusiva dediquem até 8 horas de sua carga horária semanal para prestarem serviços a empresas privadas, sem que eles sejam descontados ou percam quaisquer benefícios por isso[4].

Mas as alterações sobre a lei da inovação[5] provavelmente são as mais polêmicas e privatizantes. A lei de 2004, do primeiro governo Lula, já se propunha a regulamentar a relação dos ICT com empresas privadas brasileiras, de modo a orientar a ciência e a tecnologia para a inovação e a competitividade produtiva. A lei de 2016 altera a original para que as ICT públicas possam ceder espaços para qualquer empresa privada, sem contrapartidas financeiras, e não só as sem fins lucrativo; muda a definição de ICT para incluir também os institutos de direito privado; permite que os convênios sejam feitos com quaisquer empresas, não só as nacionais; garante que o servidor pode prestar serviços individualmente e não só por meio da ICT; assegura que os direitos de propriedade intelectual de criação possam ser integralmente vendidos às empresas privadas; regulamenta os Núcleos de Inovação Tecnológica (NIT), entidades sem fins lucrativos e que podem ser independentes da ICT, como os mediadores entre as instituições e o setor privado; dá autonomia aos NIT e fundações (organizações sociais) e permite repasses de verbas públicas direto a eles.

Dito tudo isso, você ainda pode pensar: “ai, mas mesmo tornando as relações público privadas ainda mais promíscuas, tudo bem se a lei for gerar de fato inovação tecnológica que vai levar ao desenvolvimento do país”. Mas eu argumento a seguir que a lei não vai promover esse desenvolvimento, pois não altera o cerne da dependência tecnológica do Brasil em relação aos países centrais do capitalismo.

 

Não há inovação na dependência

É importante ressaltar que leis não são conjunto de normas ideais que têm os efeitos previstos uma vez decretadas. Leis são situadas em contextos políticos, econômicos e culturais específicos; são circunstanciais e se traduzem de acordo. Achar que a ausência de efeitos da Lei da Inovação de 2004 foi devido a uma inadequação dos termos e considerar que alterar a lei e ampliar o poder das empresas estrangeiras sobre a CTI pública iria resolver algo é apagar o contexto de dependência científico-tecnológica que é imposta ao Brasil na divisão internacional do trabalho.

Primeiro que as empresas privadas brasileiras não cumprem a sua parte prevista na idealização da inovação. Elas são majoritariamente de dois perfis: indústrias de baixa tecnologia agregada ou filiais de multinacionais que montam produtos tecnológicos aqui, mas realizam as atividades de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) nas sedes nos países centrais do capitalismo. Nenhum dos dois tipos irá fazer inovação tecnológica aqui. Segundo que o Brasil é signatário de acordos internacionais sobre patentes[10] que aprofundam a dependência tecnológica e restringem em muito a possibilidade de um parque industrial tecnológico autônomo. Terceiro que a excessiva liberalização e a concorrência internacional levam as indústrias tecnológicas brasileiras a serem englobadas pelas grandes multinacionais que monopolizam os mercados[11]. As super-especializadas startups e pequenas empresas que nascem dessas iniciativas de aproximação das ICT ao setor privado não são exceção. Não dá para pensar em inovação nacional sem desarticular as estruturas socioeconômicas dessa dependência tecnocientífica.

A lei, além disso, tem como dado que o local da inovação é a empresa privada. Em seu texto, não há possibilidade ou destaque para as empresas públicas, para as cooperativas ou para os efeitos das ciências que não precisam ser mediados pelo setor produtivo[12]. O texto silencia que os locais onde o Brasil mais realizou inovação tecnológica e foi capaz de se inserir como importante concorrente nos mercados capitalistas foram nas empresas e ICT estatais, a Fiocruz, a Embrapa, a Petrobrás, a Embraer. Não por acaso as duas últimas estão em processo acelerado de privatização pelos mesmos atores que aprovaram o marco legal da CTI. O texto também silencia o local do Estado nas reservas de mercado, na regulamentação da economia, na garantia de infraestrutura e de formação especializada para garantir o processo inovativo, inclusive nos países do centro do capitalismo. Com o marco legal, o Estado deve conceder todos os benefícios possíveis (cessão de mão de obra, infraestrutura, isenções fiscais, incentivos, poder de compra) para induzir empresas privadas a fazer a atividade que já lhes seria cabida no capitalismo segundo um modelo linear da inovação. A lei é o neoliberalismo purificado, sem sequer se importar em assegurar contrapartidas sociais.

 

A contrapartida

Para começar vamos acordar que interesse dos empresários e do setor produtivo não é interesse da sociedade. As ICT deveriam direcionar suas atividades de pesquisa, ensino e extensão para abordar problemas sociais construídos de forma democrática e horizontal com a sociedade, movimentos sociais e comunitários. Mas o marco legal tem um entendimento diferente.

O tipo de contrapartida exigida nos termos da lei é que a relação público-privada não “interfira diretamente em sua [da ICT] atividade-fim nem com ela conflite” (segundo inciso do artigo 4º) e que ela esteja em consonância com as prioridades apontadas pelas Políticas de Ciência, Tecnologia e Inovação e de Desenvolvimento Industrial, como descrito no artigo 15º-A: “A ICT de direito público deverá instituir sua política de inovação, dispondo sobre a organização e a gestão dos processos que orientam a transferência de tecnologia e a geração de inovação no ambiente produtivo, em consonância com as prioridades da política nacional de ciência, tecnologia e inovação e com a política industrial e tecnológica nacional.”

