Quando fui achada, pensei que seria só mais uma fase de minha existência, mas me enganei. Recebi um novo nome e um título que me deu muito orgulho: primeira brasileira! Me senti importante e querida. Me mudei. Minha nova casa tinha vários como eu; vários seres vivendo uma nova vida. Conheci múmias, dinossauros, artefatos lindos…! Diariamente me emocionava com as visitas. Com as crianças que me olhavam e me colocavam em sua imaginação. Nos sonhos delas, já vivi ainda mais do que meus quase 13000 anos. Me alegrava ver o brilho no olhar de quem se deparava comigo. Era um novo mundo que se descortinava em cada um que se deparasse comigo. Um mundo do qual eu fazia parte, que não existiria se eu não estivesse ali.
Eu era feliz. Sentia que tinha um propósito nessa nova vida. Que poderia mudar o mundo apenas por existir. E não era exagero. Imagina o tanto de pessoas que nos visitavam todo ano! Te garanto que ninguém saía de lá do mesmo jeito que entrava. Eu fazia meu pequeno papel para uma revolução maior. Todos nós que morávamos lá fazíamos nossa parte. Nós éramos a materialização de parte da história da humanidade. Éramos fonte de conhecimento. O que seria do mundo sem nós?, eu sempre me perguntava.
Tudo ia bem. Me preparava para os próximos anos, décadas, séculos! Queria continuar parceira de educadores, crianças, visitantes de todo o tipo! Os profissionais que trabalhavam conosco, o público que nos amava, eram todos parte de minha nova família. Minha família era o mundo! Minha vida era a vida de todos que me rodeavam. Todos aqueles que conheci e os que eu ainda conheceria. Os que já morreram e os que ainda nasceriam. Minha vida não se restringia a mim. A vida do outro estendia a minha ao infinito! E era assim que eu pensava que continuaria.
Comecei a ouvir relatos assombrosos há alguns anos. Lembro de 2010, quando um incêndio no Instituto Butantã destruiu o maior acervo de cobras no país. Foi muito triste… Lembro que nós imaginávamos o que seria de nós se algo semelhante acontecesse conosco. Preferimos parar de pensar nisso. Ficar pensando não ajudaria em nada. E depois de uma tragédia dessa, seriam tomadas medidas para que esse tipo de realidade não se repetisse, é claro! Ao menos era assim que pensávamos…
Ouvíamos conversas sobre o descaso com a educação, com as instituições de ciência e tecnologia, com os espaços públicos. Ouvíamos falar de uma crise que atingia a todos. E de lucros de bancos e do agronegócio. Nunca entendi muito de política e economia. Como poderia ter uma crise tão severa se existia tanto lucro? Soube que houve perdão de dívidas de grandes empresas e bancos, também. Isso tudo sempre foi muito confuso, mas eu preferia me ater ao que dizia respeito a mim. Minha parte eu fazia: continuava snedo uma memória material do país, do mundo, da própria espécie humana. Continuava a iluminar os olhos dos visitantes, a inspirar sonhos infantis, a dar esperança a todos que acreditavam que a pesquisa, que as ciências poderiam construir um mundo melhor. Dizem que morri pela primeira vez com cerca de 20 anos. Em minha nova existência, olhava nos olhos de pessoas que já viveram quase 5 vezes mais do que eu tinha vivido. Era um novo mundo. Uma nova realidade que se abria para os próximos séculos.
Um ano depois, um novo incêndio: dessa vez era o Palácio Universitário da UFRJ. Agora era mais perto. Na mesma cidade, parte da mesma instituição. Nossos corações imateriais pararam. Sentimos como se fóssemos morrer uma segunda vez. Mas não perdemos a esperança. Agora alguma coisa será feita, pensamos. Eles vão descobrir como proteger outros prédios. Isso não se repetirá! Nosso medo de passarmos pelo mesmo sufoco era nossa força. Não vão deixar que isso aconteça conosco! Tínhamos certeza. Lutamos mais ainda para provar nosso valor. Eu tinha um compromisso comigo mesmo de iluminar mais olhos, de povoar mais sonhos. Eu e meus companheiros desejávamos dar o melhor de nós! E demos. Fizemos tudo o que podíamos. Nossa luta era diária.
