No dia 2 de janeiro, um bombardeio dos Estados Unidos no aeroporto da capital iraquiana Bagdá matou o general Qassem Suleimani, chefe da Guarda Revolucionária Iraniana. Esse ato vai aumentar ainda mais a já grande tensão no chamado Oriente Médio (https://g1.globo.com/…/nao-passa-em-branco-ira-vai-dar-resp…). A Guarda Revolucionária faz mais parte do centro do poder no Irã do que as próprias forças armadas convencionais do país e o Suleimani era uma das pessoas mais importantes na estrutura de poder do Estado iraniano. Era um dos principais articuladores das ações geopolíticas do Irã, com grande influência na região, notadamente com o Hizbullah no Líbano, o Hamas na Faixa de Gaza (na Palestina), o Bashar Al-Assad na Síria, os houthis no Iêmen e com setores xiitas no Iraque. O Irã vai retaliar.
Esse bombardeio foi feito em parte como uma retaliação estadunidense à tomada parcial da embaixada usamericana em Bagdá (https://g1.globo.com/…/manifestantes-tentam-invadir-embaixa…), no último dia de 2019, por manifestantes armados, inclusive das Forças de Mobilização Popular iraquianas e de outros manifestantes desarmados, após uma marcha de protesto contra os Estados Unidos como invasor do país em geral e contra outro bombardeio feito pelos Estados Unidos no dia 29 de dezembro a bases do grupo armado iraquiano Kataib Hizbullah, apoiado pelo Irã, no próprio Iraque e na Síria, matando 25 pessoas. Por sua vez, esse bombardeio estadunidense havia sido uma retaliação a um ataque realizado contra uma base militar iraquiana que abriga tropas estadunidenses perto da região petrolífera de Kirkuk, que resultou na morte de um usamericano, apresentado como empreiteiro civil pela mídia mais diretamente mercantil, mas visto por críticos a esse discurso como um mercenário. Os Estados Unidos vêm acusando o Irã de estar por trás desses ataques e de outros contra as suas tropas no Iraque. Se é verdade que o Irã tem agido fora e dentro do território iraquiano pra influenciar cada vez mais os rumos desse país, pra que siga a sua política, que se beneficiou em certa medida da derrubada de Saddam Hussein pelos Estados Unidos e que isso descontenta uma parcela considerável dos iraquianos, também é verdade, e com ainda mais força, que os ataques estadunidenses e a presença invasora das suas tropas (tanto as militares quanto as executivas – ambas executam), que continua mesmo mais de 13 anos após a invasão que desarticulou completamente o país, enfurece muito o povo iraquiano.
Poder terrestre e poder naval
Nos últimos dias de dezembro de 2019, o Irã, a Rússia e a China fizeram um exercício militar naval conjunto no Golfo de Omã, perto do Estreito de Ormuz e até da Índia (https://oglobo.globo.com/…/ira-russia-china-realizam-exerci…). Esse exercício militar se soma a outros que vêm sendo relizados envolvendo a Rússia e a China, como sobretudo Vostok 2018 e Centro 2019, respectivamente na parte oriental e central da Rússia (cada um desses exercícios envolveu também vários outros países da região). Isso é parte da reorganização geopolítica mundial. Além de colocar mais dificuldades prum ataque ocidental contra o Irã, mostra que os Estados Unidos estão diante da maior concorrência geopolítica desde a Guerra Fria contra a União Soviética e que, nesse contexto, embora permaneçam fortíssimos, não detêm mais uma supremacia destacada no poder naval mundial. Considerando que duas das principais teorias geopolíticas são que, pra dominar o mundo (ou pra ser a principal força geopolítica no globo e evitar ser dominado), é preciso controlar a Eurásia ou controlar os oceanos, é interessante observar que a aliança Rússia-China tem avançado de forma muito significativa nos terrenos apontados por essas duas teorias. Algo que não deve ser esquecido é que o controle da energia é um elemento central em qualquer dessas duas teorias.
Nesse contexto, a cotação do barril de petróleo subiu cerca de 4% hoje (https://g1.globo.com/…/preco-do-petroleo-dispara-depois-da-…), após os Estados Unidos terem assassinado o Qassem Suleimani, chegando a 69 dólares. Mesmo patamar de logo após outro episódio ainda recente na Arábia Saudita. Mesmo considerando que os operadores do mercado de petróleo desenvolveram fórmulas pra precificar os diversos eventos, inclusive os geopolíticos (https://moneytimes.com.br/matematica-do-mercado-de-petrole…/), essas ferramentas, ao contrário do que quer a ilusão tecnocrática, são insuficientes pra prever realmente como ficará o preço dessa matéria-prima especialmente estratégica, não apenas porque, evidentemente, dependem das análises e previsões geopolíticas estarem corretas, mas também porque, entre outros fatores, não basta essas análises e previsões estarem corretas num formato de fotografia (têm que estar também num formato de filme). A ditadura ultra-liberal colonizante vigente no Brasil e na Petrobras impôs desde 2016 uma política que atrela os preços dos derivados de petróleo no país à cotação internacional do petróleo e do dólar, com vistas a favorecer países centrais do capitalismo mundial (o Brasil passou a importar grande quantidade de derivados dos Estados Unidos e colocou à venda mais da metade das refinarias da Petrobras) e prejudicando o povo trabalhador brasileiro, tende a fazer com que um aumento da cotação internacional do petróleo seja jogado sobre as costas do povo brasileiro.