Por um lado, não é preciso ir muito longe em um exercício de imaginação para compreender que as atividades finalísticas de grupos de pesquisa poderiam estar perfeitamente alinhados aos interesses privados. A manutenção desses grupos está sujeita a critérios produtivistas e a dinâmicas sociopolíticas que estabelecem dependência da pesquisa latinoamericana à pesquisa dos países centrais[13]. Além disso, com o novo conjunto de leis, o pesquisador é recompensado individualmente de várias formas por dedicar seu trabalho aos interesses empresariais, seja por pagamentos adicionais, bônus pela venda de direitos autorais e nenhum tipo de dedução salarial. Soma-se isso ao fato de que está se incentivando que as universidades sejam povoadas de OS, fundações, incubadoras e parques tecnológicos. Qual vai ser a atividade-fim de um laboratório?

Por outro lado, a Política Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação do governo Temer está inteiramente alinhada com as estratégias do marco legal no desenvolvimento de um sistema nacional de inovação voltado para o interesse dos setores produtivos. Quando elencam temas estratégicos como prioridades são bastante específicos e apontam só 12: aeroespacial e defesa, água, alimentos, biomas e bioenergia, ciências e tecnologias sociais, clima, economia e sociedade digital, energia, minerais estratégicos, nuclear, saúde e tecnologias convergentes e habilitadoras. Ou seja, na prática quase tudo que é pesquisado[14].

O argumento de que o investimento privado irá suprir as demandas causadas pelo baixo investimento estatal em CTI parece ruir quando na verdade o que há é uma orientação do orçamento público e das agendas de pesquisa das ICT para atender às demandas do mercado. É mais provável que o já ameaçado orçamento da CTI brasileiro seja direcionado para beneficiar empresas privadas. Um passo galopante para a privatização das ICT.

Este texto foi originalmente publicado em 17 de julho de 2018 e pode ser encontrado aqui.

 

[1] http://portal.sbpcnet.org.br/noticias/publicado-decreto-que-regulamenta-o-marco-legal-da-cti/
[2] http://www.anpg.org.br/novo-marco-legal-da-ciencia-tecnologia-e-inovacao-o-que-os-pos-graduandos-tem-a-dizer/
[3] Uma cartilha que o ANDES produziu com os argumentos contra o Marco Legal está disponível em http://www.andes.org.br/andes/print-ultimas-noticias.andes?id=8738. Além disso, o caderno Andes de número 28 tem uma extensa argumentação contar o Marco Legal e a EC 85. Disponível em: http://portal.andes.org.br/imprensa/documentos/imp-doc-186083876.pdf
[4] Texto do Marco Legal da Ciência, Tecnologia e Inovação (2016) disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/l13243.htm
[5] Texto da Lei da Inovação (2004) disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/Lei/L10.973.htm
[6] Decreto presidencial que regulamenta Marco Legal disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/2018/decreto-9283-7-fevereiro-2018-786162-publicacaooriginal-154848-pe.html
[7] Projeto de Lei que originou Marco Legal disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=518068
[8] Texto da emenda constitucional 85 disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc85.htm
[9] Vetos do executivo federal ao Marco Legal disponíveis em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/Msg/VEP-8.htm
[10] Acordos TRIPs, do qual o Brasil é signatário desde 1994, podem ser acessados em: http://www.inpi.gov.br/legislacao-1/27-trips-portugues1.pdf
[11] Para aprofundar especificamente em relação às dinâmicas monopolizadoras do complexo econômico-industrial da saúde, recomendo a leitura de GADELHA, C.A.G.; MALDONADO, J.M.S.V.; VARGAS, M.; BARBOSA, P.R.; COSTA, L.S. A Dinâmica do Sistema Produtivo da Saúde: inovação e complexo econômico-industrial. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2012.
[12] Para um debate crítico muito rico sobre as Políticas Científico-tecnológicas na américa latina, consultar: DAGNINO, R.; THOMAS, H. Planejamento e Políticas Públicas de Inovação: Em direção a um marco de referência latino-americano. Planejamento e Políticas Públicas (PPP/Ipea), n. 23, p. 205–231, 2001. Disponível em http://www.en.ipea.gov.br/ppp/index.php/PPP/article/view/76
[13] Para aprofundar no debate sobre a dependência da ciência latinoamericana na divisão internacional do trabalho recomendo a leitura: KREIMER, P. ¿Dependientes o integrados? La ciencia latinoamericana y la nueva división internacional del trabajo. Nómadas, n. 24, p. 199–212, 2006. Disponível em http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=105116598017
[14] A Estratégia Nacional de Ciência Tecnologia e Inovação (2016) do governo Temer está disponível em: http://www.finep.gov.br/images/a-finep/Politica/16_03_2018_Estrategia_Nacional_de_Ciencia_Tecnologia_e_Inovacao_2016_2022.pdf

 

Lin Franco é um dos fundadores e editores Portal Autônomo de Ciências.

 

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