Na estréia da Copa do Mundo de futebol de 1982, na Espanha, a Argentina, campeã em 1978, em casa, perdeu por 1 a 0 pra Bélgica. Ainda assim, foi uma partida memorável, pois marcou a estréia do Maradona em Copas do Mundo. Ali ele já mostrou muito talento. Um futebol refinado pela cultura popular argentina, ele próprio parte dessa cultura. Nos pés do povão, tradição e revolução fazem uma tabelinha de ouro. O povo narra jogadas tradicionais enquanto dribla a tradição criando uma nova tradição. Jogada genial. A história como um filme, e não como uma fotografia congelada num porta-retrato. Mas um filme também é uma sequência de fotografias. E a memória é um replay visto pelo nosso coração. Uma fotografia desse jogo ficou na memória do povo como uma síntese do Maradona e do futebol-arte: seis jogadores belgas, desesperados, diante do craque prestes a fazer mágica com a bola. A realidade daquele momento é bem menos impressionante: os belgas estavam saindo da barreira após uma falta cobrada por Ardiles com um passe pro Maradona, e o Maradona nem fez uma jogada de destaque. Mas, se o ângulo em que a foto foi tirada engana sobre a jogada em questão, revela, como uma bola de cristal, o que o Maradona simboliza pra história do futebol e pra cultura popular argentina. Essa foto é La Mano de Diós em forma de imagem. A verdade driblando a realidade. Um déjà-vu antecipado do que vimos no Argentina 2 x 0 Bélgica na Copa do Mundo de 1986 , no México, quando o Maradona jogou vários replays dessa foto, reunindo verdade e realidade.
O Maradona foi um dos mais maravilhosos bombons que La Bombonera que é o futebol argentino já produziu. Um alfajor que delicia o torcedor. Como Garrincha, alegria do povo. E o futebol era seu próprio alfajor, ele que tantas vezes foi torcedor.
Foi um jogador de técnica exímia. Fazia com perfeição cada gesto do futebol. Mas nunca foi um tecnocrata. Sempre entendeu que a habilidade é mais do que a técnica. Que a erudição é oca se não vibrar com paixão. Que seguir uma receita não faz um craque. Que não basta rimar com métrica certinha pra ser poesia. O Maradona era fiel à escola argentina e, de modo mais amplo, à escola do povo no futebol. Foi discípulo e mestre. Reverente e irreverente. Ao mesmo tempo em que se empenhava em cada lição, em cada treino, sempre se mantendo também como um auto-didata, fazia o recreio nas próprias aulas. Bagunçava mesmo. As defesas adversárias e a tecnocracia. Consciente na prática de que não existe técnica neutra, tinha aprendido a técnica inglesa, já que a Inglaterra inventou o futebol, mas fazia questão de reinventar o futebol, com técnica argentina e, sobretudo, com técnica popular. Queria um futebol descolonizado. Mesmo se tornando ricaço e cheio de contradições, sempre utilizou a camisa albiceleste como um uniforme dos desamisados.
Futebol-arte como antítese da ditadura tecnocrática
A ditadura empresarial-militar que torturava a Argentina desde o golpe de 24 de março de 1976 utilizou em seu benefício a imagem vitoriosa do Maradona consagrado como campeão mundial juvenil em 1979, no Japão. Ainda mais que a vítima na final foi a União Soviética, derrotada por 3 x 1 (o Maradona marcou um dos gols, numa cobrança de falta). O craque, apesar de já demonstrar sua imensa qualidade em campo, não havia sido selecionado pra Copa de 1978, no seu próprio país, quando a Argentina foi campeã mundial pela primeira vez e a ditadura também havia utilizado muito a imagem da vitória como se ecoasse (já com resposta pronta de propaganda) “espelho, espelho meu, existe projétil mais lindo do que o meu?”. Mas agora era o principal jogador da vitória. E, assim, o Videla levantou a sua imagem como se erguesse a taça do mundo da política. El 10 aceitou. Não que fosse fácil agir de modo diferente. Mas aceitou. Sua insubordinação política mais direta viria com o tempo, ainda que com zigue-zagues. Mesmo assim, já em 1979 seu estilo de futebol era em si uma antítese da tecnocracia da ditadura que se auto-denominava Processo de Reorganização Nacional. O futebol-arte, transformando os estádios num Teatro Colón do povão, garantia a alegria, sequestrada pela planilha da ditadura que reduziu a economia a econometria. A felicidade, privatizada pela ditadura, era socializada pelo futebol-arte.