O assassinato do Suleimani acontece num contexto de escalada da tensão na região
Os ataques contra o campo de petróleo de Khurais e a refinaria de Abqaiq (https://oglobo.globo.com/…/ataques-com-drones-central-petro…), da Saudi Aramco, gigantesca empresa estatal da Arábia Saudita, realizados no sábado 14 de setembro, acarretaram um significativo aumento do preço do barril do petróleo, que passou de 59 pra 69 dólares já na segunda 16 de setembro (17% em um dia de cotação). Esse
aumento decorreu, em parte, da suspensão da produção de aproximadamente 5,7 milhões de barris por dia na Arábia Saudita, o que equivale a cerca de metade da produção diária do país e de cerca de 5% da produção diária mundial de petróleo. A Arábia Saudita é um dos maiores produtores dessa matéria-prima especialmente estratégica, assim como detém uma das maiores reservas (com baixo custo de exploração), e é o maior exportador. A Saudi Aramco, empresa que obteve o maior lucro dentre todas as empresas no mundo em 2018
(https://g1.globo.com/…/empresa-de-petroleo-saudita-e-a-mais…),
apresenta a refinaria de Abqaiq, a maior do mundo, como um dos principais centros estabilizadores do fornecimento de petróleo no mundo e do preço do barril. Nos dias que se seguiram a essa alta, após o anúncio por parte da Arábia Saudita de que conseguiria retomar a mesma produção em breve, a cotação baixou, ainda que sem voltar ao patamar anterior. No final de setembro, a Saudi Aramco anunciou oficialmente que a sua produção de petróleo voltou ao patamar de antes dos ataques. Mas continuam sendo escritos os capítulos das tensões geopolíticas no chamado Oriente Médio e, de modo mais amplo, no pano de fundo mais geral, que é o conflito geopolítico pelo domínio do mundo, que envolve as potências atlantistas, com os Estados Unidos como principal pólo, e as potências eurasiáticas, cujo principal eixo são a Rússia e a China. Os conflitos regionais no Oriente Médio (e além, muitas vezes), ainda que guardem aspectos próprios, estão entrelaçados com esse pano de fundo mais geral.
Os ataques, feitos com drones e mísseis, foram assumidos pelo grupo houthi, um dos lados da guerra civil no Iêmen (https://g1.globo.com/…/no…/a-guerra-esquecida-do-iemen.ghtml), que tem suas origens mais diretas na chamada Primavera Árabe, em 2011, e começou em 2014, sendo que, a partir de 2015, a monarquia saudita, notadamente com o impulso do seu príncipe herdeiro, Muhammad bin Salman, também conhecido como MBS, um dos principais governantes do reino, organizou uma coalizão, que conta com armamentos dos Estados Unidos, da Inglaterra, da França e de outros países, inclusive o Brasil, pra tentar recolocar o Iêmen sob a sua influência. Essa guerra, sobre a qual pouco se fala, tem sido uma das principais catástrofes do mundo atualmente do ponto de vista humano, como relata a organização não-governamental Médicos sem Fronteiras (https://www.msf.org.br/projetos-msf/iemen). Essa guerra é também um conflito indireto entre duas das principais potências regionais, a Arábia Saudita e o Irã, que apóia os houthis, zaidistas, uma ramificação do xiismo, linha do islam adotada majoritariamente no Irã. Essa rivalidade é antiga e se alimenta, entre outros aspectos, da rivalidade entre o wahabbismo saudita, uma corrente (com duplo sentido) do sunismo, e o xiismo iraniano, e de um país ser árabe e o outro persa, mas se acentuou muito e realmente após a Revolução Iraniana de 1979 (https://www.nexojornal.com.br/…/As-origens-do-atual-poder-d…). Embora a revolução tenha sido feita por diversos setores sociais, parte deles laicos e de orientação socialista, os setores religiosos xiitas acabaram dominando o processo. Isso e, principalmente, o nacionalismo anti-ocidental revolucionário iraniano fizeram a Arábia Saudita, aliada estratégica dos Estados Unidos e do Ocidente em geral, se tornar mais diretamente inimiga do Irã.
A reorganização eurasiática fortalece o Irã
Os houthis têm motivos pra terem feito esses ataques. Fazer uma represália contra as atrocidades que o ditador saudita Muhammad bin Salman tem ordenado no Iêmen, conseguir alguma visibilidade pro conflito e mostrar certa vulnerabilidade da Arábia Saudita são alguns desses motivos. Mas, apesar disso e apesar de terem assumido a autoria, e apesar também do secretário de Estado dos Estados Unidos, Mike Pompeo, ter acusado o Irã de estar por trás desses ataques, nem o presidente estadunidense Donald Trump nem mesmo o MBS afirmaram, categoricamente, num primeiro momento, que o autor é o Irã. É intrigante que esses ataques tenham ocorrido poucos dias após o Trump ter demitido o John Bolton do cargo de assessor especial de segurança nacional. Bolton é um defensor de uma guerra contra o Irã e vinha subindo cada vez mais o tom desde que o Trump tirou unilateralmente os Estados Unidos do acordo sobre a questão nuclear iraniana e retomou sanções econômicas contra o país, em 2018, e ainda mais com os episódios de capturas de navios petroleiros no Estreito de Ormuz (https://g1.globo.com/…/reino-unido-considera-apreensao-de-n…), por onde passa cerca de 30% do comércio mundial de petróleo, e na colônia britânica de Gibraltar (https://g1.globo.com/…/eua-solicitam-apreensao-de-petroleir…), além do caso da derrubada de um drone militar dos Estados Unidos pelo Irã (https://g1.globo.com/…/ira-derrubou-drone-doseua-em-regiao-…). Foi montada uma comissão de investigação pelos Estados Unidos e pela Arábia Saudita em torno dos ataques ao campo de Khurais e à refinaria de Abqaiq. Alguns dias após os ataques, a Arábia Saudita está afirmando que tem evidências de terem sido feitos pelo Irã, que continua negando. Os Estados Unidos enviaram mais tropas pra Arábia Saudita. Mas, apesar de discursos belicosos, não houve propriamente um contra-ataque militar diretamente contra o Irã.
