Em tempos de pandemia, lugar de criança é na escola?

Por: Aline Ricci

Desde o dia 14 de março de 2020, as aulas presenciais nas escolas do estado do Rio de Janeiro estão suspensas por conta da pandemia. Essa medida foi adotada como forma de evitar a propagação do vírus e para proteger as crianças e adolescentes, suas famílias e os profissionais da educação. Porém, com a reabertura gradual dos estabelecimentos comerciais da cidade e com a flexibilização cada vez maior das medidas de segurança adotadas no início da pandemia, o debate sobre o retorno das aulas presenciais vem ganhando cada vez mais defensores. Essa defesa pelo retorno, nas ultimas semanas, tem sido mais contundente em relação à Educação Infantil.

Como professora de Educação Infantil da rede municipal do Rio, me preocupa o discurso e a pressão pelo retorno das aulas presenciais nas instituições de ensino, especificamente na Educação Infantil por se tratar de crianças tão pequenas. Entidades ligadas a esse segmento vieram a público recentemente expressar seus argumentos pela reabertura das unidades escolares. No dia 11 de setembro, no jornal Bom dia Rio da TV Globo, em matéria sobre a decisão da Justiça do Trabalho (TRT) que suspendeu a volta às aulas presenciais na rede particular do estado, a presidente da Associação Brasileira de Educação Infantil (Asbrei) fez uma fala que mostrou desconhecimento sobre a rotina, os princípios de trabalho na Educação Infantil e o impacto que esse retorno precoce pode causar. Em sua fala, o argumento utilizado para defender esse retorno é que “a recomendação da ciência para que haja uma proteção a todos aqueles que vão lidar com as crianças vão ser seguidas.” E as crianças? Como será para elas retornar às escolas nesse momento tendo que seguir tantas regras e restrições?

A presidente da Asbrei afirmou ainda que as crianças estão “ansiosas e deprimidas” por estarem em casa, porém não citou a fonte dessa informação. Como será que elas ficarão tendo que voltar às escolas e viver uma realidade completamente diferente da que estava acostumada? Esse retorno não será como de costume, voltando das férias, por exemplo. Segundo as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL, 2010), os eixos norteadores das práticas pedagógicas que compõem a proposta curricular da Educação Infantil são as interações e brincadeiras. Como interagir sem chegar perto? Como brincar sem poder partilhar, trocar, emprestar? 

Buscando informações sobre o retorno das aulas presenciais em outros países e no Brasil, encontrei uma matéria publicada pela BBC Brasil que trata da angustia das crianças na volta às aulas em tempos de pandemia. Na Dinamarca e na Alemanha, as crianças são mantidas em grupos pequenos, sem interação com outros. Esses grupos chegam em horários diferentes, realizam as refeições separadamente e têm aulas com apenas um professor. Como será que essas crianças se sentem sem poder chegar perto dos seus amigos? Helen Dodd, professora de psicologia infantil da Universidade de Reading, no Reino Unido, disse na reportagem que tentar implementar o distanciamento social será especialmente difícil entre crianças pequenas. “A única maneira seria impor práticas muito controladoras, e isso é ruim para a saúde mental das crianças”.

Além disso, países como França e Israel também enfrentam problemas em relação ao retorno das aulas presenciais. Em Israel, as escolas retornaram no período do verão, com temperaturas acima de 40 graus, bem semelhantes aos dias quentes de verão do Rio de Janeiro. Por causa disso, as medidas de prevenção foram amenizadas. Como consequência, tiveram aumento de contágio e foi necessário retornar ao isolamento de forma rigorosa.  Na França, foram fechadas mais de 80 escolas desde a retomada do ano letivo por causa dos novos casos de contaminação. Em Manaus, a primeira capital do país a retomar as aulas presenciais na rede estadual, apesar de afirmarem seguir todos os protocolos, profissionais da educação relataram sobrecarga de trabalho, medo do transporte coletivo lotado e descumprimento de regras por parte dos estudantes. Um mês após o retorno das aulas presencias, foram aplicados 3.140 testes rápidos nos profissionais da educação de Manaus, apresentando 922 resultados positivos para Covid-19. Desses, 229 estavam com infecções recentes.

Em matéria publicada pelo jornal DiáriodoRio.com, a presidente da Asbrei afirmou ter enviado em julho um manifesto à superintendência da Vigilância Sanitária Municipal pedindo a prefeitura que autorizasse o retorno das crianças até 6 anos às escolas. A entidade usou como argumento para o retorno um estudo publicado pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças, nos EUA, que mostra que crianças até 9 anos têm menos chances de transmitir o vírus por se contaminarem menos. Recentemente, Viviane Senna, empresária e presidente do Instituto Ayrton Senna, ONG de educação financiada por empresas privadas, veio a público em matéria publicada pela Folha de São Paulo defender o retorno das aulas presenciais no país usando argumento muito semelhante. A empresária afirmou também que a reabertura das escolas não agrava a pandemia.

Porém, um estudo publicado pela Fiocruz aponta que a retomada das aulas iria expor 600 mil pessoas ao risco de contágio. Essas pessoas seriam idosos ou adultos com alguma comorbidade e que vivem em lares com ao menos um menor em idade escolar e que poderiam ser infectados caso estas crianças e adolescentes se tornem vetores da doença. Ainda segundo a Fiocruz, a volta às aulas presenciais exige mais cuidado e preparo do que o retorno de setores como comércio e serviços, por exemplo, pois uma vez após o retorno, essas pessoas que podem desenvolver casos graves da doença e que convivem com os estudantes estariam fora do processo de isolamento social. Além disso, esse retorno presencial das aulas não envolve apenas as crianças, mas todas as outras pessoas que convivem com elas e que podem estar expostas ao risco. Isto inclui a comunidade escolar, que envolve os profissionais da educação, pessoas responsáveis pela limpeza e transporte, além de todos os que convivem com elas.