Martínez de Hoz, ministro da economia do Videla, foi uma prova de que liberalismo econômico e ditadura política costumam ser duas faces da mesma moeda. A privatização foi uma das principais cartas da política econômica da ditadura na Argentina, acarretando uma monumental desindustrialização. O estrago, terrível, só não foi maior porque o Yrigoyen e, sobretudo, o Perón haviam estabelecido importantíssimas bases de um projeto de soberania econômica argentina, com o auxílio imprescindível de pessoas como os generais Enrico Mosconi e Manuel Savio, fundamentais pra criação, respectivamente, da indústria do petróleo (notadamente com a Yacimientos Petrolíferos Fiscales, a YPF) e siderúrgica (notadamente com a Sociedad Mixta Siderúrgica Argentina, a Somisa) no país.
A ditadura política terminou em 1983, quando o imperialismo usamericano e dos seus sócios minoritários quis dar uma repaginada na ditadura do capital, mas a ditadura econômica, coração sem coração do capitalismo, continuou. Nos anos 1990, o Menem e o Domingo Cavallo, um Martínez de Hoz pós-queda do Muro de Berlim e que já havia servido à ditadura, concluíram a privatização da YPF, da Gas del Estado, da Somisa e de outros pilares do Estado nacional argentino. O Maradona foi um garoto-propaganda do Menem, facilitando, independentemente da sua intenção, o avanço avassalador do neoliberalismo. A privatização e o neoliberalismo pioraram de forma violentíssima a vida do povo argentino. O Maradona aprendeu com isso. Como havia aprendido com a arrogância do colonialismo inglês nas Malvinas. Passou a manter um discurso mais diretamente de esquerda e se aproximou de importantes lideranças desse campo (entedido de modo largo) como os Kirchner, Fidel Castro, Hugo Chávez e as Madres de Plaza de Mayo. Mas sobretudo, como em 1979, seu discurso com a bola nos pés era a mais forte mensagem contra a embalagem tecnocrática com a qual o liberalismo enche os bolsos de um punhado enquanto esvazia a barriga de legiões.
Retomarmos a Petrobrás e completarmos a vitória épica
No Brasil, onde a Petrobras, a Eletrobras, o Banco do Brasil e outros pilares do sonho de independência econômica estão sendo vorazmente privatizados, com o liberalismo utilizando mais uma vez o disfarce da técnica neutra, também é importante nos inspirarmos no futebol-arte. A tecnocracia precisa ser driblada. Precisa ser entortada pelo craque coletivo chamado povão. Precisamos entrar em campo. Jogar com alegria e raiva. Com inteligência e paixão. A explosão da torcida com o gol do título e a calma do Didi pegando a bola no fundo da rede e caminhando até o meio de campo pra iniciar a virada histórica. O inimigo está com o time em campo, jogando como uma máquina infernal e com o juiz comprado. Dá pontapé e entra com carrinho desleal. Faz tudo de modo milimetricamente calculado. Diz que o campo é neutro e que o importante é competir. Te chama de looser enquanto te ilude pra que você acredite que vencer é imitá-lo. Lembre que você é Diamante Negro. Lembre que o Ouro Negro é você. Se emocione com o duplo lema no lindo horizonte: o Maraca é nosso!, o petróleo é nosso! Lembre, apaixonado, que somos Libertadores da América. Lembre. Precisamos, juntos, derrotar os 24 de março que, com diversas roupas, insistem em manter abertas as veias da América Latina.
A Petrobrás foi criada a partir de uma luta refinada na campanha O petróleo é nosso. No clássico contra O petróleo é Esso, conquistamos uma vitória épica. Pra se ter uma idéia de como foi épica, lembremos que, no mesmo ano, 1953, um golpe patrocinado pela usamericana CIA e pelo inglês MI-6 derrubou o primeiro-ministro iraniano Mohammed Mossadegh pra desfazer a nacionalização do petróleo e do gás natural que ele havia empreendido. A nossa vitória foi imensa. E isso deve ser valorizado. Mas também incompleta. E isso tampouco deve ser esquecido. Incompleta, pois, entre outros problemas, a empresa já nasceu como S.A., os postos de gasolina nunca fizeram parte do monopólio estatal e o monopólio foi muito mais estatal do que popular. Num momento em que metade das refinarias da Petrobras, já muito privatizada, está à venda, precisamos lembrar que a Petrobrás foi criada pela luta popular pra que o nosso país tivesse soberania energética. Privatizá-la é aprofundar terrivelmente a submissão do Brasil no cenário mundial. É jogar ainda mais grande parte do povo na sarjeta. É entregar de bandeja uma das principais ferramentas pra construção de um Brasil em que, como canta o Zé Pinto, “a ordem é ninguém passar fome, progresso é o povo feliz”. Lutar contra essa privatização em curso é condição indispensável pruma Petrobrás do povo, integrada com uma Eletrobrás do povo, peça fundamental numa integração latino-americana controlada pelo povo. Mãos à obra.
Não há, ó, gente, ó, não, luta como essa do povão…
Antony Devalle é trabalhador da Petrobrás e integrante do grupo autônomo de trabalhadores petroleiros Inimigos do Rei. É um dos fundadores e editores do Portal Autônomo de Ciências.