Os Estados Unidos sabem que, embora as forças armadas iranianas sejam menos poderosas do que as suas, elas têm muita força e o Irã tem um orgulho nacional bastante acentuado, além de ser apoiado pela Rússia e, em menor medida e de modo mais discreto, pela China. Uma guerra contra o Irã teria um desfecho muito difícil de prever. Os Estados Unidos ao mesmo tempo buscam desesperadamente essa guerra e fogem dela. A experiência na Síria, em que o Bashar Al-Assad, com o apoio da Rússia, conseguiu, por mais que os combates não tenham terminado, vencer a guerra civil contra o Estado (Anti-)Islâmico e diversos outros grupos apoiados pelo Ocidente, mostra que, no Irã, a batalha seria ainda muito mais dura. Que o Irã tenha ou não participação nos recentes ataques contra as instalações petrolíferas sauditas, eles mostram que uma guerra contra o Irã poderia acarretar muitos danos a aliados dos Estados Unidos na região e teria potencial pra desestabilizar o fornecimento de petróleo pro Ocidente.
Esses não foram os primeiros ataques contra a Arábia Saudita. Em 2006, por exemplo, houve um ataque, supostamente feito pela Al-Qaeda, à mesma refinaria de Abqaiq. Dois carros-bomba tentaram entrar na usina, sendo que foram impedidos e, apesar de um deles ter explodido, não causou danos às instalações (https://www.bbc.com/…/02/060225_ataquesauditaalqaedarw.shtml). As relações entre o Reino Saudita e a Al-Qaeda parecem controversas. Parece haver ao mesmo tempo cumplicidade e disputa entre eles. A excessiva proximidade da Arábia Saudita com os Estados Unidos, ainda mais que os Estados Unidos se envolveram e ainda estão envolvidos em muitas guerras contra países árabes e alimentam a islamofobia, explorando os povos desses países, gera grande insatisfação em vastos setores do mundo árabe e do mundo muçulmano. Na disputa pela liderança do mundo muçulmano, mesmo a Arábia Saudita buscando se valer de abrigar Meca, uma das principais cidades sagradas do islam, local do hajj (peregrinação que é um dos 5 pilares do islam), mesmo ela tentando manter um discurso de que é natural que seja a principal liderança do mundo muçulmano, a sua aliança estreita com os Estados Unidos (e, cada vez mais, também com Israel) fortalece o discurso iraniano junto a vastos setores. Além do discurso atual da Turquia, que também busca a liderança do mundo muçulmano.
Os Estados Unidos buscam estrangular a economia iraniana com a política de sanções. Realmente, o Irã, que tem uma das maiores reservas de petróleo do mundo e mais ainda de gás natural, depende bastante desses produtos pra sua economia. Entretanto, o cerco tem aproximado os diversos setores de poder no Irã em torno da defesa nacional. O Irã não vai aceitar passivamente que a sua indústria do petróleo e do gás natural não possa ser utilizada pra desenvolver o país.
A geopolítica no preço do barril de petróleo
Durante pouco mais do que a primeira década dos anos 2000, o preço do barril de petróleo aumentou muito, chegando a mais de 130 dólares. Porém, a partir, sobretudo, de 2012, começou a cair sensivelmente. Baixou a menos de 30 dólares. Essa acentuada queda se deveu a alguns fatores, como a desaceleração do crescimento chinês, que afeta, em grande medida, o ritmo de crescimento da economia mundial, a grande oferta de petróleo em nível mundial, a volta do Irã ao mercado mundial de petróleo, em 2015, com o fim das sanções anteriores, o que influenciou a Arábia Saudita a não abaixar a sua cota de produção e, assim, a que a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) tampouco abaixasse a sua produção de conjunto, e a um jogo de interesses envolvendo, sobretudo, os Estados Unidos e a Arábia Saudita, que consistia no seguinte: pra Arábia Saudita, era interessante um preço do barril baixo durante um tempo pra dificultar a concorrência do óleo de xisto (principalmente dos Estados Unidos), e a retomada do Irã, enquanto pros Estados Unidos o preço baixo era interessante pra afetar a economia e, a partir daí, a política de países como a Rússia, a Venezuela e o Irã, grandes exportadores de petróleo que não têm se alinhado a Washington-Wall Street, e até o Brasil, que, embora sem sair da órbita estadunidense, estava se aproximando da Rússia, da China, da Índia e até do Irã, no contexto dos Brics (no caso do Brasil, um objetivo crucial estadunidense era pisar no acelerador da privatização da Petrobras e das reservas de óleo e gás). Outro dividendo buscado pela Arábia Saudita nesse jogo de interesses era um apoio ainda maior por parte dos Estados Unidos. Mas, como a economia da Arábia Saudita ainda é pouco diversficada e, apesar do reino dispor de muito dinheiro, o que lhe permitia aguentar um preço baixo do barril durante alguns anos, os estrategistas do reino sabiam que a estabilidade do seu poder dependia também do preço do barril não ficar tanto tempo tão baixo. Afinal, é a partir da renda do petróleo que o governo consegue manter um padrão de vida material bastante elevado pruma parcela razoável da população, apesar das desigualdades. É também por meio da renda petroleira que o reino pretende pôr em prática o seu plano de diversificação econômica chamado Visão 2030 (https://www.cartacapital.com.br/…/a-arabia-saudita-busca-u…/). Faz parte desse plano a oferta pública inicial de ações (IPO, na sigla em inglês, como é mais conhecida) de 1,5% da Saudi Aramco, realizada em dezembro do ano passado (https://g1.globo.com/…/aramco-precifica-acoes-no-topo-da-fa…). A idéia é que os recursos obtidos sejam aplicados num fundo soberano do reino. Tendo isso em vista, a Arábia Saudita aceitou a proposta russa de corte na produção, em 2017, e, desde então, os dois países vêm fazendo ajustes finos na sua política de preços, com vistas a manter os preços do barril flutuando num patamar em que, ao mesmo tempo, possam obter uma grande arrecadação com a exportação de petróleo (e derivados) e dificultar a concorrência do óleo não-convencional (https://oglobo.globo.com/…/russia-arabia-saudita-prorrogam-…).
E a Petrobras e o Brasil?