De acordo com informações do Censo Educacional de 2019, 38,7 milhões de crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos estudam nas redes federal, estaduais e municipais de educação e 9,1 milhão nas redes privadas. São 2,7 milhões de docentes e 2 milhões de profissionais de apoio à atividade educacional, ou seja, são 52,5 milhões de pessoas (1/4 da população). Sabemos que muitos profissionais da educação e os próprios estudantes utilizam transporte público para chegar às escolas; com a retomada das aulas, aumentará o fluxo de pessoas circulando pelas ruas. Os infectologistas alertam que o transporte público é um foco de contágio e quanto mais longa a viagem, em vagões cheios e fechados, maior o risco. “Ambiente fechado, aglomerado, sem ventilação, durante muito tempo e as pessoas com contato físico muito próximo, isso sim gera um cenário de preocupação.”, afirmou o infectologista Álvaro Furtado, em reportagem publicada no Jornal Nacional. Quem irá se responsabilizar por todas essas vidas em um possível retorno das aulas presenciais nesse momento?

No dia 13 de setembro, representantes dos estabelecimentos de Educação Infantil do Rio realizaram uma manifestação para cobrar a reabertura das escolas particulares. Segundo matéria do Jornal EXTRA, um grupo de cerca de 200 pessoas, incluindo donos de escolas, pais e crianças, participaram do ato carregando cartazes com dizeres como “lugar de criança é na escola”. Em plena pandemia, com o número de mortes no estado chegando a quase 18.000, de acordo com dados da Secretaria de Estado de Saúde (SES), nesse momento, lugar de criança realmente é na escola? Ainda na mesma reportagem, a presidente da Asbrei afirma que as escolas estão preparadas para o retorno, já tendo investido no treinamento de equipes e compra de equipamentos de proteção individuais (EPIs). Isso basta para afirmar que o retorno será seguro? O que é realmente necessário para garantir a vida e a segurança dessas crianças, suas famílias e dos profissionais da educação em um possível retorno às aulas presenciais?

A Educação Infantil atende crianças de 0 a 6 anos, são crianças muito pequenas e que precisam do auxílio de um adulto para realizar diferentes atividades e cuidados de rotina. Em tempos de pandemia, em que é necessária a higienização das mãos, dos espaços e objetos constantemente, como as crianças da Educação Infantil seguirão à risca essas recomendações? Como utilizar o álcool em gel, por exemplo, com autonomia, sempre que necessário, se a própria embalagem do produto orienta a se manter fora do alcance de crianças? Como os adultos poderão auxiliar as crianças tendo que manter 2 metros de distância delas? Além disso, os bebês e crianças pequenas costumam levar as mãos e objetos a boca constantemente, logo o higienizador para elas precisa ser sem álcool. Porém, sabemos que higienizador sem álcool não é eficiente em relação ao vírus. Como seria feito com essas crianças?

Vemos ainda como é difícil para os adultos utilizarem corretamente os EPIs, sendo comum encontrá-los nas ruas da cidade com a máscara pendurada nas orelhas, no queixo, ou desrespeitando o distanciamento necessário de outras pessoas. Imagina como será para crianças tão pequenas no espaço escolar? Caberia aos profissionais da educação fazer o papel de fiscalizador dessas regras em relação às crianças? Como isso afetaria a rotina na Educação Infantil? Dentre os elementos que compõem a rotina nesse segmento estão os horários de alimentação, higiene, rodas de conversa, atividades lúdicas, brincadeiras, contação de histórias, dentre outras. Todas essas atividades necessitam do contato direto entre adultos e crianças. Como fazer isso tendo que seguir tantos protocolos?

Outro argumento bastante utilizado em defesa do retorno às aulas na Educação Infantil é a necessidade das famílias em terem um lugar para deixar as crianças enquanto trabalham. Compreendo a necessidade da classe trabalhadora, principalmente das mulheres que necessitam de um espaço para que seus filhos e filhas permaneçam em segurança enquanto trabalham. Porém, essa é uma questão de políticas públicas e não uma função da escola. De qualquer forma, o retorno não dará garantias aos responsáveis da permanência da criança na unidade escolar, tendo em vista que funcionará com da sua capacidade e com sistema de rodízio.

Praticamente todos os argumentos apresentados por quem defende o retorno das aulas presenciais deixam claro que a preocupação não é com os estudantes. As crianças e adolescentes estão sendo usados, mas, na realidade, a preocupação dos representantes das escolas privadas é com os números: mensalidades, responsáveis tirando as crianças das escolas. No fim, o que mais importa, ao que parece, é fazer a “economia girar”. Diante do que foi exposto neste texto, está claro que os protocolos de segurança não contemplam as práticas, a rotina, os cuidados, muito menos as questões que envolvem a saúde emocional das crianças, das famílias e dos profissionais da educação. A necessidade de movimentar a economia não deve ser mais importante do que preservar vidas. Por isso, digo não ao retorno precoce das crianças às escolas. 

Aline Ricci é pedagoga, professora de educação infantil da rede municipal, especialista em educação infantil e mestre em educação.

Referências

BRASIL. Ministério da Educação. CNE/CEB. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil. Brasília, 2010.

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