Mas a luta não era só nossa. Ou não deveria ser. As pessoas deveriam lutar por nós. Lutar por nós significava lutar por elas mesmas. Ouvíamos falar das novas universidades sendo construídas, da mudança pela qual o Brasil estava passando. Uma mudança boa, diziam. Mas ouvíamos falar também sobre os abusos, sobre pessoas presas e assassinadas injustamente; principalmente pessoas pretas, como eu. Ouvíamos falar de exército na favela… De lei antiterrorismo… E do terror que a população preta e pobre passava. Minha alma chorava por eles. Chorava por meus irmãos que, muitas vezes, sequer sabiam da minha existência. Eu me orgulhava de inspirar sonhos em crianças. Mas sonhava em inspirar sonhos em mais crianças como eu. Essas, eu via muito pouco…
Às vezes me perguntava se as coisas estavam mudando mesmo. Se eu viveria para ver um mundo diferente do que eu via. Mas sempre mantive a esperança. Minhas lágrimas abstratas não eram um sinal de fraqueza, mas de força. Por enxergar a desigualdade, as injustiças, queria lutar ainda mais. Se eu pudesse, sairia pelas ruas, me uniria a todos que lutassem contra as injustiças do mundo. Mas isso não era possível, e me contentei em fazer o que podia, junto a meus companheiros de moradia.
2016 foi um ano marcante Ouvi conversas acalouradas sobre a presidência. Conversas sobre impeachment, sobre golpe, sobre o novo presidente, sobre o futuro. Falaram de uma ponte para o futuro. Foi o mesmo ano que tiveram mais dois incêncios. Ambos na UFRJ: um na reitoria e outro na Escola de Belas Artes. Era o fim. Minhas esperanças começavam a se esvair. Mais uma vez, nossos corações tremeram. Se meu coração fosse vivo, acho que já teria sofrido um ataque àquela altura.Nossa instituição, nossa moradia, suspendeu as visitas nesse ano. Diziam que não tinham recursos para nada além de medidas paliativas. Diziam que o corte de verbas era gritante. Em 2013, o orçamento do Museu Nacional, nossa moradia, foi de 531 mil reais. Em 2017 foi de 346 mil reais. Até abril desse ano de 2018, foi de 54 mil reais. Em 2004 já tinham alertado sobre o perigo de incêndio no Museu Nacional. Eu temia pelo futuro. Temia por minha própria existência. Pela existência de meus companheiros. Pela manutenção dos sonhos das crianças.
Os desastres continuavam: um incêndio em um alojamento da UFRJ deixou 4 pessoas feridas. Os exércitos avançando mais nas favelas. Assassinatos de pretos pobres. Assassinatos políticos. Verdadeiras execuções à luz do dia. Reforma trabalhista. Reforma da previdência. Direitos perdidos. Eu não entendia o que estava acontecendo. Não entendia como as pessoas não se revoltavam. E se estavam revoltadas, não entendia como continuavam a trabalhar como se nada estivesse acontecendo. Soube que em 1917 houve uma greve geral, que o Brasil parou para lutar por seus direitos. Passou 101 anos. Essas pessoas que lutaram não estão mais vivas. Mas onde estão as outras? Onde está todo mundo que será atingido por essas reformas? Que está vendo seus direitos indo embora? Dizem que é importante conhecer o passado, mas se preocupam com uma ponte para o futuro que mais parece uma ponte para o fim.
Será o fim? Até ontem eu ainda tinha esperança. Até ontem eu ainda tinha onde morar. Hoje, eu me despeço de minha moradia, do brilho no olhar dos visitantes, dos sonhos das crianças. Hoje me despeço do que sobrou de mim. Morri pela segunda vez, e dessa vez não tem volta. Talvez se tivessem lido mais Brecht se importariam mais conosco. Mas já é tarde. As reformas ainda podem ser derrubadas. Os direitos ainda podem ser reconquistados. Mas tudo que foi perdido junto com o Museu Nacional nunca mais vai ser recuperado. Há perdas que são irreparáveis.
Essa é a homenagem do Portal Autônomo de Ciências ao Museu Nacional e nossa revolta com essa tragédia anunciada. A PEC do teto foi um marco para o que aconteceu, mas os descasos com a educação, e com a ciência e tecnologia não são de agora. O incêndio do Museu Nacional é uma perda irreparável para a humanidade, e se não fortalecermos nossas lutas, se não buscarmos sempre o poder popular, se não enfrentarmos os ataques do governo, dos bancos, das empresas, do capital, essa será só uma das diversas perdas que ainda teremos.
Esse texto foi originalmente publicado em 3 de setembro de 2018 e pode ser encontrado aqui.
Esse texto foi inspirado na ideia do leitor Rubem Rodrigues.
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