Ainda que, logo no primeiro momento após os ataques, a hierarquia privatista da Petrobras não tenha aumentado os preços dos combustíveis, por querer ver como seria a evolução da cotação do barril nos dias seguintes e pra disfarçar um pouco que a privatização ainda mais completa da empresa vai significar diesel mais caro e, conseqüentemente, comida mais cara e, portanto, vida mais difícil pro povão, essa hierarquia aumentou os preços em seguida. O editorial do Globo de 20 de setembro, intitulado Devem-se evitar intervenções nos preços da Petrobras (https://oglobo.globo.com/…/devem-se-evitar-intervencoes-nos…), mostra a relação da atual política de preços da Petrobras com o aprofundamento aceleradíssimo da privatização da empresa. O trecho “sem que os preços internos reflitam o mercado internacional de petróleo, não haverá interesse dos grupos privados em adquirir refinarias e entrar de maneira firme no setor de gás [e] pra isso é preciso dar garantia de estabilidade regulatória aos investidores” é cristalino nesse sentido.
Nesse cenário, o Brasil se tornou especialmente estratégico. Ainda mais estratégico do que já era. Com as imensas reservas do pré-sal, com o entreguismo dominando, com uma resistência enfraquecida, com elites colonizadas, impulsionando a gigantesca ofensiva ultra-liberal capitalista, o país é um prato cheio pras grandes transnacionais da área de energia, que estão abocanhando todo o sistema Petrobras. Se houver, em algum grau, um novo choque do petróleo, em função de uma guerra envolvendo o Irã, o dócil Brasil colonizado, com a Petrobras cada vez mais privatizada, vai garantir facilmente parte importante do suprimento energético dos países centrais do capitalismo mundial, especialmente do bloco comandado pelos Estados Unidos, além de lucros fenomenais. Pra conseguir garantir o seu suprimento a partir do Oriente Médio, os Estados Unidos (e seus aliados ocidentais) precisam gastar muito dinheiro e se desgastar muito em guerras, enquanto com o Brasil é molezinha. O aprofundamento aceleradíssimo da privatização da Petrobras, que é um processo no qual a empresa também vai sendo esquartejada, equivale a uma guerra contra o povo brasileiro, contra a possibilidade do povo trabalhador brasileiro dispor, de conjunto, de uma vida digna. Os trabalhadores do sistema Petrobras têm diante de si provavelmente uma das últimas chances de evitar uma privatização ainda mais completa da empresa. Se não agirem, se aceitarem que se consuma a privatização (mais) completa da empresa, não “apenas” estarão, em sua maioria, assinando a sua demissão, mas também, e sobretudo, cumprindo um papel vergonhoso de cúmplices, na prática, da destruição do Brasil. Muitos ajudaram a fazer a melhor embalagem pro discurso privatista, pra qual o discurso tecnocrático foi uma fita dourada hipnotizadora, muitos vestiram os jalecos nos laboratórios da usina 3.0 em que o lubrificante discursivo tecnocrático era aprimorado pra convencer cada vez mais pessoas, muitos se esconderam atrás de gráficos utilizados como armas do mito da neutralidade da técnica pra torturar vozes críticas e disseram que estavam apenas fazendo o seu trabalho. Uma outra grande parcela, que tem uma interseção com a anterior, está com medo, e é compreensível. Mas se, apesar do medo, não se juntarem aos que já lutam mais diretamente (mesmo com medo), inclusive com uma greve, que busque atacar especialmente a destruição da Petrobras, os petroleiros estarão condenando as futuras gerações a (sobre)viver num país ainda muito mais colonizado e muito mais desigual. Seria ingênuo acreditar que não há riscos ao lutar mais diretamente, mas não agir é perder de antemão, sem nem colocar o time em campo. Se as refinarias forem vendidas, se outros campos de petróleo e de gás forem vendidos, se os terminais terrestres e aquaviários forem vendidos, se a Transpetro como um todo for vendida, se continuar a venda desenfreada de ativos, se a política de redução de pessoal (ou seja, de demissão em massa) não for detida e por aí vai, a força de uma greve será muito menor. E esse cenário está se aproximando de forma muito veloz. Portanto, é urgente que uma luta mais direta seja feita.
Em vez de se alinhar ainda mais automaticamente aos Estados Unidos (mesmo que se vendendo também pra China e pra quem mais quiser e puder comprar a nossa infra-estrutura), o Brasil e a Petrobras deveriam buscar uma posição mais autônoma no xadrez da geopolítica mundial, ainda mais diante do cenário de fundo, que é a luta imensa e de longa duração entre as potências da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e as potências eurasiáticas. Por mais que as potências atlantistas continuem tentando fazer um cerco à Rússia, por exemplo, ela tem conseguido superar o desastre que foi o ultra-liberalismo entreguista da década de 1990 após o fim da União Soviética, e, numa aliança estratégica com a China, tem conseguido ampliar o poder eurasiático. Nesse contexto, a Turquia, membro da Otan, apesar de continuar o seu tradicional jogo em mais de um tabuleiro da geopolítica, tem se aproximado da Rússia. A compra de sistemas de defesa anti-aérea russos pela Turquia, mesmo em meio a ameaças por parte dos Estados Unidos, é uma prova disso (https://g1.globo.com/…/turquia-comeca-a-receber-misseis-da-…). E a aliança China-Rússia (https://g1.globo.com/…/como-aproximacao-sem-precedentes-ent…) tem aprofundado a sua parceria no campo energético, assim como os esforços pra construir uma alternativa ao dólar, inclusive aumentando significativamente as suas reservas de ouro, tanto em si quanto em termos do percentual em relação ao total de reservas de ouro pra lastro financeiro no mundo. A disputa pela hegemonia mundial está longe de ser definida, mas a longa duração parece estar mais favorável pra China (e pra Eurásia). Enquanto isso, o Brasil continua não apenas sem um projeto de construção nacional, mas também com um projeto de destruição nacional. A privatização mais completa de uma Petrobras esquartejada é central nisso. E o Brasil, diferentemente da Rússia, não dispõe de um poder militar capaz de lhe dar mais margem de manobra pra reconstruir um projeto nacional. Isso torna ainda mais importante não desperdiçar o que provavelmente é uma das últimas oportunidades de evitar a privatização ainda mais completa da Petrobras. Se não, que ferramenta o Brasil vai ter pra sair das ruínas?
Esse bombardeio foi feito em parte como uma retaliação estadunidense à tomada parcial da embaixada usamericana em Bagdá (https://g1.globo.com/…/manifestantes-tentam-invadir-embaixa…), no último dia de 2019, por manifestantes armados, inclusive das Forças de Mobilização Popular iraquianas e de outros manifestantes desarmados, após uma marcha de protesto contra os Estados Unidos como invasor do país em geral e contra outro bombardeio feito pelos Estados Unidos no dia 29 de dezembro a bases do grupo armado iraquiano Kataib Hizbullah, apoiado pelo Irã, no próprio Iraque e na Síria, matando 25 pessoas. Por sua vez, esse bombardeio estadunidense havia sido uma retaliação a um ataque realizado contra uma base militar iraquiana que abriga tropas estadunidenses perto da região petrolífera de Kirkuk, que resultou na morte de um usamericano, apresentado como empreiteiro civil pela mídia mais diretamente mercantil, mas visto por críticos a esse discurso como um mercenário. Os Estados Unidos vêm acusando o Irã de estar por trás desses ataques e de outros contra as suas tropas no Iraque. Se é verdade que o Irã tem agido fora e dentro do território iraquiano pra influenciar cada vez mais os rumos desse país, pra que siga a sua política, que se beneficiou em certa medida da derrubada de Saddam Hussein pelos Estados Unidos e que isso descontenta uma parcela considerável dos iraquianos, também é verdade, e com ainda mais força, que os ataques estadunidenses e a presença invasora das suas tropas (tanto as militares quanto as executivas – ambas executam), que continua mesmo mais de 13 anos após a invasão que desarticulou completamente o país, enfurece muito o povo iraquiano.
Poder terrestre e poder naval
Nos últimos dias de dezembro de 2019, o Irã, a Rússia e a China fizeram um exercício militar naval conjunto no Golfo de Omã, perto do Estreito de Ormuz e até da Índia (https://oglobo.globo.com/…/ira-russia-china-realizam-exerci…). Esse exercício militar se soma a outros que vêm sendo relizados envolvendo a Rússia e a China, como sobretudo Vostok 2018 e Centro 2019, respectivamente na parte oriental e central da Rússia (cada um desses exercícios envolveu também vários outros países da região). Isso é parte da reorganização geopolítica mundial. Além de colocar mais dificuldades prum ataque ocidental contra o Irã, mostra que os Estados Unidos estão diante da maior concorrência geopolítica desde a Guerra Fria contra a União Soviética e que, nesse contexto, embora permaneçam fortíssimos, não detêm mais uma supremacia destacada no poder naval mundial. Considerando que duas das principais teorias geopolíticas são que, pra dominar o mundo (ou pra ser a principal força geopolítica no globo e evitar ser dominado), é preciso controlar a Eurásia ou controlar os oceanos, é interessante observar que a aliança Rússia-China tem avançado de forma muito significativa nos terrenos apontados por essas duas teorias. Algo que não deve ser esquecido é que o controle da energia é um elemento central em qualquer dessas duas teorias.
Nesse contexto, a cotação do barril de petróleo subiu cerca de 4% hoje (https://g1.globo.com/…/preco-do-petroleo-dispara-depois-da-…), após os Estados Unidos terem assassinado o Qassem Suleimani, chegando a 69 dólares. Mesmo patamar de logo após outro episódio ainda recente na Arábia Saudita. Mesmo considerando que os operadores do mercado de petróleo desenvolveram fórmulas pra precificar os diversos eventos, inclusive os geopolíticos (https://moneytimes.com.br/matematica-do-mercado-de-petrole…/), essas ferramentas, ao contrário do que quer a ilusão tecnocrática, são insuficientes pra prever realmente como ficará o preço dessa matéria-prima especialmente estratégica, não apenas porque, evidentemente, dependem das análises e previsões geopolíticas estarem corretas, mas também porque, entre outros fatores, não basta essas análises e previsões estarem corretas num formato de fotografia (têm que estar também num formato de filme). A ditadura ultra-liberal colonizante vigente no Brasil e na Petrobras impôs desde 2016 uma política que atrela os preços dos derivados de petróleo no país à cotação internacional do petróleo e do dólar, com vistas a favorecer países centrais do capitalismo mundial (o Brasil passou a importar grande quantidade de derivados dos Estados Unidos e colocou à venda mais da metade das refinarias da Petrobras) e prejudicando o povo trabalhador brasileiro, tende a fazer com que um aumento da cotação internacional do petróleo seja jogado sobre as costas do povo brasileiro.
O assassinato do Suleimani acontece num contexto de escalada da tensão na região
Os ataques contra o campo de petróleo de Khurais e a refinaria de Abqaiq (https://oglobo.globo.com/…/ataques-com-drones-central-petro…), da Saudi Aramco, gigantesca empresa estatal da Arábia Saudita, realizados no sábado 14 de setembro, acarretaram um significativo aumento do preço do barril do petróleo, que passou de 59 pra 69 dólares já na segunda 16 de setembro (17% em um dia de cotação). Esse
aumento decorreu, em parte, da suspensão da produção de aproximadamente 5,7 milhões de barris por dia na Arábia Saudita, o que equivale a cerca de metade da produção diária do país e de cerca de 5% da produção diária mundial de petróleo. A Arábia Saudita é um dos maiores produtores dessa matéria-prima especialmente estratégica, assim como detém uma das maiores reservas (com baixo custo de exploração), e é o maior exportador. A Saudi Aramco, empresa que obteve o maior lucro dentre todas as empresas no mundo em 2018
(https://g1.globo.com/…/empresa-de-petroleo-saudita-e-a-mais…),
apresenta a refinaria de Abqaiq, a maior do mundo, como um dos principais centros estabilizadores do fornecimento de petróleo no mundo e do preço do barril. Nos dias que se seguiram a essa alta, após o anúncio por parte da Arábia Saudita de que conseguiria retomar a mesma produção em breve, a cotação baixou, ainda que sem voltar ao patamar anterior. No final de setembro, a Saudi Aramco anunciou oficialmente que a sua produção de petróleo voltou ao patamar de antes dos ataques. Mas continuam sendo escritos os capítulos das tensões geopolíticas no chamado Oriente Médio e, de modo mais amplo, no pano de fundo mais geral, que é o conflito geopolítico pelo domínio do mundo, que envolve as potências atlantistas, com os Estados Unidos como principal pólo, e as potências eurasiáticas, cujo principal eixo são a Rússia e a China. Os conflitos regionais no Oriente Médio (e além, muitas vezes), ainda que guardem aspectos próprios, estão entrelaçados com esse pano de fundo mais geral.
Os ataques, feitos com drones e mísseis, foram assumidos pelo grupo houthi, um dos lados da guerra civil no Iêmen (https://g1.globo.com/…/no…/a-guerra-esquecida-do-iemen.ghtml), que tem suas origens mais diretas na chamada Primavera Árabe, em 2011, e começou em 2014, sendo que, a partir de 2015, a monarquia saudita, notadamente com o impulso do seu príncipe herdeiro, Muhammad bin Salman, também conhecido como MBS, um dos principais governantes do reino, organizou uma coalizão, que conta com armamentos dos Estados Unidos, da Inglaterra, da França e de outros países, inclusive o Brasil, pra tentar recolocar o Iêmen sob a sua influência. Essa guerra, sobre a qual pouco se fala, tem sido uma das principais catástrofes do mundo atualmente do ponto de vista humano, como relata a organização não-governamental Médicos sem Fronteiras (https://www.msf.org.br/projetos-msf/iemen). Essa guerra é também um conflito indireto entre duas das principais potências regionais, a Arábia Saudita e o Irã, que apóia os houthis, zaidistas, uma ramificação do xiismo, linha do islam adotada majoritariamente no Irã. Essa rivalidade é antiga e se alimenta, entre outros aspectos, da rivalidade entre o wahabbismo saudita, uma corrente (com duplo sentido) do sunismo, e o xiismo iraniano, e de um país ser árabe e o outro persa, mas se acentuou muito e realmente após a Revolução Iraniana de 1979 (https://www.nexojornal.com.br/…/As-origens-do-atual-poder-d…). Embora a revolução tenha sido feita por diversos setores sociais, parte deles laicos e de orientação socialista, os setores religiosos xiitas acabaram dominando o processo. Isso e, principalmente, o nacionalismo anti-ocidental revolucionário iraniano fizeram a Arábia Saudita, aliada estratégica dos Estados Unidos e do Ocidente em geral, se tornar mais diretamente inimiga do Irã.
A reorganização eurasiática fortalece o Irã
Os houthis têm motivos pra terem feito esses ataques. Fazer uma represália contra as atrocidades que o ditador saudita Muhammad bin Salman tem ordenado no Iêmen, conseguir alguma visibilidade pro conflito e mostrar certa vulnerabilidade da Arábia Saudita são alguns desses motivos. Mas, apesar disso e apesar de terem assumido a autoria, e apesar também do secretário de Estado dos Estados Unidos, Mike Pompeo, ter acusado o Irã de estar por trás desses ataques, nem o presidente estadunidense Donald Trump nem mesmo o MBS afirmaram, categoricamente, num primeiro momento, que o autor é o Irã. É intrigante que esses ataques tenham ocorrido poucos dias após o Trump ter demitido o John Bolton do cargo de assessor especial de segurança nacional. Bolton é um defensor de uma guerra contra o Irã e vinha subindo cada vez mais o tom desde que o Trump tirou unilateralmente os Estados Unidos do acordo sobre a questão nuclear iraniana e retomou sanções econômicas contra o país, em 2018, e ainda mais com os episódios de capturas de navios petroleiros no Estreito de Ormuz (https://g1.globo.com/…/reino-unido-considera-apreensao-de-n…), por onde passa cerca de 30% do comércio mundial de petróleo, e na colônia britânica de Gibraltar (https://g1.globo.com/…/eua-solicitam-apreensao-de-petroleir…), além do caso da derrubada de um drone militar dos Estados Unidos pelo Irã (https://g1.globo.com/…/ira-derrubou-drone-doseua-em-regiao-…). Foi montada uma comissão de investigação pelos Estados Unidos e pela Arábia Saudita em torno dos ataques ao campo de Khurais e à refinaria de Abqaiq. Alguns dias após os ataques, a Arábia Saudita está afirmando que tem evidências de terem sido feitos pelo Irã, que continua negando. Os Estados Unidos enviaram mais tropas pra Arábia Saudita. Mas, apesar de discursos belicosos, não houve propriamente um contra-ataque militar diretamente contra o Irã.
Os Estados Unidos sabem que, embora as forças armadas iranianas sejam menos poderosas do que as suas, elas têm muita força e o Irã tem um orgulho nacional bastante acentuado, além de ser apoiado pela Rússia e, em menor medida e de modo mais discreto, pela China. Uma guerra contra o Irã teria um desfecho muito difícil de prever. Os Estados Unidos ao mesmo tempo buscam desesperadamente essa guerra e fogem dela. A experiência na Síria, em que o Bashar Al-Assad, com o apoio da Rússia, conseguiu, por mais que os combates não tenham terminado, vencer a guerra civil contra o Estado (Anti-)Islâmico e diversos outros grupos apoiados pelo Ocidente, mostra que, no Irã, a batalha seria ainda muito mais dura. Que o Irã tenha ou não participação nos recentes ataques contra as instalações petrolíferas sauditas, eles mostram que uma guerra contra o Irã poderia acarretar muitos danos a aliados dos Estados Unidos na região e teria potencial pra desestabilizar o fornecimento de petróleo pro Ocidente.
Esses não foram os primeiros ataques contra a Arábia Saudita. Em 2006, por exemplo, houve um ataque, supostamente feito pela Al-Qaeda, à mesma refinaria de Abqaiq. Dois carros-bomba tentaram entrar na usina, sendo que foram impedidos e, apesar de um deles ter explodido, não causou danos às instalações (https://www.bbc.com/…/02/060225_ataquesauditaalqaedarw.shtml). As relações entre o Reino Saudita e a Al-Qaeda parecem controversas. Parece haver ao mesmo tempo cumplicidade e disputa entre eles. A excessiva proximidade da Arábia Saudita com os Estados Unidos, ainda mais que os Estados Unidos se envolveram e ainda estão envolvidos em muitas guerras contra países árabes e alimentam a islamofobia, explorando os povos desses países, gera grande insatisfação em vastos setores do mundo árabe e do mundo muçulmano. Na disputa pela liderança do mundo muçulmano, mesmo a Arábia Saudita buscando se valer de abrigar Meca, uma das principais cidades sagradas do islam, local do hajj (peregrinação que é um dos 5 pilares do islam), mesmo ela tentando manter um discurso de que é natural que seja a principal liderança do mundo muçulmano, a sua aliança estreita com os Estados Unidos (e, cada vez mais, também com Israel) fortalece o discurso iraniano junto a vastos setores. Além do discurso atual da Turquia, que também busca a liderança do mundo muçulmano.
Os Estados Unidos buscam estrangular a economia iraniana com a política de sanções. Realmente, o Irã, que tem uma das maiores reservas de petróleo do mundo e mais ainda de gás natural, depende bastante desses produtos pra sua economia. Entretanto, o cerco tem aproximado os diversos setores de poder no Irã em torno da defesa nacional. O Irã não vai aceitar passivamente que a sua indústria do petróleo e do gás natural não possa ser utilizada pra desenvolver o país.
A geopolítica no preço do barril de petróleo
Durante pouco mais do que a primeira década dos anos 2000, o preço do barril de petróleo aumentou muito, chegando a mais de 130 dólares. Porém, a partir, sobretudo, de 2012, começou a cair sensivelmente. Baixou a menos de 30 dólares. Essa acentuada queda se deveu a alguns fatores, como a desaceleração do crescimento chinês, que afeta, em grande medida, o ritmo de crescimento da economia mundial, a grande oferta de petróleo em nível mundial, a volta do Irã ao mercado mundial de petróleo, em 2015, com o fim das sanções anteriores, o que influenciou a Arábia Saudita a não abaixar a sua cota de produção e, assim, a que a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) tampouco abaixasse a sua produção de conjunto, e a um jogo de interesses envolvendo, sobretudo, os Estados Unidos e a Arábia Saudita, que consistia no seguinte: pra Arábia Saudita, era interessante um preço do barril baixo durante um tempo pra dificultar a concorrência do óleo de xisto (principalmente dos Estados Unidos), e a retomada do Irã, enquanto pros Estados Unidos o preço baixo era interessante pra afetar a economia e, a partir daí, a política de países como a Rússia, a Venezuela e o Irã, grandes exportadores de petróleo que não têm se alinhado a Washington-Wall Street, e até o Brasil, que, embora sem sair da órbita estadunidense, estava se aproximando da Rússia, da China, da Índia e até do Irã, no contexto dos Brics (no caso do Brasil, um objetivo crucial estadunidense era pisar no acelerador da privatização da Petrobras e das reservas de óleo e gás). Outro dividendo buscado pela Arábia Saudita nesse jogo de interesses era um apoio ainda maior por parte dos Estados Unidos. Mas, como a economia da Arábia Saudita ainda é pouco diversficada e, apesar do reino dispor de muito dinheiro, o que lhe permitia aguentar um preço baixo do barril durante alguns anos, os estrategistas do reino sabiam que a estabilidade do seu poder dependia também do preço do barril não ficar tanto tempo tão baixo. Afinal, é a partir da renda do petróleo que o governo consegue manter um padrão de vida material bastante elevado pruma parcela razoável da população, apesar das desigualdades. É também por meio da renda petroleira que o reino pretende pôr em prática o seu plano de diversificação econômica chamado Visão 2030 (https://www.cartacapital.com.br/…/a-arabia-saudita-busca-u…/). Faz parte desse plano a oferta pública inicial de ações (IPO, na sigla em inglês, como é mais conhecida) de 1,5% da Saudi Aramco, realizada em dezembro do ano passado (https://g1.globo.com/…/aramco-precifica-acoes-no-topo-da-fa…). A idéia é que os recursos obtidos sejam aplicados num fundo soberano do reino. Tendo isso em vista, a Arábia Saudita aceitou a proposta russa de corte na produção, em 2017, e, desde então, os dois países vêm fazendo ajustes finos na sua política de preços, com vistas a manter os preços do barril flutuando num patamar em que, ao mesmo tempo, possam obter uma grande arrecadação com a exportação de petróleo (e derivados) e dificultar a concorrência do óleo não-convencional (https://oglobo.globo.com/…/russia-arabia-saudita-prorrogam-…).
E a Petrobras e o Brasil?
Ainda que, logo no primeiro momento após os ataques, a hierarquia privatista da Petrobras não tenha aumentado os preços dos combustíveis, por querer ver como seria a evolução da cotação do barril nos dias seguintes e pra disfarçar um pouco que a privatização ainda mais completa da empresa vai significar diesel mais caro e, conseqüentemente, comida mais cara e, portanto, vida mais difícil pro povão, essa hierarquia aumentou os preços em seguida. O editorial do Globo de 20 de setembro, intitulado Devem-se evitar intervenções nos preços da Petrobras (https://oglobo.globo.com/…/devem-se-evitar-intervencoes-nos…), mostra a relação da atual política de preços da Petrobras com o aprofundamento aceleradíssimo da privatização da empresa. O trecho “sem que os preços internos reflitam o mercado internacional de petróleo, não haverá interesse dos grupos privados em adquirir refinarias e entrar de maneira firme no setor de gás [e] pra isso é preciso dar garantia de estabilidade regulatória aos investidores” é cristalino nesse sentido.
Nesse cenário, o Brasil se tornou especialmente estratégico. Ainda mais estratégico do que já era. Com as imensas reservas do pré-sal, com o entreguismo dominando, com uma resistência enfraquecida, com elites colonizadas, impulsionando a gigantesca ofensiva ultra-liberal capitalista, o país é um prato cheio pras grandes transnacionais da área de energia, que estão abocanhando todo o sistema Petrobras. Se houver, em algum grau, um novo choque do petróleo, em função de uma guerra envolvendo o Irã, o dócil Brasil colonizado, com a Petrobras cada vez mais privatizada, vai garantir facilmente parte importante do suprimento energético dos países centrais do capitalismo mundial, especialmente do bloco comandado pelos Estados Unidos, além de lucros fenomenais. Pra conseguir garantir o seu suprimento a partir do Oriente Médio, os Estados Unidos (e seus aliados ocidentais) precisam gastar muito dinheiro e se desgastar muito em guerras, enquanto com o Brasil é molezinha. O aprofundamento aceleradíssimo da privatização da Petrobras, que é um processo no qual a empresa também vai sendo esquartejada, equivale a uma guerra contra o povo brasileiro, contra a possibilidade do povo trabalhador brasileiro dispor, de conjunto, de uma vida digna. Os trabalhadores do sistema Petrobras têm diante de si provavelmente uma das últimas chances de evitar uma privatização ainda mais completa da empresa. Se não agirem, se aceitarem que se consuma a privatização (mais) completa da empresa, não “apenas” estarão, em sua maioria, assinando a sua demissão, mas também, e sobretudo, cumprindo um papel vergonhoso de cúmplices, na prática, da destruição do Brasil. Muitos ajudaram a fazer a melhor embalagem pro discurso privatista, pra qual o discurso tecnocrático foi uma fita dourada hipnotizadora, muitos vestiram os jalecos nos laboratórios da usina 3.0 em que o lubrificante discursivo tecnocrático era aprimorado pra convencer cada vez mais pessoas, muitos se esconderam atrás de gráficos utilizados como armas do mito da neutralidade da técnica pra torturar vozes críticas e disseram que estavam apenas fazendo o seu trabalho. Uma outra grande parcela, que tem uma interseção com a anterior, está com medo, e é compreensível. Mas se, apesar do medo, não se juntarem aos que já lutam mais diretamente (mesmo com medo), inclusive com uma greve, que busque atacar especialmente a destruição da Petrobras, os petroleiros estarão condenando as futuras gerações a (sobre)viver num país ainda muito mais colonizado e muito mais desigual. Seria ingênuo acreditar que não há riscos ao lutar mais diretamente, mas não agir é perder de antemão, sem nem colocar o time em campo. Se as refinarias forem vendidas, se outros campos de petróleo e de gás forem vendidos, se os terminais terrestres e aquaviários forem vendidos, se a Transpetro como um todo for vendida, se continuar a venda desenfreada de ativos, se a política de redução de pessoal (ou seja, de demissão em massa) não for detida e por aí vai, a força de uma greve será muito menor. E esse cenário está se aproximando de forma muito veloz. Portanto, é urgente que uma luta mais direta seja feita.
Em vez de se alinhar ainda mais automaticamente aos Estados Unidos (mesmo que se vendendo também pra China e pra quem mais quiser e puder comprar a nossa infra-estrutura), o Brasil e a Petrobras deveriam buscar uma posição mais autônoma no xadrez da geopolítica mundial, ainda mais diante do cenário de fundo, que é a luta imensa e de longa duração entre as potências da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e as potências eurasiáticas. Por mais que as potências atlantistas continuem tentando fazer um cerco à Rússia, por exemplo, ela tem conseguido superar o desastre que foi o ultra-liberalismo entreguista da década de 1990 após o fim da União Soviética, e, numa aliança estratégica com a China, tem conseguido ampliar o poder eurasiático. Nesse contexto, a Turquia, membro da Otan, apesar de continuar o seu tradicional jogo em mais de um tabuleiro da geopolítica, tem se aproximado da Rússia. A compra de sistemas de defesa anti-aérea russos pela Turquia, mesmo em meio a ameaças por parte dos Estados Unidos, é uma prova disso (https://g1.globo.com/…/turquia-comeca-a-receber-misseis-da-…). E a aliança China-Rússia (https://g1.globo.com/…/como-aproximacao-sem-precedentes-ent…) tem aprofundado a sua parceria no campo energético, assim como os esforços pra construir uma alternativa ao dólar, inclusive aumentando significativamente as suas reservas de ouro, tanto em si quanto em termos do percentual em relação ao total de reservas de ouro pra lastro financeiro no mundo. A disputa pela hegemonia mundial está longe de ser definida, mas a longa duração parece estar mais favorável pra China (e pra Eurásia). Enquanto isso, o Brasil continua não apenas sem um projeto de construção nacional, mas também com um projeto de destruição nacional. A privatização mais completa de uma Petrobras esquartejada é central nisso. E o Brasil, diferentemente da Rússia, não dispõe de um poder militar capaz de lhe dar mais margem de manobra pra reconstruir um projeto nacional. Isso torna ainda mais importante não desperdiçar o que provavelmente é uma das últimas oportunidades de evitar a privatização ainda mais completa da Petrobras. Se não, que ferramenta o Brasil vai ter pra sair das ruínas?
Esse texto foi publicado originalmente em 13 de janeiro de 2020 e pode ser encontrado aqui.
Antony Devalle é trabalhador da Petrobrás e integrante do grupo autônomo de trabalhadores petroleiros Inimigos do Rei. É um dos fundadores e editores do Portal Autônomo de Ciências.